O obscurantismo está em voga. A literatura foi duramente atacada em 2019. Tivemos casos de violência na Flip, de perseguição e censura na Bienal do Livro e de autores barrados em Feiras do Livro. Se antes celebrávamos a diversidade e apoiávamos a leitura de mais mulheres, agora a nossa luta cresceu, pois ler virou símbolo de resistência ao fascismo. Toda leitura é política, embora nem sempre seja sobre política. Na segunda parte do nosso Troféu Valkirias de Melhores do Ano, na categoria Literatura, falamos sobre livros essenciais para entender a arte e a política no Brasil, mas também falamos sobre histórias que nos tiraram um pouco da realidade sombria que estamos vivendo.
Ninguém Vai Lembrar de Mim, Gabriela Soutello
Por Jéssica Bandeira
“‘Ninguém vai lembrar de mim’, eu penso às manhãs, e é logo de manhã quando estanca o despertador e dançam os cílios e iluminam as pupilas quando me vêm à cabeça as pedras. Dos pés até a cabeça, as pedras, rochas duras fincadas nas rachaduras — as pedras — nos pés e também na cabeça, nas dobras e nas falhas, e elas me dizem, coral de pedras, me gritam, em céu e chão: ‘ninguém vai lembrar de mim’, e eu permaneço; não quero mudar.”
A colaboradora do Valkirias, Mia Sodré, definiu o livro de estréia de Gabriela Soutello como um abraço na solidão. É isso mesmo. Ninguém Vai Lembrar de Mim é uma obra sobre rachaduras. Rachaduras na alma, rachaduras causadas por sentimentos, por chegadas e partidas.
É um livro curto, mas muito intenso. Você o termina sentindo uma espécie de abraço na escuridão dos sentimentos. Gabriela Soutello, ao retratar o amor entre mulheres, consegue falar sobre a solidão de São Paulo e a incapacidade de amar a si enquanto ama outras mulheres. Levo comigo a lembrança de lê-lo em uma época de muito calor em minha cidade, e a sensação era de que eu estava derretendo junto com o que ela retratava. Derretendo dentro da minha própria solidão ao ser uma mulher lésbica. Ao contrário do título, acredito que todos ainda vão se lembrar de Gabriela Soutello. — Comprar!
Para saber mais: Ninguém Vai Lembrar de Mim: um abraço na solidão
O Dia em que Selma Sonhou com um Ocapi, de Mariana Leky
Por: Mia
“Nem sempre é possível escolher as aventuras para as quais fomos feitos.”
Este é um dos melhores livros que já li. Preciso deixar isso bem claro, pois esta será uma recomendação completamente sentimental. O Dia em que Selma Sonhou com um Ocapi foi um livro ímpar. Quando iniciei a leitura, fiquei intrigada pelo sonho de Selma e o mistério de quem seria a pessoa da pequena cidade a morrer. Selma não sonhava muitas vezes com um ocapi mas, quando acontecia, todos sabiam: alguém morreria naquele dia. Contudo, pensei que fosse ficar nisso: um mistério, todos se perguntando se sua hora havia chegado, pessoas atordoadas resolvendo suas pendências para, no final da história, a morte chegar e dar cabo à polêmica. Se tivesse sido assim não teria sido ruim, mas teria sido bastante previsível, talvez o suficiente para se tornar esquecível. Mas, aparentemente, Mariana Leky não gosta de fazer coisas esquecíveis ou demasiadamente previsíveis, e é por isso que a morte chega repentinamente e de forma atroz, dando uma virada na história e fazendo com que o leitor se pergunte o que acontecerá a partir dali.
O que acontece é a vida. O sonho profético de Selma, a forma com que lida com a anormalidade dele e com o alvoroço da cidade, atormentada pela perspectiva do temido sonho, Luise e sua maneira de deixar a vida fluir em seu próprio ritmo descansado, o cachorro Alasca, o óptico apaixonado, todos esses personagens e o encanto que parece cercá-los me fez passar metade da leitura achando que a história se passava em algum canto da América Latina. Como não gosto de ler sinopses ou resenhas antes de me aventurar em uma nova história, não sabia que o livro é alemão, e a autora também demora a deixar isso claro, só nos localizando no espaço lá pela parte de Frederik, o monge. Entretanto, o que me fez pensar na história com paisagens tropicais foi a narrativa da autora, que me lembrou a de Isabel Allende. Em A Casa dos Espíritos, seu romance mais famoso, também há um drama familiar discutido com tranquilidade e bom humor, um cachorro gigantesco que é mais metáfora do que animal de estimação, uma protagonista meio clarividente e acontecimentos insólitos perdidos no tempo e no espaço.
Não duvido que Mariana Leky tenha bebido da água de Isabel Allende, mas também preciso dizer que, apesar de haver semelhanças suficientes em ambos os romances para me fazer pensar que eles se passavam em locais próximos, também há diferenças suficientes para que o livro não configure apenas um reajuste da obra-prima de Allende. O óptico, com seu amor escondido, Luise, sempre uma sombra de Selma, sua avó, e Selma, que é como uma Clara Trueba na ficção da autora, com sua sabedoria tranquila e sua vida pacata. A beleza desse livro se encontra nos acontecimentos fortuitos que desencadeiam grandes mudanças lentamente. A ficção, de fato, imita a vida e é quase impossível ler essa história sem se encantar pela similaridade que há na vida de Luise com a vida de qualquer jovem de cidade pequena que cresceu antes do advento das redes sociais. A vontade que tive durante a leitura era de mergulhar dentro do livro e viver lá, junto daqueles personagens, para participar do desenrolar daquele conto-de-fadas moderno, tão absurdo que poderia ser real. Depois da leitura, fiquei com vontade de retomar tudo e voltar à primeira página.
O Herói Mutilado: Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura, Laura Mattos
Por Jéssica Bandeira
“A censura aos programas televisivos costuma ser menos estudada do que a ocorrida no teatro, no cinema, na música e nos jornais, por exemplo. É, certamente, um resultado do papel ambíguo desempenhado pela TV, que se aliou ao regime e dele se beneficiou, apesar de ter aberto espaço a conteúdos críticos. Ainda que as outras áreas culturais e a imprensa tenham experimentado essa relação dúbia em maior ou menor grau, nada se compara ao peso que a televisão brasileira adquiriu na ditadura, para o bem ou para o mal.”
Roque Santeiro foi uma novela muito importante para minha formação enquanto noveleira. Eu era pré-adolescente quando ela reprisou no Vale a Pena Ver de Novo, e lembro de dar muitas risadas com a Viúva Porcina, de Regina Duarte. Para além das risadas, Roque Santeiro foi uma novela fortíssima para a época, pois falava sobre o perigo de cultuarmos mitos. A história girava em torno do personagem homônimo, uma espécie de “fazedor de milagres”, cultuado na cidade de Asa Branca. Por isso mesmo, ela foi censurada integralmente em 1975, uma das poucas novelas a conseguir esse feito durante a ditadura. Em 1985, mesmo em uma suposta era de redemocratização, ela também sofreu picotes.
É esse resgate histórico importantíssimo que Laura Mattos faz por meio de O Herói Mutilado. Sua tese de doutorado pela USP foi transformada em livro, e digo com tranquilidade: é um livro essencial para qualquer pessoa que deseja entender o papel social das novelas e até que ponto a censura na ditadura militar podia chegar. — Comprar!
Os Manuscritos Perdidos de Charlotte Brontë, Ann Dinsdale, Barbara Heritage, Emma Butcher, Sarah E. Mair e Ann-Marie Richardson
Por Mia
“Os livros não tratam apenas de história: eles constituem e incorporam o próprio registro histórico vivo. É precisamente porque os livros têm esse poder de encapsular o passado que servem como lembrança da efemeridade do presente. Todo ‘livro velho’ é um memento mori, que sobrevive a seus antigos donos, lembrando-nos de que somos apenas os curadores temporários da história que seguramos nas mãos.”
Um livro perdeu-se no mar e, quase duzentos anos depois, encontramos histórias secretas, desenhos, anotações e manuscritos, com histórias sobre um reino fantasioso, tudo porque alguém conseguiu salvar aquele exemplar de um naufrágio. Poderia ser uma história literária de ficção, mas a verdade é que a vida das irmãs Brontë era quase ficcional. Olhando para trás, agora, e analisando as marcas que deixaram no mundo, podemos perceber que, desde cedo, não havia outro caminho para elas que não o literário. Os Manuscritos Perdidos de Charlotte Brontë reúne alguns artigos de mulheres acadêmicas, dedicadas a estudar as vidas de Charlotte, Emily e Anne Brontë. Iniciando com uma arqueologia do livro, onde temos informações detalhadas tanto do objeto livro, de seu autor, enredo e circunstâncias de publicação, quanto das mãos pelas quais o livro passou, já que cada pessoa que o lia deixava ali um pedaço de sua história anotada num rodapé ou em versos dedicados a alguém.
A história começa em 1810 quando Maria Branwell adquiriu o livro. Dois anos depois, ao se mudar, o navio em que viajava sofreu um acidente e ela perdeu quase tudo — exceto por pouquíssimas coisas, dentre elas o livro, resgatado do mar. Algum tempo depois, ao casar com Patrick Brontë e, logo em seguida, ter as filhas e o filho, o livro começou a ser passado de mão em mão pelos membros da família, e todos eles anotaram coisas em suas páginas, deixando um pouco de si na obra. Em 1861, após a morte do patriarca e único sobrevivente daquela família, Patrick Brontë, os bens que ele possuía foram leiloados, inclusive o livro, que ficou perdido por quase dois séculos. Somente agora ele veio à tona, comprado pela Brontë Society, que descobriu, no exemplar, não apenas um livro de poemas partilhado entre a família, mas manuscritos de histórias, contos e ideias escritas a próprio punho por Charlotte. Porém, para além da história interessante do livro, o que chama a atenção são as reflexões e novos fatos que foram apurados a partir dos manuscritos encontrados.
As pesquisadoras apontam para coisas como a forma com que Charlotte, em sua juvenília, escrevia personagens masculinos homoafetivos que praticavam algo semelhante ao BDSM. Os homens fictícios da adolescência da autora se puniam e humilhavam sexualmente, inclusive adotando nomes como “Belo Espancador” e “Inchaço Intumescido”, coisa que ela escondia do pai, um reverendo metodista, ao escrever com a menor e mais incompreensível caligrafia possível. Para além das análises sobre a juvenília de Charlotte, há um artigo interessantíssimo sobre O Morro dos Ventos Uivantes, obra-prima de Emily Brontë que, agora sabemos, foi inspirada num dos poemas pertencentes ao livro de sua mãe — mãe essa com a qual a autora não conviveu, já que a perdeu ainda muito criança e, é explicado na pesquisa, ela procura compreender com a escrita de seu clássico. Os Manuscritos Perdidos vai muito além disso, entretanto esses certamente são pontos relevantes numa história que não é um ponto final, mas o início de mais pesquisas sobre as vidas dessas escritoras. — Comprar!
O Pior Dia de Todos, Daniela Kopsch
Por Ana Luiza
“Eu já sabia que pessoas amadas podem nos machucar. Mais cedo ou mais tarde, vai haver um momento em que você vai estar entre aquela pessoa e algo que ela deseja. Então ela vai passar por cima de você. Por mais que não queira, por mais que ame você, ela vai fazer isso porque, quando isso acontece, é você ou ela. Foi assim com a minha mãe, quando quis liberdade. Foi assim com a Natália, quando quis o amor.”
Em 2011, a jornalista Daniela Kopsch foi enviada para o bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, para cobrir a tragédia ocorrida na escola Tasso da Silveira, invadida no dia 7 de abril daquele ano por um homem que assassinou doze crianças — a maioria delas, meninas. Durante o trabalho, a jornalista conversou com sobreviventes do ataque, parentes e amigos das vítimas, percebendo, pouco a pouco, o quanto existia naquelas histórias para além da tragédia e do sofrimento. Lançado oito anos mais tarde, O Pior Dia de Todos é resultado de tudo que a autora viu, ouviu e vivenciou naqueles dias; uma obra de ficção, sim, mas uma obra que se ancora em fatos e pessoas reais. Malu e Natália, suas protagonistas, são meninas cheias de desejos e expectativas, primas quase irmãs que crescem juntas e sonham juntas, mas que também possuem muitas dúvidas, e experienciam as dores e alegrias de serem meninas neste país.
Com uma prosa tão potente quanto delicada, O Pior Dia de Todos é um coming-of-age permeado por uma tragédia, mas que não se permite definir por ela. Dentre todos os comentários a seu respeito, é aquele contido na quarta capa, creditado à professora de Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcia Lisbôa, o mais certeiro deles: Daniela Kopsch “transforma uma história terrível em um hino à vida”. Só posso concordar. — Comprar!
Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, Taylor Jenkins Reid
Por Ana Luíza
“Sempre achei fascinante a maneira como as coisas podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, como o mesmo indivíduo pode ser bom e ruim, como alguém pode amar de uma forma linda e altruísta e ainda assim ser implacável na hora de arrancar o que quer da pessoa amada.”
Lançado originalmente em 2017, Os Sete Maridos de Evelyn Hugo chegou ao Brasil somente este ano, na esteira do mais recente sucesso da autora e um dos grandes lançamentos de 2019, Daisy Jones & The Six. Ambos os textos partem de formatos similares — a entrevista —, mas enquanto o segundo mimetiza o documentário, o primeiro se utiliza do próprio texto; uma premissa que soa menos ambiciosa, mas não por isso menos complexa. Taylor Jenkins Reid não se esquiva da tarefa de traçar uma personagem que é, ao mesmo tempo, mocinha e vilã, manipulada e manipuladora, vítima e cúmplice, e que, na busca por dinheiro, reconhecimento e amor, nem sempre age de maneira acertada, ou age de maneira profundamente equivocada.
Os sete maridos mencionados no título acabam funcionando apenas como capítulos da vida de Evelyn, dividindo sua história, mas não restringindo-a a eles. A autora faz uma leitura afiada sobre a realidade das grandes estrelas do século passado a partir de uma pesquisa minuciosa que utiliza fatos da vida de diferentes celebridades (vai de nomes como Marilyn Monroe a Greta Garbo) como base para a narrativa, revelando o quanto essas histórias continuam dolorosamente atuais. Em uma história que homenageia o cinema hollywoodiano ao mesmo tempo em que o critica duramente, e trata de temas que vão desde o evidente machismo da indústria cinematográfica a questões como homossexualidade, maternidade e perda, Taylor Jenkins Reid prova porque se tornou um importante nome na literatura contemporânea. — Comprar!
Para Toda a Eternidade, Caitlin Doughty
Por Thay
“As funerárias ocidentais amam a palavra dignidade. A maior corporação funerária americana até patenteou a palavra. O que dignidade quer dizer na maioria das vezes é silêncio, uma postura forçada, uma formalidade rígida. Os velórios duram exatamente duas horas. Uma procissão segue para o cemitério. A família vai embora antes mesmo de o caixão ser baixado na cova.”
Se em seu primeiro Caitlin Doughty compartilhou como é a rotina de uma funerária, em seu novo trabalho a escritora foi além e decidiu como diferentes culturas ao redor do mundo lidam com a morte. Falar sobre morte é tabu para muita gente e para elas é preferível evitar o assunto do que aceitar de que a morte é a única certeza de que temos nessa vida. Buscando descobrir como o assunto é tratado em diferentes partes do mundo, Caitlin Doughty embarca em uma viagem que a levará para um ritual na Indonésia onde um homem limpa o corpo mumificado do avô, à Laz Paz e ñatitas bolivianas, que nada mais são do que crânios de seres humanos que, de acordo com a crença local, são capazes de unir o mundo dos vivos e dos mortos, e Tóquio, onde conhece a cerimônia do kotsuage, momento em que os familiares do morto desmancham os ossos pós cremação segurando palitinhos de madeira.
Sempre de maneira respeitosa — e, por vezes, admirada — Caitlin Doughty nos mostra que a morte não é algo a ser temido e que faz parte da vida de todos nós. Para Toda a Eternidade, lançado no Brasil pela DarkSide Books, não deve ser encarado como um livro macabro e assustador, mas como um tratado sobre vida e morte, e como nossas escolhas ecoam no mundo até depois que o deixamos. É para ler de mente e coração abertos. —Comprar!
Para saber mais: Caitlin Doughty e as Confissões do Crematório — vamos todos morrer mesmo
Pequenas Realidades, Tabitha King
Por Thay
“Não ousou olhar para cima para ver se tinha rosto. Não tinha aprendido nas aulas da igreja que a visão do rosto de Deus era reservada para o Juízo Final? E nem mesmo a forte possibilidade de uma piada cuja vítima fosse a raça humana, em que Deus era tal qual a pintura de uma mulher, apagava a certeza de que, no Juízo Final, todos nós estaríamos mortos.”
Publicado no Brasil pela primeira vez na década de 1980 como parte de uma coleção de livros de fantasia, Pequenas Realidades ficou por anos esquecido nas prateleiras empoeiradas dos sebos — isto é, se você tivesse a sorte de encontrar um exemplar do romance de Tabitha King. Resgatado pela DarkSide Books e relançado com o padrão de qualidade da editora, Pequenas Realidades é um livro capaz de prender o leitor do início ao fim. Com uma narrativa recheada de sutilezas e bizarrices, o trabalho de Tabitha King entrelaça o mundo das miniaturas à dramas familiares e relações problemáticas e tóxicas.
Explorando muito mais as sensações humanas de seus personagens do que questões científicas, Pequenas Realidades nos mantém reféns da narrativa como se fôssemos pequenas marionetes nas mãos de Tabitha. É impossível deixar para ler depois o que acontece com seus personagens, querer descobrir e compreender melhor suas motivações. Os monstros de Tabitha King não habitam outros mundos, outros universos, mas andam aqui, entre nós. — Comprar!
Para saber mais: Pequenas Realidades: o universo disfuncional de Tabitha King
Pessoas Normais, Sally Rooney
Por Anna Vitória
“Marianne tinha a sensação de que sua vida real acontecia em outro lugar, bem distante dali, acontecia sem ela, e não sabia se um dia descobriria onde era e se seria parte dela. Volta e meia tinha essa sensação na escola, mas não era acompanhada por nenhuma imagem específica de que aparência ou sentimento a vida real poderia ter. Só sabia que, quando começasse, não precisaria mais imaginá-la.”
Eu passei boa parte de 2019 falando sobre Pessoas Normais, um livro que li em novembro de 2019. Falei sobre ele com pessoas que gostaram do livro, com pessoas que não gostaram, com pessoas que queriam saber se gostei e pessoas que não sabiam nada sobre ele, mas vieram conversar comigo para saber. Nessas muitas conversas, vira e mexe surgia a pergunta: sobre o que é esse livro? Pessoas Normais, olha só, é um livro sobre pessoas normais, mas o olhar extremamente íntimo e sensível — mesmo traduzido numa prosa crua — que Sally Rooney lança sobre elas mostra que existe pouca coisa normal nessa história toda, essa história de ser uma pessoa que vive num mundo atravessado por dinâmicas de gênero e classe e tantas outras que nos afetam, nos moldam, nos aproximam e nos afastam.
Se for para responder isso sem tentar ser uma pessoa engraçada, eu diria que Pessoas Normais fala dos encontros e desencontros de Marianne e Connell entre a adolescência e o início da vida adulta na faculdade. Como pessoas normais que são, eles não sabem lidar com seus sentimentos enormes, seja o que sentem um pelo outro e como se sentem sobre eles mesmos nesse nosso mundo nada normal. Sally Rooney consegue passar por todas essas questões pelo ponto de vista desses personagens que sentem muito e falam menos do que deveriam, mas que compartilham esse desejo absolutamente normal, que é encontrar alguém do outro lado que escute. É muito bonito quando isso acontece, no livro e na vida, e quem gostou do final de Fleabag certamente vai apreciar essa nova interação do mesmo tipo de sofrimento enternecido. — Comprar!
Prólogo, Ato e Epílogo, Fernanda Montenegro
Por Jéssica Bandeira
“Durante séculos, a arte teatral foi proibida à mulher, mas, a partir do momento em que nós pisamos naquela arena, a questão do gênero tornou-se irrelevante. Fora dali, o sexo feminino ainda enfrenta enormes preconceitos, porém, em cena, vai ganhar o melhor. De qualquer gênero. Vence o talento. A vocação. A vocação e o talento é que nos dão a absoluta liberdade de ser. Fora e dentro do palco.”
Acredito no poder da memória. Através dela, estabelecemos uma conexão poderosa com o presente e ressignificamos o futuro. O livro de Fernanda Montenegro não poderia ter sido lançado em um momento melhor, porque, mais do que nunca, precisamos acessar nossa memória para resistir e criar estratégias contra o desmonte da cultura brasileira.
As memórias de Fernandona nos mostram o que Chico Buarque já dizia: “Amanhã vai ser outro dia”. A atriz sobreviveu a um quase ataque terrorista, viu colegas serem perseguidos por suas peças de teatro e o presidente Fernando Collor desmontar o cinema brasileiro ao extinguir a Embrafilme. Aos 90 anos, ela precisa respirar fundo enquanto é chamada de sórdida pelo presidente da Funarte. Dessa forma, Prólogo, Ato e Epílogo é um relato apaixonado de uma atriz que permaneceu fiel ao que acreditava, mesmo quando era impossível fazê-lo. — Comprar!
Se Deus me Chamar Não Vou, Mariana Salomão Carrara
Por Karina
“Acho que se um bicho fosse me morder pra eu virar super-heroína eu nunca ia escolher aranha. A aranha tem muitas pernas e é sozinha demais lá em cima na teia tanto tempo esperando alguém aparecer.”
Eu não sabia muito o que esperar de Se Deus me Chamar Não Vou, romance da paulistana Mariana Salomão Carraro publicado pela editora Nós. Foi uma delícia ser surpreendida com uma ótima leitura, que combina com o excelente título do livro. Narrada por Maria Carmem, uma menina de 11 anos que sonha ser escritora, a história é tão honesta e real que bateu lá no fundo. A voz de Maria Carmem é muito típica de uma criança, crua e verdadeira, e por isso mesmo deixa a gente tão triste: é aterrador entrar no universo da protagonista. Isso porque ela nos lembra que alguns problemas e questões começam tão cedo na vida.
Maria Carmem conta sobre sua solidão, sobre o bullying que sofre na escola, sobre como ela se sente sozinha mesmo em casa, deslocada até quando está apenas com seus pais. Também é arrasador lembrar o quanto a gente se cobra desde sempre, desde cedo, e tudo isso vai se empilhando e deixando marcas. O livro é curto, mas é muito certeiro em fazer com que o leitor se torne parte da vida da narradora, conhecendo a dinâmica familiar, o dia a dia na loja que os pais têm, a rotina na escola, como as coisas mudam quando um quarto elemento começa a fazer parte da vida família. E, principalmente, é um livro que acerta muito na apresentação da personalidade da personagem principal. É fácil de se identificar. E difícil de não ser tocada. — Comprar!
Sobre os Ossos dos Mortos, de Olga Tokarczuk
Por Fabiane Secches
“Enquanto olhava para o planalto e sua paisagem em branco e preto, entendi que a tristeza é uma palavra importante na definição do mundo. Constitui a base de tudo, é a quintessência.”
Sobre os Ossos dos Mortos, de Olga Tokarczuk, chega ao Brasil dez anos depois de sua publicação. O romance, que mistura suspense, drama e humor, foi publicado aqui pela editora Todavia, com tradução de Olga Baginska-Shinzato. Tokarczuk nasceu na Polônia, em 1962, e venceu o Prêmio Nobel de Literatura de 2018, anunciado neste ano.
A narradora do romance é a Sra. Dusheiko, uma mulher que vive sozinha em uma pequena vila próxima a divisa com a República Tcheca. Não sabemos exatamente quantos anos ela tem, mas está na velhice e tem algumas “moléstias” — que ela não nomeia. A todas as outras coisas, Sra. Dusheiko dá um nome particular. Vive em sua própria lógica, um universo estranho, rico e divertido, com ética e sensibilidade especiais. O livro discute, literariamente, alguns dos principais temas contemporâneos, como a banalização da violência e a relação predatória dos seres humanos com a natureza. Sem dúvida, a melhor leitura que fiz em 2019. — Comprar!
Teto para Dois, Beth O’Leary
Por Débora
“Lembro a mim mesmo que não posso salvar ninguém: isso está nas mãos da própria pessoa. O melhor que podemos fazer é ajudar quando elas estiverem prontas.”
Em seu livro de estreia, Beth O’Leary nos entrega a história de Tiffy e Leon, duas pessoas que dividem a mesma cama, mas nunca se encontraram. Atraída por esse plot incomum e apaixonada pelo clichê potencial casal que divide uma cama, li a versão em inglês do livro antes da editora Intrínseca lançá-lo em terras tupiniquins.
Acontece que Leon precisa de dinheiro e o único jeito de conseguir uma grana extra, além de todas as horas a mais que tem pegado em seu emprego, é alugando seu apartamento para outra pessoa enquanto ele não está lá, já que trabalha praticamente o tempo inteiro. O acordo parece perfeito para Tiffy, que gostaria de morar sozinha depois de ser chutada pelo namorado e precisar arrumar um lugar para finalmente sair da casa do ex. Com delicadeza impressionante e um prosa suave, delicada e crescente, O’Leary nos surpreende a cada capítulo da história e conforme vai nos revelando as camadas de seus personagens — Leon tem um irmão na prisão que é inocente e só está lá pela cor da sua pele; o namorado de Tiffy era muito mais do que apenas um babaca inofensivo — vamos nos apaixonando pelos personagens assim como eles se apaixonam um pelo outro através de conversas curtas mas significativas por post-its e detalhes modificados ao redor do apartamento.
Teto para Dois é muito mais do que apenas um romance com personagens incríveis e queridos, é uma história com coadjuvantes carismáticos e uma convergência de plots envolventes que nos levam a sentir muito e a aprender a enfrentar coisas que nem sempre queremos, mas precisamos. — Comprar!
Trick Mirror: Reflections on Self-Delusion, Jia Tolentino
Por Fernanda
“Eu já senti tantas vezes que a escolha desta era é ser destruída ou então comprometer-se moralmente para continuar funcional — ou virar destroços ou então manter-se funcional por motivos que contribuem com a destruição.”
A maneira como utilizamos a internet, o jornalismo que é feito sem responsabilidade, o discurso que desenvolvemos ao redor da figura da mulher na última década, a demanda pelo casamento; capitalismo, política, religião, ecstasy, literatura de autoria feminina, reality shows; raça, gênero e suas intersecções: o primeiro livro de ensaios de Jia Tolentino, que atualmente escreve para a New Yorker, mas já editou o Jezebel e o The Hairpin, cobre todos esses temas e mais um pouco. Os temas são muitos e podem até parecer excessivos quando listados de maneira crua, mas a voz de Jia é consistente e potente, apontando com um olhar bastante preciso uma série sem fim de problemas relevantes à sociedade que se prepara para entrar na segunda década do século XXI. Ela, no entanto, não se sente pessoalmente responsável por apontar soluções para eles. Não é seu papel, afinal, enquanto observadora afiada da realidade em que vive — o que ela deve fazer é reportar, conectar as pontas que parecem soltas para compreender melhor a realidade, nos levar a pensar a partir das conexões que estabelece. É isso que Trick Mirror e suas reflexões sobre a auto-ilusão fazem.
Como toda coletânea, o livro tem ensaios que atraem mais do que outros, talvez a depender mais do interesse de cada leitor do que da qualidade da escrita em si, que é consistente. “The I on the internet”, uma reflexão sobre a eterna coexistência da beleza e dos horrores da rede mundial de computadores e onde ficamos nós no meio de tudo isso, e “Always Be Optmizing”, que observa e questiona as muitas maneiras como o sistema econômico em que vivemos, junto às expectativas sociais quanto à existência das mulheres de modo geral, parece querer nos transformar em máquinas cada vez mais aperfeiçoadas e menos humanas, provavelmente são os meus favoritos. Mas o livro é tão bem pesquisado e as reflexões de Tolentino sobre qualquer assunto que se proponha a abordar passam sempre tão longe da superfície que é difícil descartar qualquer um dos ensaios — ainda que meu interesse em sua curta trajetória como estrela de um reality show adolescente, por exemplo, seja muito pequeno (para não dizer inexistente). No fim das contas, a forma do ensaio tem muito menos a ver com o tema do que com a voz, e a voz de Jia é bastante especial. —Comprar!
Uma Mulher Não é Um Homem, Etaf Rum
Por Ana Luíza
“(…) — Às vezes queria ter nascido homem, só para saber como é. Teria me poupado muita dor na vida. — Ela pegou outro par de meias, parou e olhou para Isra. — Os homens sempre reclamam do trabalho que têm para sustentar a família. Mas eles não sabem… — disse e parou por um instante. — Não fazem a menor ideia do que significa ser mulher neste mundo.”
Romance de estreia da norte-americana Etaf Rum, Uma Mulher Não é Um Homem é uma história sobre opressão e silêncio, sobre machismo e misoginia, violência e dor, mas é também uma história sobre sonhos e expectativas, e, em alguma medida, também uma história sobre liberdade. Utilizando como base suas próprias vivências como mulher nascida nos Estados Unidos, mas criada em uma tradicional família de imigrantes palestinos, Etaf Rum narra as dores de três gerações de mulheres de uma mesma família — filha, mãe e avó — que enxergam a si mesmas e umas às outras de maneiras muito distintas, influenciadas tanto pela tradição muçulmana quanto pela proximidade com a Palestina e a época em que foram criadas, mas todas sujeitas a uma vida sem voz.
No texto que abre a narrativa, a autora escreve que essa é uma história jamais contada e, por consequência, nunca antes lida. E ela não está errada. Conforme relata no livro e em entrevistas, a comunidade palestina nos Estados Unidos possui barreiras muito bem delineadas, códigos que restringem seus membros, e sobretudo as mulheres, que não apenas são difíceis de transpor, mas que guardam, longe dos olhos do mundo, histórias como as de Deya, Isra e Fareeda. Com Uma Mulher Não é Um Homem, Etaf Rum quebra essas barreiras ao mesmo tempo em que reconhece que, aos olhos da comunidade palestina, essa também é uma espécie de traição, particularmente porque os expõe e reitera alguns estereótipos frequentemente associados a eles — uma discussão, por si só, bastante complexa. O livro, no entanto, é uma maneira de dar voz à mulheres que já nasceram sem voz alguma e que, ao contrário da autora, não tiveram a chance de escapar ao único destino que lhes é reservado. — Comprar!
Vermelho, Branco e Sangue Azul, Casey McQuiston
Por Thay
“Quando Alex era pequeno, antes de todos saberem seu nome, ele sonhava com o amor como se fosse um conto de fadas, como se fosse entrar em sua vida nas costas de um dragão. Quando ficou mais velho, aprendeu que o amor era algo estranho que podia desmoronar por mais que você o desejasse, uma escolha que você faz mesmo assim. Ele nunca imaginou que estava certo nos dois momentos.”
É fato: há muito tempo um young adult não me cativava tanto quanto Vermelho, Branco e Sangue Azul. O livro de Casey McQuiston, publicado no Brasil pelo selo Seguinte da Companhia das Letras, é uma comédia romântica com os melhores clichês do gênero e conta a história do romance inesperado entre o filho da presidenta dos Estados Unidos e o príncipe da Inglaterra. O livro funciona tão bem não apesar dos clichês, mas justamente por conta de todos eles: é de esquentar o coração ver dois jovens rapazes passando por todos aqueles momentos que conhecemos de trás pra frente, presentes em todas melhores comédias românticas, da fase de inimizade declarada, para atração sem freios e amor eterno.
Como se não bastasse o romance mais fofo a existir de ambos os lados do Atlântico, Vermelho, Branco e Sangue Azul ainda toca em temas importantes como homossexualidade, invasão de privacidade, tradições familiares, identidade biracial e muito mais. Se você procura um livro para aquecer o coração e renovar a fé na humanidade — e no amor — Vermelho, Branco e Sangue Azul é a pedida certa para você. — Comprar!
Para saber mais: Vermelho, Branco e Sangue Azul: Um romance real