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Paula Proctor e a árdua jornada de trabalho feminina

Pensar sobre a jornada de trabalho exercida por mulheres é, apesar dos grandes avanços, enxergar a desigualdade. Somos maioria nas universidades e mais da metade da população nacional em idade ativa — o que, por consequência, deveria resultar em uma constante inclusão feminina no mercado de trabalho —, mas, de acordo com pesquisas recentes, a taxa de participação feminina nas empresas ainda é mais baixa do que a masculina.

Além das horas exercidas sob o comando de empresas, mulheres possuem uma carga dupla, às vezes tripla, de “trabalho extra”, consequência de vivermos em uma sociedade patriarcalista, que exige o cumprimento de normas vistas como responsabilidade da mulher: o cuidado da casa, da família, das tarefas domésticas que incluem desde a manutenção da limpeza da casa até o preparo de refeições. De acordo com a pesquisa levantada pelo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, divulgado pelo Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com dados traçados de 1995 a 2015 no Brasil, mulheres trabalham em média 7,5 horas a mais que os homens por semana (somando-se a dupla jornada), possuem maior instrução educacional, mas ainda recebem menos do que a parcela masculina.

Se “a arte imita a vida”, nada mais justo do que sermos retratadas na ficção de maneira correta, com tais variações de tratamento mostradas — e porque não, a partir disso, mais discutidas. Nesse quesito, Crazy Ex-Girlfriend soube mostrar de forma precisa o que é ser mulher em um mundo que exige da mulher trabalho em dobro e poucas oportunidades.

A série, que gira em torno da personagem Rebecca Bunch (Rachel Bloom), possui diversas mulheres que, em diferentes contextos, mesclam nuances que constituem personagens mais verossímeis, alinhadas com aquilo que entendemos como uma mulher real. Um exemplo disso é o enredo da personagem Paula Proctor (Donna Lynne Champlin), que desenvolve-se desde a primeira temporada. Paula trabalha em um escritório de advocacia, tem um casamento de anos, é mãe de dois filhos adolescentes e se divide, ainda, entre ser amiga de outras mulheres e tentar, mesmo que no pouco tempo que lhe resta, cuidar de si mesma.

Se os primeiros episódios apresentam uma personagem altamente semelhante às mulheres que diariamente fazem parte das nossas vidas, não é mera coincidência. A estabilidade alcançada após tudo o que Paula já viveu a levou para um momento cômodo, em que viver consiste tão somente em cumprir com aquilo que é esperado dela como mãe, esposa e dona-de-casa que trabalha fora. Aparentemente, como a sociedade insiste em ditar, uma mulher não pode — e nem deve — querer mais do que um casamento, marido e filhos que todas as noites esperem o jantar ser servido. Na segunda temporada, contudo, temos a construção de uma Paula que quer, e busca, por mais, uma representação fiel da realidade feminina, que pouco a pouco se desprende do ideal imposto pelo patriarcado. Apesar de estar em um emprego estável há anos, é o cotidiano no mercado de trabalho que a mostra o seu potencial e realça a própria capacidade de ser uma advogada, tão capaz quanto aqueles com quem divide as mesas de reunião. É nesse momento que Paula, então, decide tornar-se aquilo que sonha e inicia seus estudos em Direto.

Os empecilhos, é claro, são muitos: mesmo com dois filhos já adolescentes e, portanto, mais capazes e independentes, Paula sabe que os deixar livres não trará bons resultados. Além disso, é Paula a responsável por todos os afazeres domésticos — mesmo dividindo a casa com outros três homens. O tempo, mesmo sendo apenas uma medida inventada e que nada pode definir sobre quem somos e o que queremos construir a partir disso, bate continuamente seus ponteiros em desfavor aos sonhos de uma mulher que quer mais, independente dele. Mas o principal problema, é claro, parte daquele que mais deveria apoiá-la: seu marido.

“I thought my dreams
would come true
But then as I grew
The world was all like
[laughing] NOPE!”

“Eu pensei que meus sonhos
se tornariam realidade
Mas então enquanto eu crescia
O mundo estava tipo
[rindo] NÃO!”

Scott Proctor (Steve Monroe), marido de Paula, em uma conversa com a esposa, percebe o desânimo que ela vem sentindo, principalmente como resultado de uma pesada rotina diária, e por isso sugere que ela procure algo que a motive, que lhe faça bem. Esse é um dos fatores que a leva a buscar o antigo sonho profissional e o próprio bem estar, algo pelo qual Scott, de início, se mostra favorável. Entretanto, no decorrer dos episódios, as novas responsabilidades que lhe são atribuídas — como o cuidado da casa e dos filhos — não tornam Scott mais empático. Pelo contrário: enquanto seria esperado que, após anos de casamento, ele pudesse ser franco e respeitoso para com o compromisso firmado com sua mulher, ele permite que tal incômodo o leve a uma traição com uma colega de trabalho. Paula não permite que ele se torne uma pedra em seu caminho e, após pedir que o marido saia de casa para que ela tenha espaço para se reencontrar e talvez perdoá-lo, continua em busca da vida que almeja para si mesma — ainda que esse novo cenário não favoreça seu papel enquanto mulher que reconhece ter potencial para aquilo que foge do esperado da rotina de um casamento.

Em outro plano, a jornada exaustiva de Paula entre trabalho, estudos e afazeres domésticos a leva a momentos de exaustão física e mental que afetam sua forma de se relacionar com os outros e principalmente, consigo mesma. Priorizar a própria carreira em detrimento daquele que acredita-se seu papel social não deveria, de forma alguma, interferir em sua saúde física, tampouco mental. O roteiro da série, no entanto, é mais esperto que isso, e sabe que Paula representa a realidade de uma parcela considerável de mulheres no mundo em que vivemos.

Crazy Ex-Girlfriend é realista, do ponto de vista do que pode constituir a vida de uma mulher casada: ainda que a independência feminina seja apoiada, nem sempre ela afeta positivamente aqueles que estão ao redor. Pensar a respeito do que consiste a jornada de trabalho de uma mulher e as expectativas relacionadas ao que deve ou não ser realizado por cada uma de nós dentro e fora de casa, é reconhecer que ainda precisamos conquistar espaços que deveriam pertencer a todos — independente do sexo.

Tatiane Ferrari tem carinha de Sonserina, mas o coração é Lufa-Lufa. Acredita mais em personagens de séries do que em pessoas reais.