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Direito à memória e desumanidade em Herdeiras do Mar, de Mary Lynn Bracht

Em 1910, o Japão invadiu o que, hoje, é o território das duas Coreias. O período de ocupação resultou na opressão do povo coreano, com a supressão de seus costumes, culturas e religião, além da exploração de mão de obra escrava para os esforços da Segunda Guerra Mundial e o sequestro de mulheres e meninas para serem sexualmente abusadas pelo exército japonês.

É neste contexto que a obra de Mary Lynn Bracht, Herdeiras do Mar, adentra. Publicado em 2020 e lançado no Brasil pela Editora Paralela, o livro acompanha a história de duas irmãs separadas pela cruel realidade da guerra, sendo bastante preciso nos resultados do conflito perante indivíduos singulares, com vidas distintas, e não somente sobre um povo ou uma nação. Se a realidade das chamadas “mulheres de consolo” da época é apenas um contexto no grande esquema dos acontecimentos históricos mundiais, na obra de Bracht é toda uma vida de sofrimentos e perdas colocando as personagens principais em uma dolorosa jornada que, para muitas mulheres e meninas, não restou apenas na ficção.

Em Herdeiras do Mar, Hana e Emi são duas irmãs que vivem na Ilha de Jeju. Intituladas “haenyeo”, ou seja, mulheres do mar, elas fazem parte de uma aldeia que sobrevive da pesca de frutos do mar, sem a utilização de qualquer instrumento mecânico, apenas a partir da prática do mergulho com a utilização de uma técnica milenar passada de geração para geração.

Herdeiras do Mar

Ambas vivem na relativa tranquilidade que uma comunidade dependente de mulheres oferece, quando Hana evita o sequestro de Emi pelo exército japonês e se deixa levar no lugar da mais nova. O que se segue, contudo, não tem nada de heroísmo: ao permitir que Emi tenha a chance de continuar sua vida, a mais velha, aos dezesseis anos, descobre qual o real destino das mulheres e meninas sequestradas com o aval do governo.

Bracht é excessivamente incômoda nos detalhes da trajetória de Hana, que é transportada pela Manchúria até um “bordel militar”, onde as mulheres eram deixadas à disposição para os oficiais que por lá passavam, em um tipo de “prostituição forçada” para evitar, perante a lei, que cometessem o crime de estupro, embora, na prática, estivessem constantemente vulneráveis a uma série de abusos, dentre eles seguidos estupros coletivos.

No contexto da obra e sem a intenção de fazer crescer um enredo de evolução da personagem a partir deste tipo de sofrimento, é possível chegar à conclusão de que o incômodo é um mal necessário ao leitor: assim como outras diversas mulheres, sem rosto e sem nome, trata-se de um abuso que vai além do físico, perpassando pela identidade, pelo consentimento, pela moralidade, pela cultura, pela religiosidade e pelo estado de espírito dessas pessoas, que se tornam apenas retratos distantes do que eram antes de serem relegadas a objetos humanos, sem qualquer tipo de personalidade. Ou seja, não se trata apenas de um ato invasivo em si mesmo, mas de um abuso com incontáveis repercussões externas e internas, para satisfazer a vontade mais primitiva de homens que já se encontram em meio a um ato que reflete a própria brutalidade — o da guerra, da subjugação dos demais através da força ou, quase sempre, de um pequeno poder —, como que para reforçar o orgulho vencedor.

Enquanto isso, nos tempos atuais, Emi tenta conviver com a culpa e a vergonha de ter sido salva e poupada pela irmã mais velha, apesar de ter vivido — e sobrevivido — às próprias intempéries. Diferente de Hana, ela não foi traficada como escrava sexual, mas viveu uma vida inteira sob a imposição do governo japonês ao ser obrigada a se casar com um oficial para que ele tomasse a propriedade de suas terras.

Em 2012, já no fim da vida, ela parte em uma jornada para participar das Manifestações de Quarta-Feira, um protesto real que ocorre em vários locais da Coreia do Sul desde que a primeira mulher, Kim Hak-sun, foi a público, em 1991, para revelar sua história como vítima do exército japonês, movendo um processo contra o governo para requerer uma indenização pelos crimes cometidos durante a guerra. Além de pedir por Justiça, as manifestações sempre tiveram a intenção de pressionar o governo japonês a admitir os crimes coletivos contra as “mulheres de consolo”, o que nunca ocorreu.

A intenção de Emi, consciente do destino que a irmã teve, é tentar encontrá-la em meio a diversas outras mulheres que passaram pelo mesmo, mas o que fica latente através de sua jornada por Seul e a experiência durante os protestos é a importância da preservação da memória, do enraizamento de acontecimentos históricos, capazes de marcar e mudar para sempre a história de um povo, ou de um grupo, para que sejam evitados.

Em diversos momentos do livro, apesar de se passar em linhas temporais distintas, as duas irmãs parecem se conectar nessa tentativa de não esquecerem uma da outra — e isso engloba, também, o não esquecimento do passado, afinal o que vivemos é construído sobre ele. O direito à Memória, portanto, atua como um grande instrumento de libertação daquele que foi oprimido, o que é genialmente retratado pela visão de Bracht. Ainda que Hana não esteja, de corpo presente, nas manifestações, outros estão por ela, pois há quem faça justiça em nome daqueles que foram vítimas.

Apesar de ter sido responsável por perpetuar uma das maiores atrocidades cometidas pelo ser-humano através do Holocausto, a Alemanha pós-Segunda Guerra é um bom exemplo de utilização do direito à memória como repúdio dos atos cometidos por Hitler e o governo nazista. Barros explica:

“Um bom uso da memória resgata o passado através de um objetivo de lembrar as violações para que nunca se esqueça suas consequências. O sujeito que foi privado de ter voz no contexto autoritário de violações sofridas pode, enfim, ser escutado pela sociedade. […] A memória possibilita, portanto, a perspectiva do oprimido, havendo um pensamento pautado na voz que se dá à vítima a partir do exercício de tal direito. As lembranças dos injustiçados no passado são condição para a justiça do presente.”

A obra de Bracht, assim como na vida real com o simbólico Monumento da Paz instalado perante o Consulado Japonês em Busan, na Coreia do Sul, que retrata uma menina de aparência característica àquelas que foram exploradas no passado, carrega em si a função de não permitir o esquecimento do que ocorreu em um período não muito distante da História, o que se revela essencial em um mundo que, culturalmente, coloca a figura feminina em situações de vulnerabilidade e abuso durante momentos de conflito.

Gallindo e Viana explicam que o estupro como “ferramenta de dominação, exploração e desestabilização” foi naturalizado ao longo do tempo e ocorre “desde a Guerra de Troia, onde as mulheres da cidade foram divididas entre os soldados gregos depois da invasão, até aos escritos bíblicos, onde o estupro e violação da integridade das mulheres são citadas diversas vezes como castigo divino”.

Não à toa, em 1949, Simone de Beauvoir já alertava sobre o fato de as mulheres serem as mais afetadas em situações de crise. Em seu livro mais famoso, O Segundo Sexo, a filósofa e ativista dizia: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.”

A citação, que ressoa até os tempos atuais, mais de setenta anos depois, em Herdeiras do Mar, é levada ao extremo, uma vez que Hana é quase que totalmente despersonalizada e descaracterizada de seus direitos civis, tornando-se menos do que uma cidadã, enquanto Emi é literalmente comercializada, assim como seus bens materiais, incapaz de servir aos próprios interesses em detrimento dos interesses dos homens e do governo patriarcal do imperador japonês, tornando-se nada menos do que um meio para um fim.

Porém, novamente, não se mostra um extremo exagerado ante a realidade histórica do mundo — considerando os atos perpetrados por outros atores, como o próprio Exército Vermelho, da União Soviética, na invasão à Alemanha ou pelo Exército Nazista contra as mulheres judias, polonesas e holandesas — e a análise das regiões de conflitos mais recentes.

Em 2022, a ONU (Organização das Nações Unidas) denunciou o estupro como arma de guerra utilizada pelo grupo extremista Boko Haram, que tenta impor a lei islâmica da Sharia no norte da Nigéria. Na Síria, em 2015, mulheres relataram terem sido sexualmente exploradas por homens que trabalhavam para o governo de algumas regiões em troca de ajuda humanitária:

“[…] a violência sobre estas e crianças visa inferiorizá-las e mantê-las sob o controle de uma sociedade patriarcal e radicalmente religiosa legitimada por leis internas que contribuem para a perpetuação destas práticas violentas, ou seja, fazem com que as vítimas aceitem os abusos sofridos suprimindo-lhes os direitos. Segundo o CSNU, milhares foram assassinadas, torturadas e sequestradas. E cerca de seis mil mulheres foram vítimas de violência sexual desde o começo dos conflitos no Oriente Médio, em 2011. Muitas destas mulheres, grande parte ainda crianças, foram e ainda são vendidas como escravas sexuais. […]”

Como se vê, o paralelo com a realidade traçado por Herdeiras do Mar é dolorosamente gritante e, ao mesmo tempo, o livro se mostra uma experiência devastadora de empatia feminina. Escrito de maneira sensível de forma a fazer saltar das páginas o que se lê, dos sentimentos aos cenários, a obra é o mais puro retrato do que a embaixadora brasileira, Gilvânia Oliveira, define como “expressão da desumanidade” de um mundo que, inevitável e inescrupulosamente, se encontra em constante débito com as mulheres ao relegá-las a seres humanos de segunda classe.


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