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Codinome Villanelle

Desde que estreou em abril de 2018, Killing Eve, a série, foi sucesso de público e de crítica. Criada e produzida por Phoebe Waller-Bridge, a mente por trás de Fleabag, Killing Eve faz sucesso principalmente por desconstruir o gênero das produções cujo tema é a espionagem, e faz isso maravilhosamente bem por meio das interpretações certeiras de Jodie Comer e Sandra Oh, as atrizes responsáveis por darem vida à Villanelle, a assassina de aluguel que todas nós amamos, e Eve Polastri, a agente do MI-6 que todas queríamos ser, respectivamente. O que nem todo mundo sabe é que a série foi inspirada no livro Codinome Villanelle escrito por Luke Jennings, lançado originalmente em 2014, publicado esse semestre no Brasil pela Suma, selo da editora Companhia das Letras. O questionamento que fica é o seguinte: seria o livro tão mortífero e cativante quanto a série por ele inspirada?

Em pouco mais de 200 páginas, Luke Jennings nos apresenta Villanelle sem grandes rodeios. Ele nos conta logo no início do livro os motivos que fazem da assassina o que ela é, como foi resgatada de uma prisão russa às portas de seu julgamento pelo assassinato de três homens para ser recrutada como parte de uma organização mundial que tem nas mãos o poder de decidir quem vive e quem morre de acordo com seus interesses. Nessa nova vida que reúne glamour e muito sangue, Villanelle se encontra por completo. A jovem russa sempre se sentiu especial e diferente, e ao completar seu rígido treinamento para se tornar uma das armas mais mortais na mãos d’Os Doze, a organização que a recruta, ela entende que finalmente encontrou seu propósito na vida, que sua sociopatia a faz única e a pessoa ideal para matar seus alvos sem sentir remorso algum.

“Konstantin falou, com riqueza de detalhes, o que aconteceria. E conforme ela escutava, foi como se sua vida tivesse sido conduzida para aquele momento. A expressão em seu rosto não vacilou nem por um instante, mas a empolgação que se espalhou pelo seu corpo era tão ávida quanto a fome.”

Villanelle, um nome escolhido para que a jovem pudesse deixar para trás toda sua história como Oxana Vorontsova, é impecável em seu ramo de trabalho e é famosa entre os seus por não deixar rastros. Rumores a respeito de uma mulher assassinando figuras proeminentes e importantes ao redor do mundo não chegam nem perto de desvendar sua verdadeira identidade, então Villanelle se sente, de certa maneira, intocável. Vivendo em seu apartamento em Paris, usando roupas de grifes renomadas e dirigindo um Audi TT Roadster prateado, ela tem a vida perfeita nos interlúdios que ocorrem entre seus trabalhos, preenchendo seu tempo com desfiles de moda, noitadas com uma jovem socialite, algo mais próximo de uma amiga a existir em sua vida, e sexo sem compromisso com homens e mulheres.

Mas as coisas estão prestes a mudar para Villanelle pois uma agente da inteligência britânica está em seu rastro. Após o assassinato de um cidadão russo em solo britânico, Eve Polastri é deslocada para uma divisão secreta cujo único objetivo é encontrar a mulher misteriosa responsável pelo assassinato não apenas do russo, mas de vários outros alvos ao redor do mundo. A caçada se torna ainda mais pessoal para Eve depois que Villanelle assassina um de seus amigos com requintes de crueldade apenas para mandar uma mensagem para a agente. Se antes Eve queria encontrar Villanelle por ter colocado em jogo a sua carreira, agora seu maior objetivo é a vingança.

“Ela havia aprendido a imitar as reações emocionais de outros — os receios, as incerteza, a necessidade desesperada por afeto —, mas nunca chegara a senti-las plenamente. Mas sabia que, para passar despercebida pelo mundo, era fundamental usar uma máscara de normalidade e disfarçar a dimensão de sua indiferença.”

Codinome Villanelle e Killing Eve possuem, sim, suas semelhanças, mas é muito mais notável o que as difere do que aquilo que as une. O enredo de base é, de fato, o mesmo. Tanto na série de televisão quanto no material de origem, o jogo de gato e rato protagonizado por Villanelle e Eve é o que move a trama adiante. Porém, diferente do que ocorre na série produzida por Waller-Bridge, no livro de Luke Jennings não há nada de tão cativante assim no relacionamento construído entre a assassina e a espiã pois não há nada construído. Em determinado momento, uma elege a outra como sua nêmesis e é isso. O autor prefere se demorar muito mais descrevendo as partes dos corpos de suas personagens femininas — há momentos em que somos obrigadas a ler coisas como “virilha volumosa” e “púbis polpudo” — do que desenvolvendo qualquer relacionamento entre elas, e eu, como alguém que decidiu ler o livro após assistir a série, fiquei bastante decepcionada com o material base.

Luke Jennings é homem, e isso já quer dizer muito a respeito da visão que ele tem de suas personagens femininas. Não que ele erre por completo, visto que a trama não é de todo ruim, mas alguns momentos — principalmente as já citadas descrições dos corpos de suas mulheres — poderiam facilmente serem descartados sem prejudicar em nada a leitura. Há tantas cenas de sexo quanto de violência em um livro particularmente curto, e não há nada de errado com isso dentro do gênero em que Codinome Villanelle se enquadra, mas isso não significa que tais cenas sejam cruciais para o desenvolvimento da história. Já entendemos que Villanelle não sente nada em sua sociopatia, não precisamos vê-la ser sexualizada em cada cena possível, com abertura de pernas mostrando a virilha e uma cena de masturbação enquanto ela vê uma amiga transando com um cara. É fácil entender os motivos pelos quais os fãs da série — eu, inclusa — se decepcionam com o livro quando em Killing Eve as personagens femininas, as protagonistas de toda essa trama, recebem um tratamento muito melhor por parte de Waller-Bridge do que de Jennings. E isso para não mencionar a transfobia em determinada passagem do livro.

“Ela não sabe exatamente por quê. Talvez seja porque ela própria não consegue se imaginar tirando a vida de alguém, então fica fascinada pela ideia de uma mulher para quem o ato de matar não é nada de mais. Alguém que seria capaz de acordar de manhã, preparar o café, escolher a roupa do dia, sair de casa e matar a sangue-frio uma pessoa totalmente desconhecida. Será que era preciso ser uma anomalia, uma psicopata maluca, para conseguir fazer isso?”

O fato é que não há muito espaço para o desenvolvimento das personagens em Codinome Villanelle e é inevitável para quem assistiu a série com o roteiro de Waller-Bridge sentir falta de tudo o que forma Villanelle, Eve e o relacionamento entre elas. O jogo entre as duas é a base de toda a tensão das temporadas da série e é o que nos deixa encarando a tela quase sem piscar, segurando o fôlego para o que vem a seguir. No livro não existe nada disso. Os personagens não são aprofundados, suas motivações são ditas e é aquilo, pronto. O casamento de Eve está em crise, mas nada é desenvolvido além disso, por exemplo. Villanelle começa a questionar sua posição dentro da organização de que faz parte e não há maiores explicações. Há um segundo livro, batizado de No Tomorrow e sem tradução para o português por enquanto, então espera-se que algumas das respostas estejam lá.

Codinome Villanelle bebe na fonte de vários tropos da universo de espionagem, seja no que se refere a organização obscura que decide quem morre e quem vive com base em seus próprios interesses, seja por meio das descrições detalhadas das armas e munições utilizadas por Villanelle. Um contraste que ocorre com frequência, e que foi absorvido na série de televisão, é a predileção de Villanelle por roupas de marca, então somos bombardeados com descrições detalhadas daquilo que ela veste — mas nada é, de longe, tão sensacional quanto o vestido de tulle cor-de-rosa que a assassina usa em Killing Eve.

“Trevas, neve e sangue. Talvez apenas uma pessoa russa consiga entender o mundo assim.”

Os elementos de espionagem internacional estão todos lá, alguns dos assassinatos com que Villanelle se envolve na série são idênticos aos do livro, mas em Codinome Villanelle não há nada do carisma de Killing Eve. Claro que seria difícil competir com as personagens da série considerando que são interpretadas por atrizes fenomenais como Jodie Comer e Sandra Oh — esta, inclusive, conquistou diversos prêmios por seu trabalho na série, incluindo um SAG Awards e um Globo de Ouro de Melhor Atriz em Série Dramática — mas no livro de Luke Jennings não há nada que cative o leitor a ponto de fazê-lo pensar que o livro seja um fenômeno do gênero ou que a gente deva torcer por Eve ou Villanelle.

O erro de Codinome Villanelle, se é que posso chamar assim, é ficar famoso no rastro de Killing Eve, uma série que não apenas trata suas personagens femininas como pessoas, como desenvolve cada uma delas para além da superficialidade e as coloca como forças motrizes da ação. A leitura de Codinome Villanelle é rápida e ao final você vai querer sair correndo em direção aos braços de Phoebe Waller-Bridge para agradecê-la por transformar um material tão insípido em uma série de sucesso.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras no NetGalley.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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1 comentário

  1. E eu que não sabia que a Phoebe também produziu essa série? Sou apaixonada por Fleabag e com certeza já teria assistido Killing Eve se soubesse desse detalhe, me baseando também nos inúmeros elogios que já li nas redes sociais sobre a série. Imaginei que o livro não decepcionaria, mas está claro, pelo que foi exposto no texto os motivos de não ser tudo isso em comparação à série. Um homem escrevendo sobre mulheres quase sempre peca em sua produção, tenho essa impressão. Phoebe sabe como trabalhar suas personagens e isso é ótimo de ler para uma entusiasta na série.

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