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Pequenas Realidades: o universo disfuncional de Tabitha King

Brincar de bonecas faz parte do imaginário da maior parte das crianças. Gostem elas ou não, em algum momento da vida — essencialmente das meninas — a criança ganhará uma boneca e será incentivada a brincar de casinha, a inventar histórias com suas bonecas, a organizar a casa e preparar o lar. Diz-se que brincar de bonecas foi, por muito tempo, a maneira pela qual as meninas aprendiam os afazeres domésticos, treinando para o dia em que seriam donas das próprias casas, as “rainhas de seus respectivos lares”. Mas brincar de bonecas e montar casas para elas pode ir muito além de simples tarefas infantis e se transformar em hobbie, e obsessão, de muitos adultos — e esse é o ponto de partida de Pequenas Realidades, livro de Tabitha King relançado no Brasil pela DarkSide Books.

Publicado no Brasil pela primeira vez na década de 1980 como parte de uma coleção de livros de terror e fantasia, Pequenas Realidades ficou relegado às prateleiras dos sebos por mais de trinta anos. A trama criada por Tabitha King em seu livro é recheada de sutilezas e bizarrices na mesma medida em que lida com dramas familiares, relações problemáticas e tóxicas enquanto entrelaça tudo isso ao mundo mágico das miniaturas. Em Pequenas Realidades somos apresentados à Dorothy Hardesty Douglas, socialite e filha de um ex-presidente norte-americano cuja maior paixão na vida adulta é o mundo das casas de bonecas e suas miniaturas. Dorothy é dona de três modelos especiais: a Casa de Gengibre, emblemático lar da bruxa no conto “João e Maria”, a Casa de Vidro, de arquitetura modernista, e a réplica da Casa Branca, dada à ela quando menina e residente da versão em escala 1:1.

“O que será que nos atrai nas casas de bonecas e seus móveis pequenininhos? Talvez seja um pequeno e simples motivo, óbvio e apropriadamente infantil: a reprodução do nosso mundo em escala reduzida, no qual estamos no comando, assim como estávamos quando brincávamos de mamãe e papai, os pais das nossas bonecas, que se tornam nós mesmos.”

Ainda que não tenha realmente apreciado o presente quando criança, Dorothy cresceu para se transformar em uma verdadeira entusiasta das casas de boneca e de todo o pequeno universo a elas relacionado: miniaturas de móveis, papéis de parede que são réplicas dos originais, tapetes e tecidos que imitam com maestria as peças em tamanho real, gramas, árvores e frutas que parecem verdadeiras em cores e aromas. Dorothy não mede esforços, ou dinheiro, para alcançar o maior nível possível de realismo em suas coleções, e para isso ela conta com o esmerado trabalho de Lucy, viúva de seu falecido filho e mãe obstinada de duas crianças. É por meio das mãos e do trabalho competente da artesã que Dorothy consegue atingir a perfeição na ornamentação e composição de suas casas de bonecas ainda que, para isso, precise fingir considerar Lucy parte da família embora não nutra bons sentimentos com relação à nora.

Além de Dorothy e Lucy, Pequenas Realidades também nos apresenta Roger, ex-empregado do governo norte-americano que desenvolve um aparelho capaz de transformar em miniaturas qualquer objeto. Despedido, Roger decide manter o invento apenas para si; logo, ele e Dorohty entrarão em rota de colisão e, juntos, atribuirão usos tão bizarros para o “miniaturizador” que mudará para sempre as vidas de todos os envolvidos. Tabitha King cria, por meio desses personagens tão verossímeis e repletos de nuances, uma trama capaz de mesclar relacionamentos disfuncionais com pitadas de ficção científica. Ainda que a autora nunca entre nos pormenores do funcionamento da máquina inventada por Roger — em uma passagem do livro, por exemplo, nem o próprio cientista parece capaz de explicar o funcionamento do aparelho por ele desenvolvido —, essa não é realmente uma falha da narrativa.

“Não ousou olhar para cima para ver se tinha rosto. Não tinha aprendido nas aulas da igreja que a visão do rosto de Deus era reservada para o Juízo Final? E nem mesmo a forte possibilidade de uma piada cuja vítima fosse a raça humana, em que Deus era tal qual a pintura de uma mulher, apagava a certeza de que, no Juízo Final, todos nós estaríamos mortos.”

Em Pequenas Realidades, Tabitha King está muito mais interessada em explorar as sensações humanas, sejam elas de prazer, terror ou completa confusão e descrença, do que explicar com detalhes o funcionamento do equipamento inventado por Roger. A autora consegue nos manter presos em suas palavras, nos fazendo virar página após página com voracidade, desejando descobrir o desfecho de sua trama o quanto antes. Durante a leitura é possível amar e odiar seus personagens em igual medida — Dorothy, com seu egoísmo e narcisismo sem limites, torna fácil detestá-la, enquanto Lucy, com sua fibra e resiliência, nos inspira a torcer por ela e um desfecho feliz para sua trama. Tabitha King escreve um terror sutil: aqui não há monstros espreitando da escuridão, prontos para saltar em cima do próximo desavisado. Em seu livro há as piores nuances da alma humana que, aliadas à loucura e obsessão, podem se revelar como a face mais assustadora de uma pessoa aparentemente sã.

Os monstros de Tabitha King são deste mesmo mundo que o nosso, e por isso sua narrativa nos faz sentir medo, tensão. Mergulhando no psicológico de seus personagens, a autora mostra o lado podre da alma humana e como algumas pessoas são capazes de irem até o extremo para conquistarem seus objetivos. As sensações descritas por Tabitha King — o medo do desconhecido, a falta de entendimento a respeito do que está acontecendo, o sufocamento de se ver em uma prisão — são tão reais que a leitura se torna pesada em alguns momentos. A narrativa de Tabitha não poupa detalhes, e isso enriquece seu livro tornando simples mergulhar na trama e sentir a tensão crescer junto com os personagens.

Porém, a mesma escrita que me fascina pode afastar alguns leitores desejosos de mais ação e reviravoltas na trama — algo que não acontece em Pequenas Realidades. A autora é minuciosa e detalhista em diversos momentos, com longas descrições de ambientes e miniaturas, além de fluxos de pensamentos de personagens mas, ao mesmo tempo que isso me encanta pelo nível em que ela mergulha para contar sua história, pode se tornar enfadonho e cansativo para o leitor que prefere uma trama mais dinâmica. De qualquer maneira, Pequenas Realidades é um livro importante e seu retorno às prateleiras brasileiras, essencial.

Autora de dez romances, dois ainda não publicados, além de trabalhos diversos de ficção como contos, poemas e roteiros de televisão, o resgate de Tabitha King pela DarkSide Books por meio de seu selo DarkLove devolve à autora seu merecido lugar de destaque entre as damas do terror. Em Pequenas Realidades a autora constrói personagens dinâmicos, repletos de camadas e nuances, enquanto os utiliza para discutir a natureza humana e até onde cada um deles é capaz de ir em nome dos próprios interesses. Com tradução para o português de Regiane Winarski, Pequenas Realidades é uma história fascinante com personagens disfuncionais que participam de uma narrativa de crescente inquietação e tensão.

“Mary Shelley nos avisou sobre isso um tempo atrás, mas não ouvimos a mensagem dela, nem todas as outras no caminho. Nossa tecnologia é ao mesmo tempo a coisa mais perigosa do mundo e nossa mais provável salvação.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a DarkSide Books.


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