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Love & Death: muito além das cercas brancas

Os subúrbios estadunidenses são um elemento solidificado no imaginário popular e está, em geral, associado a uma imagem construída para o país ao longo do século XX como uma nação progressista, ética e democrática. Desnecessário dizer que os Estados Unidos estão longe de ser um país progressista, ético e democrático, mas, mais do que isso, os últimos anos promoveram a desconstrução dessa imagem, tornando-se essenciais para a ascensão de novos modelos narrativos, com personagens e dinâmicas mais diversas, que desmistificaram o que existe (e o que pode existir) para além de fachadas muito bem construídas.

Esse movimento (que, embora sempre tenha existido, sobretudo em produções de gênero, mas que ganha cada vez mais espaço no cenário mainstream) deu origem a histórias que, mais do que se moldar ao ambiente doméstico dos subúrbios, são capazes de capturar sua essência em diferentes gêneros e contextos, transformando-a de formas muitas vezes assustadoras. Assim, do pós-Segunda Guerra às novas configurações familiares, até o crime e os terrores que habitam casas aparentemente inocentes (poucas histórias são tão conhecidas como a da família que se muda para uma bela casa em busca de um recomeço) ou são perpetrados por cidadãos acima de qualquer suspeita, o subúrbio deixou de ser um ambiente exclusivo das comédias e dramas para figurar em gêneros como o horror, o thriller e até mesmo a ficção científica.

love & death

Ainda que não seja uma obra exclusivamente sobre o subúrbio, Love & Death, minissérie da HBO baseada no caso de homicídio de Betty Gore — morta pela suposta amiga e amante de seu marido, Candy Montgomery, na década de 1980 —, não deixa de partir do pressuposto de que uma cidade pacata com pessoas comuns pode se tornar o cenário de uma grande tragédia, e que o modo de vida suburbano é também capaz de interferir sobre a vida das pessoas que ali residem, moldando opiniões e formas de agir. Muitos dos acontecimentos da série são atravessados por essa influência, como também o são pela religião (neste caso, representada pela Igreja Metodista), e atestam quão significativas são essas dinâmicas, como são estabelecidas — não necessariamente baseadas em interesses ou personalidades afins, mas na conveniência de rotinas compartilhadas em que todos são avatares de um mesmo estilo de vida — e quão brutais podem se tornar suas marcas na medida em que se associam a um profundo desejo por pertencimento.

Neste cenário, mulheres como Betty (Lily Rabe) e Candy (Elizabeth Olsen) podem ser vistas, ao menos inicialmente, como lados da mesma moeda. Mães e esposas dedicadas, com famílias bem-estabelecidas e casamentos aparentemente felizes, ambas parecem levar vidas tranquilas e sem grandes vulnerabilidades. Tendo se conhecido na igreja, suas filhas logo se tornam melhores amigas; apesar disso, Betty e Candy não criam o mesmo tipo de conexão, mantendo uma amizade distante, muito diferente daquela mantida entre Candy e Sherry (Krysten Ritter) ou Candy e a então pastora, Jackie (Elizabeth Marvel). Beth, por outro lado, parece uma mulher bastante solitária e sem conexões significativas fora do seio familiar.

Como alguém ainda recente na comunidade e uma das poucas mulheres que precisavam trabalhar fora, restava a Betty pouco tempo para se dedicar às atividades comunitárias (diferente de mulheres como Candy, por exemplo), dificultando seu entrosamento.  Além disso, embora levassem vidas semelhantes em muitos aspectos, Betty e Candy eram, em si mesmas, pessoas muito diferentes: ao passo que Betty exibia uma personalidade essencialmente introvertida (é importante destacar, no entanto, que, antes de sua mudança, Betty era considerada uma garota popular), Candy era comunicativa e calorosa, o que facilitava o seu envolvimento em diversas atividades. Mesmo a forma como lidaram com os problemas em seus respectivos casamentos destacam suas diferenças: enquanto Candy decide ter um affair para fugir de uma rotina que havia se tornado estafante, Betty recorre a uma gravidez planejada e ao sexo mecânico, o que eventualmente a torna suscetível à depressão, mais dependente da presença do marido e cada vez menos acessível a outras relações.

Love & Death

Em tempo, é justamente o que poderia aproximá-las que as afasta de forma definitiva: os casamentos em crise. Ainda que não fossem grandes amigas, fica claro que Candy não escolhe o marido de Betty como amante de forma deliberada: seu objetivo primeiro é ter uma folga da vida de dona de casa, mãe e esposa perfeita, com a qual nunca parece se satisfazer por inteiro, e encontrar um pouco de diversão. Mas é a partir do seu envolvimento que uma barreira imaginária se interpõe entre as duas. Baseada parcialmente na reportagem em duas partes do Texas Monthly, a série mostra que Allan (Jesse Plemons) só se torna um interesse em potencial para Candy após ambos colidirem durante uma partida de vôlei do time da congregação, no final de 1978, a qual Betty e Pat (Patrick Fugit), então marido de Candy, assistiam das arquibancadas. Mas este poderia ser qualquer pessoa: com efeito, após o rompimento com Allan, Candy teria um segundo caso — fato apenas brevemente mencionado pela série.

Uma vez acordados os termos do affair, Allan e Candy passam a se encontrar em momentos oportunos, quase sempre durante o horário de almoço de Allan, quando podem passar despercebidos mais facilmente por seus respectivos cônjuges. Mas as regras impostas por Candy eventualmente deixam claro o quanto ela (e também Allan) não sabia(m) realmente o que estava(m) fazendo. Se um homicídio era uma consequência de fato inimaginável — e era —, na série, a inexperiência dos amantes é também palpável, e a confiança de que nada aconteceria logo os tornam descuidados — inclusive frente à própria Betty, que pouco diz, mas muito vê. É inevitável que Allan e Candy se tornem bastante próximos (mais do que sexo, os dois passam a dividir confidências, a ansiar por suas conversas diárias), mas a explicação para tamanha proximidade parece menos óbvia sob o ponto de vista da comunidade, onde, para todos os efeitos, eles são apenas colegas do time de vôlei e membros do conselho da igreja (vale ressaltar que Betty não pertencia nem a um, nem a outro), e, embora tentem disfarçar, não são bem-sucedidos diante de um olhar mais atento.

Porque o centro da série está em Candy, há pouco espaço para explorar outros pontos de vista, inclusive o de Betty, que não encontra possibilidades suficientes para destrinchar suas suspeitas e sentimentos até o fatídico encontro com sua algoz. Até lá, no entanto, é evidente o quanto a situação lhe confunde. Há cenas, como o jantar com os Montgomery, pouco após o retiro cristão para casais, em que sua posição se torna mais clara. A partir deste momento, Betty se torna uma pessoa que não necessariamente está a mercê dos fatos, mas que percebe as mudanças ao seu redor e tenta, ao seu próprio modo, respondê-las. Menos, porém, é dedicado à sua depressão pós-parto (propositalmente não-diagnosticada) ou à compreensão de sua profunda inimizade com o novo pastor local, Ron Adams (Keir Gilchrist), substituto de Jackie na igreja após esta divorciar-se do marido (ainda que pareça um detalhe desimportante, a obsessão com o novo pastor foi, de fato, considerada um dos motivos que a tornaram menos atenta à aproximação inicial entre Candy e o marido). Sua história, portanto, não é desenvolvida com profundidade suficiente para torná-la mais do que uma vítima — da traição do marido; de um assassinato; do escrutínio público (sua saúde mental é posta em xeque de forma bastante pública durante o julgamento, levando ao questionamento sobre o seu real papel de vítima) — ao invés de uma protagonista — o que, de fato, deveria ser.

É sobre a trajetória de Candy que Love & Death efetivamente se debruça e, em uma história no qual o “quem fez” (whodunit) não é uma questão, o foco se projeta sobre o porquê do crime. Candy é uma assassina improvável e acompanhá-la é uma tentativa constante de entender o que poderia tê-la impulsionado a tirar a vida de uma pessoa — e uma pessoa relativamente próxima — com tamanha violência. A essa altura, muitas perguntas podem ser feitas e, direta ou indiretamente, a série as faz: ela teria encoberto esse lado de sua personalidade durante toda a vida? Teria sido um episódio isolado? Candy agira em defesa própria? Ela agiria da mesma forma em outras circunstâncias? Mesmo a cena do crime, tão brutal e emocional como é, é em muito impulsionada pelo estudo da personagem e a compreensão sobre o que teria acontecido durante e após o ocorrido. Não há violência gratuita. Love & Death trabalha com uma visão dupla dos fatos: a de Candy, única testemunha da própria brutalidade e abertamente confiante da própria inocência; e em terceira pessoa, quando se permite olhar para o quadro à distância, permitindo ao espectador tirar as próprias conclusões.

Em um contexto tão complexo, não há como exigir respostas definitivas. Muitas das ações de Candy após o crime não ajudam a entendê-la com maior clareza e mesmo o passado traumático desenhado pela série, que celebra o talento de Elizabeth Olsen em sessões de hipnose e psicanálise, não é o suficiente para justificar, tampouco explicar os seus atos. Embora, judicialmente, Candy Montgomery tenha sido considerada inocente ao alegar legítima defensa, a violência do crime parece desproporcional contra alguém que, naquele momento, estava desarmado, e, depois de alguns golpes, totalmente indefeso. Nesse sentido, entender a natureza de sua raiva talvez fosse um caminho menos óbvio, em particular por dar atenção a um sentimento frequentemente rejeitado e silenciado em mulheres, mas presente em todas elas — não apenas em Betty, quando supostamente ameaça Candy, e não apenas em Candy, quando supostamente defende a si mesma.

Talvez por isso, enquanto se encaminha para seu desfecho, o vazio seja inevitável. É impossível não considerar que, ao passo que Candy conseguiu reconstruir sua vida, Betty não só perdeu a sua, como sua família nunca foi capaz se seguir em frente. Não se trata de apontar dedos ou escolher lados. Love & Death é sensível o suficiente para lembrar que, em meio a tantas produções do gênero, crimes reais acontecem a pessoas reais. Mais do que suas críticas (sutis ou não, cabíveis ou não), é aqui, afinal, onde reside seu verdadeiro mérito: no respeito para com a história e no comprometimento de um elenco brilhante e contá-la.