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“Àqueles que custam a encontrar terra firme”: Vocação para Naufrágios, por Karina Ripoli

Com seus versos, ela mesma encanta, tal qual uma sereia. Ou desbrava momentos e sentimentos como uma maruja. A sensação ao ler Vocação para Naufrágios é a mesma de se sentir arrastado pela maré, os pés, sem alcançar o fundo, inertes e vulneráveis, ou deixar-se lavar pela água salgada do oceano que habita nossos olhos. Para aqueles que sentem que o mundo, muitas vezes, é uma competição de natação quando nem se sabe nadar, encontrarão na poesia que navega estas páginas uma espécie de porto seguro, afinal, Karina Ripoli, com muito sentimento e poesia, dedica seu livro “àqueles que custam a encontrar terra firme”.

“Este livro foi escrito
quase todo —
debaixo d’água
aqui habitam
palavras de espanto
as vozes que escuto
na minha cabeça
umas paixões urgentes
e o meu desejo
de que não emerjas
incólume.”

vocação para naufrágios

Do coração do Centro-Oeste, a poeta brasiliense convida o leitor a se aprofundar em uma diversidade de sentimentos que ora pesam, ora nos fazem flutuar. O permitir-se naufragar é um misto de desespero, mas também a excitação, afinal o corpo, ao afundar, também dança ao se debater. E, ao atravessar estes mares que nunca foram navegados, ou que já foram exaustivamente revirados, somos levados a emergir e nos transformar. Karina Ripoli, que é mestra em Literatura e autora do também livro de poesia Palavra de Copo Virado, explora em Vocação para Naufrágios as expectativas externas e internas, temas que abordam o feminismo, a saúde mental, o limiar entre amor, desejo e dor, e os muitos elementos que compõem nossa odisseia cotidiana.

Ao iniciar o livro com um poema que traz o título da obra, percebemos o que significa ter “vocação para naufrágios”. Um barco afundando é essencialmente uma tragédia, a consequência de algo que deu errado, assim, a voz do poema mostra uma habilidade certeira para o estrago, para as ruínas. Porém, muito além disso, sentimos que o eu poético permite-se mergulhar em suas cascatas de emoções, deixa-se levar pela maré, guiado pela voz das “musas”. Tal como o percurso da água, que é livre, volátil e imprevisível, o estilo da poesia de Karina desliza entre as letras, cria um ritmo próprio às palavras, brinca com a sinestesia e nos enche de imagens fantásticas, com sereias, deusas, ninfas e musas.

O poema “odisseu não retorna a ítaca” é um excelente exemplo de como, de forma singela, Karina utiliza influências mitológicas de uma forma tátil. O que aconteceria se Odisseu simplesmente desistisse e não retornasse à Ítaca, o objetivo de sua existência? Na contramão das narrativas heroicas, que perseguem a conquista principal de suas vidas, o poema nos convida a “brindar o fracasso” de vez em quando. Para aqueles que estão fartos de “semideuses” no mundo, como diria uma das várias faces de Fernando Pessoa, encontram-se pessoas (ou eus-poéticos?) reais nestes versos.

navegar
é preciso
disse o poeta maior
naufragar
é impreciso
imprevisível
imprescindível
isso digo eu”

O leitor não sai ileso dos seus versos, pois o livro nos convida a um mergulho profundo, como aqueles em que só se vai descendo, descendo, onde a escuridão reina e o medo de ficar sem ar emerge. O mergulho primeiro passa pelo colapso, faz flutuar por entre ruínas submersas, para, por fim, em um porto mais ou menos seguro, nos ancorarmos.

A beleza é um elemento que suas palavras sabem como invocar. A sensação que temos ao ler estes versos é que a poeta é realmente acompanhada por musas. São imagéticos, sonoros, sinestésicos. Alguns textos afagam como a voz de uma sereia, outros parecem rasgar o peito como o surto de uma tempestade de verão. Tornam épico o lirismo do cotidiano, nessa grande aventura que é permitir-se sentir demais, permitir-se enlouquecer. Em Vocação para Naufrágios há deusas que precisam ser onipresentes porque não têm outra opção: e se desdobram entre dar vida ao mundo, pegar ônibus e rotinas exaustivas de trabalho que não cessam quando voltam para casa.

“a minha deusa tem seios fartos e mãos de afago
e ainda que seus olhos sejam nascentes de rios
ainda que quando ela diga que se faça água
nenhuma gota ouse desobedecer
ainda que seus quadris largos
tenham dado origem a incontáveis mundos
(…)
a minha deusa é uma mãe solteira
nunca um homem cuidou de tanto filho
nem foi assim onipresente.”

Em “tentativa e falha de invocação à musa”, de uma forma extremamente artística, a poeta aborda a dificuldade de se criar em uma rotina exaustiva (algo com que a maioria de nós, tenho certeza absoluta, é capaz de se identificar). Na impaciência de uma quarta-feira, o eu-poético se indaga onde poderia estar a musa (ou a inspiração, se assim podemos livremente interpretar): presa no trânsito, na fila do banco, na correria do dia a dia: “ser musa já não paga mais as contas neste país”. Quando a criação é uma forma de respiro, nos sentimos sufocados, afogados em uma realidade em que a correnteza é mais forte que nossas braçadas. Nessas águas turbulentas, seus versos denunciam as intempéries que as mulheres combatem, todos os dias, em uma aventura épica na qual somos obrigadas a destruir monstros para não nos sujeitarmos às expectativas da sociedade.

“(…) é preciso levantar da cama
todos os dias
e mesmo sendo brasileira
(…)
é preciso perder
um pedacinho de alma a cada dia
e a poesia nem se sabe mais
onde foi parar”

Na camada mais abissal de seus versos, a saúde mental ganha uma profundidade pesada, latente, real. O gosto salgado que vem ao paladar é muito além do afogamento, mas o salgado do oceano dos olhos. Assim, em poemas como “diagnóstico” e “santa trindade”, o adoecimento mental ganha destaque. É quase como se o eu poético se sentisse fadado a enlouquecer (e como não, nesta realidade que vivemos?). Mas quando se encontra prestes a desistir, a certeza de que há sempre algo novo a se experimentar é presente. Particularmente, sinto que a metáfora do naufrágio é perfeita para descrever a indecifrável experiência que é conviver com a depressão e a ansiedade. A sensação de ser levado pela correnteza, de faltar o ar e o gosto salgado na boca são elementos que Vocação para Naufrágios evoca. “se hoje não me mato” é um de seus poemas mais fortes, na minha opinião. O limiar entre desistir de tudo e “procrastinar” o fim, para ter a chance de se experimentar as coisas favoritas uma última vez, é uma das coisas mais reais que já li.

Ao atravessar essas águas turbulentas, seus versos também servem como âncora. Para aqueles que buscam a poesia tanto nos livros quanto na beleza do dia a dia, as palavras realmente são salva-vidas, quando por vezes nos sentimos levados pela correnteza.

“mas a caneta que empunho
neste instante
ao escrevê-lo
é meu colete salva-vidas”.

Um poema que se preze, assim já diz o seu poema intitulado “um poema”, deixa marcas, cicatrizes. “Te faz sentir alguma coisa”, e um corpo atravessado pela poesia jamais será o mesmo. Cada verso de Vocação para Naufrágios é quase uma endoscopia, revirando o interior de quem lê e retratando o que está entre as vísceras. Dá para perceber que a sua escrita procura incitar alguma coisa, qualquer coisa que faça o seu leitor sentir na pele, revelando o que nos é vital e fatal ao mesmo tempo.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!