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Killing Eve. Loving Eve.

O amor. Esse inimigo da razão, dotado de atrevimento e astúcia, capaz de desconcertar o mais ajustado dos seres.

Amor. Celebrado em contos, abençoado por religiões, desejo constante desde que a vida aflora.

O amor.

Passional. Quente. Distante.

Que corre pelas veias, acelera a respiração e provoca a falta de ar.

Amor que cura e machuca.

Não podemos falar sobre amor e paixão sem nos enveredar por fantasias não cotidianas, em mundos onde muitos projetam as partes mais obscuras de si. Afinal, é difícil desejar alguém em todos os seus momentos, amar por inteiro. Muitas vezes, isso parece existir apenas na ficção. E talvez o seja. Desejar o outro mesmo quando seus maiores pecados estão expostos acaba virando um dilema moral. Falar em voz alta sobre tópicos que costumam erguer a sobrancelha do ouvinte de maneira satisfatória não é bem a especialidade da mídia ou cultura pop. Mas Killing Eve fez sua narrativa funcionar: uma história controversa e deliciosamente carismática.

Envolver toda uma audiência na torcida pela segurança e possível envolvimento amoroso entre suas protagonistas é um evento raro. Principalmente nesse cenário, quando uma delas é… Bom, versada na sociopatia. Villanelle (Jodie Comer) é, sim, extremamente charmosa e venceu vários prêmios mundo afora através das mãos de sua brilhante intérprete, mas ainda assim, a jovem apaixonada pelo mundo da moda continua uma psicopata. Curioso observar que o “efeito Villanelle” ocupa um espaço bastante peculiar no coração dos seus admiradores, sempre ávidos para defender a russa e curiosos para acompanhar o desenrolar da trama. E são as obsessões dela e de Eve as responsáveis o ritmo da série. Ditando o quanto Villanelle está disposta a ir em sua jornada para, concomitantemente, ficar com ou abandonar Eve (Sandra Oh); ela tenta ambos, ao mesmo tempo, afastando todos ao seu redor mas sempre deixando seus instintos levarem-na de volta para quem tanto a marcou.

Eve e Villanelle

Entre elas, há eletricidade, um querer morando nas entrelinhas. Elas acham que enganam os demais ao seu redor, reafirmando o tempo inteiro que superaram o que quer que exista de não-dito. Tolice. Pois, para o público e demais personagens da série, fica bem evidente o quanto se atraem. A princípio podemos pensar que as protagonistas vieram de pólos diferentes. Que os diferentes se atraem e se completam. Difícil ter uma conclusão diferente quando, ao conhecer Eve Polastri, ela está num relacionamento heteronormativo, monogâmico e fiel. Toda a vida da agente parece nos conformes do aceito amplamente pela sociedade. Mas não precisamos de muito tempo para perceber sua infelicidade.

A infelicidade da personagem interpretada por Sandra Oh dita o ritmo da primeira temporada. Aquela vida a deprime. Seu emprego a deprime. Seu casamento a deprime. Sua vida voltada para o lar lhe sufoca.

Mas, flertando com uma vida mais perigosa, existe uma outra Eve. Ávida por abandonar as triste regrinhas, infelizes mandamentos sociais e falsos moralismos tão importantes para todos. Existem murmúrios e sussurros soprados contra seu ouvido. Essa voz que lhe provoca, pertence àquela segunda Eve. Alguém que anseia por mais, deseja mais, sonha com o diferente. Uma profissional de inteligência aguçada que permanece presa no ciclo do tédio e insignificância em suas funções atuais. Polastri representa a frustração feminina em ambientes doméstico e de trabalho, refletindo todas aquelas presas em situações que nunca evoluem. Eve é uma protagonista aparentemente ordinária, mas isso apenas porque começa presa num sistema debilitante para sua personalidade. Não é preciso mais do que vinte minutos dentro do primeiro episódio que foi ao ar em 18 de abril em 2018, para torcermos por ela.

E enquanto muito se fala sobre o “espetáculo de Villanelle”, poucos discutem o quanto devemos à Sandra Oh — a fantástica, incrível Sandra Oh. Não fosse sua Eve, a série não conseguiria decolar. Helen Mirren uma vez disse que a maior dificuldade para um ator não são os personagens em que conseguem ir para um lugar completamente fora de si, mas aqueles onde você tem de retratar uma pessoa comum. Aparentemente comum. Alguém que anda de um lado para o outro da sala, por exemplo. Andar de um lado para o outro da sala é uma das lições mais difíceis para muitos atores, porque não conseguem capturar a atenção dos espectadores ao fazê-lo. Mas Sandra consegue. A atriz de descendência sul-coreana não apenas prende sua atenção, como vende tudo que se passa na mente de Polastri com trejeitos simples, olhares longos, falas pontuadas na hora perfeita. Existe algo dentro de Eve implorando para ser liberado, e nós entendemos isso.

Eve e Villanelle

Villanelle também. É nas sutilezas que o relacionamento de ambas se constrói da melhor forma: como admiram a beleza da rival, a audácia, como valorizam a inteligência de sua inimiga. Existe um subtexto de atração presente em cada encontro, por mais breve que seja. Por mais insignificante que pareça. Ambas gravitam ao redor uma da outra, e em silêncio, clamam para não serem esquecidas. Nenhuma delas quer ser esquecida. Nenhuma quer ser devorada pelo tempo e tornar-se uma memória. Elas rejeitam a possibilidade de qualquer outra pessoa tomar seu lugar. E esse pensamento não para. Ele as direciona em suas ambições, conduzindo-as dentro de um jogo perigoso.

Villanelle não entende nada sobre sentimentos. Eve não entende nada sobre Villanelle. Como confiar uma na outra? Como perdoar alguém com tanto sangue nas mãos? Como se perdoar por não conseguir parar de pensar naquela que deixou um rastro escarlate marcando cada segmento da sua vida? Não há uma explicação. Não há um porquê. Nada além de serem a mesma pessoa. Elas se conectam, enxergando a verdadeira natureza da outra, apaixonando-se tanto pela mulher que a tentou matar quanto por aquela que dividiu uma dança lenta. São a mesma figura solitária, uma com o monstro domesticado, a outra com o monstro guiando-a por toda sua vida. E, conforme aprendemos mais sobre as personagens no decorrer das temporadas, vamos conhecendo todas as marcas doloridas na vida delas. Eve não apenas as conhece, como se apaixona por cada uma delas.

Não se engane, nessa dinâmica não há uma expectativa, elas não seguem em frente por engano ou cenários projetados. Killing Eve nos entrega uma rendição completa entre duas mulheres que, por mais que se condenem por suas emoções, não conseguem evitar a espiral pela qual são devoradas. Eve e Oksana, juntas, consolidam-se no famoso enemies-to-lovers; e apesar da natureza apaixonada dos seus sentimentos não ter sido esclarecida nas duas primeiras partes da série, na terceira, há pouco finalizada, tudo fica bem nítido.

Vale a pena, porém, apontar a timidez da obra ao não nos entregar uma cena íntima entre elas. Bom, mais íntima do que aquela cena de Villanelle, Eve, e outro homem — onde ele é utilizado como recurso para canalizar a vontade delas. Na segunda temporada, elas encontram uma forma nada ortodoxa de explorar o que sentem. São cenas assim que esclarecem a origem de seus desejos para espectadores ainda teimosos em não aceitar a realidade: esta é uma série que conta a história de Eve Polastri e Villanelle abandonando o mundo que conheciam para formar um novo, uma história trágica para alguns, gloriosa para outros. O conto da agente do MI-6 que ascendeu na vida da espionagem e, por isso, perdeu tudo. Mas encontrou, na forma de sua inimiga, amor ao final.

É saudável? Não. É recomendável apaixonar-se por uma assassina? Não. Claro que não. Mas em momento algum a série foi feita com princípios educacionais ou tenta nos vender a ideia de que permanecer juntas seja a saída mais fácil. Elas tentam se afastar, se reconstruir, de novo e de novo. Eve com suas inúmeras tentativas de voltar para o marido, e Villanelle com seu retorno para a Instituição que a treinou. Em vários momentos há um abismo entre elas, e nesse abismo existem vários momentos angustiantes por conta da natureza do que as consome. Há conflito para a consciência do público e conflito para a consciência da própria Eve.

A princípio, é possível conjecturar que Villanelle foi o motivo para a transformação ocorrida em Eve. Mas, se olharmos com verdade para a história da agente, tudo estava ali. Villanelle foi o catalisador.

Eve e Villanelle

Phoebe Waller-Bridge nos presenteou com um relacionamento entre partícipes totalmente fora dos estereótipos, onde sexualidade não as define. Em momento algum Eve questiona a origem de seus desejos — despertados por Villanelle — como fruto de curiosidade passageira por uma mulher. Há uma fluidez na obra adaptada que faz falta fora dali, no mundo onde ser LGBTQ+ parece, cruelmente, interligado ao sofrimento sem fim. O sofrer aqui se dá pelo desenrolar da trama de espionagem, não porque Eve de repente coloca em suspenso toda sua vida por ter interesse noutra mulher.

E não se engane caso o relacionamento delas pareça um tanto poético, pois a rima entre elas é banhada em sangue. Em Killing Eve, tudo é mortal. O seriado entrega uma rendição completa entre a assassina de aluguel e sua adorada agente do MI-6, onde, por mais que se condenem pelos sentimentos controversos, não conseguem olhar na direção contrária. São a epítome do enemies-to-lovers; e apesar da natureza apaixonada dos seus sentimentos não ter sido esclarecida nas duas primeiras partes da série, na terceira há pouco finalizada, fica claro. Tudo fica claro. Encontro. Admiração. Obsessão. Desejo. Contato. Traição. Luto. Renascimento. Escolhas e amor.

Para Villanelle, Eve entrega todo e qualquer vestígio de sanidade nas mãos de um amor que leve a razão para longe. E ela corresponde. Ela quer cada parte de Oksana, cada pedaço quebrado, cada minúsculo movimento da boca que entrega uma covinha ao sorrir, cada desenho traçado em forma de cicatriz. E juntas, juntas elas querem ir para longe do mortal, do entediante, do que enerva e testa a razoabilidade por trás de permanecer vivo.

Afinal: como retornar ao normal depois de conhecer algo que quer te devorar, aceitar todos seus defeitos e entrelaçar dedos com o demônio para o qual entregaram sua almas? Uma vez que se encontraram, nada existe quando distantes, nada além do vazio. Villanelle, durante toda sua trajetória, parece faminta por um mundo onde só existem elas, onde as regras caíram, onde o sangue nas mãos de quem se ama vira uma manta carmesim acarinhando sua pele. A falta de Eve provoca a desordem. O luto. A sensação de abandono retorna. Para Eve, Villanelle é uma invasora. Parasita. Um pesadelo. Sonho lúcido que tenta esquecer, e nisso falha.

Pois sempre olham para trás. Não há mais futuro sem o passado entre elas. Não há mais Villanelle sem a humanidade que Eve lhe trouxe. E não existirá, nunca mais, Eve Polastri sem a extraordinária força que a jornada ao lado de Villanelle a concedeu.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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