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The Last Kingdom e o que suas personagens femininas têm a nos dizer

O ano é 872. Os vikings avançam pelos pequenos reinos que compunham a Inglaterra em busca de terras, escravos e riquezas, instaurando o terror e o caos por onde passavam e transformando as belas paisagens europeias em um campo de batalha. É nesse cenário de beleza e tragédia que se passa The Last Kingdom, série lançada em 2015 e exibida no Brasil pelo canal History.

Atenção: o texto contém spoilers!

Baseada nas Crônicas Saxônicas de Bernard Cornwell, The Last Kindgom acompanha a trajetória de Uhtred (Alexander Dreymon), um nobre nascido em terras britânicas, mas levado ainda criança por vikings dinamarqueses. Adotado e criado quase como um filho por Earl Ragnar (Peter Gantzler), sua vida vira de cabeça para baixo depois que sua família é vítima de um ataque do qual ele não apenas é um dos poucos sobreviventes como um dos principais suspeitos. Ao lado de Brida (Emily Cox) – também nascida inglesa, mas criada pelos dinamarqueses, e uma das sobreviventes do ataque – e sem quaisquer raízes que o prendam a algum lugar, Uhtred parte em busca das terras a que tem direito, na região da Nortúmbria, ao mesmo tempo que procura provar sua inocência e vingar sua família.

Brida, no entanto, não é a única mulher a cruzar o caminho de Uhtred: ao longo dos oito episódios que compõe a primeira – e até o momento, única – temporada da série, várias personagens femininas ganham espaço na trajetória do protagonista, exercendo papéis com maior ou menor relevância; todas elas fundamentais ao evidenciar que as batalhas entre ingleses e vikings não foi um capítulo da História construído apenas por homens, muito embora suas vozes sejam ouvidas com maior facilidade.

A história de The Last Kingdom se entrelaça intimamente com a História da própria Inglaterra – das invasões dinamarquesas e a queda dos reinos saxões, até as batalhas de Alfredo e a unificação da Inglaterra, entre outros fatos históricos – e muitos personagens são, de fato, uma representação de personalidades históricas. Cornwell, autor dos livros no qual a série é baseada, é um conhecido estudioso da História Inglesa, e o cuidado presente em seus livros é também mantido na série. É natural, então, que mulheres não somente existam no universo da série, como também exerçam seus papéis de maneira independente, em conformidade com seu papel histórico no conflito e sua complexidade enquanto seres humanos. Na prática, contudo, o que acontece não poderia estar mais distante disso e a série, por fim, reflete problemáticas que não existem de maneira isolada, tampouco estão reservadas somente ao contexto da série.

I prefer the company of the gods to stupid men

De todas as personagens femininas presentes em The Last Kingdom, Brida é, muito provavelmente, a mais marcante, e também a mais recorrente; um retrato perfeito do que a ficção entende como um bom exemplo de mulher forte: língua ferina, independente e feroz, alguém que não precisa de ninguém além de si mesma para manter-se viva e que não se deixa ser controlada por homem algum. Nascida na Inglaterra anglo-saxã, mas levada ainda criança pelos vikings, Brida entra em contato com a cultura dinamarquesa e, assim como Uhtred, se identifica muito mais com os costumes e crenças dos vikings do que com a doutrina católica que rege sua terra natal. No entanto, quando Earl Ragnar e sua família são mortos, Brida se torna uma forte suspeita aos olhos de outros dinamarqueses, que não eram capazes de acreditar inteiramente na sua conversão, e que esperavam que, em algum momento, tanto ela quanto Uhtred se vingassem daqueles que foram responsáveis pelo fim de suas famílias biológicas. Os dois, então, fogem em busca da ajuda do rei Alfredo (David Dawson), em Wessex, sua última esperança em um território dominado por escandinavos.

Diferente da maior parte das personagens femininas da série, que surgem primeiro como as esposas ou filhas de alguém, Brida é uma mulher livre e sem raízes, que luta pelos seus interesses e, no máximo, pelos de Uhtred – quando eles são similares aos seus. Muito de seu comportamento se deve ao fato de que, diferente das mulheres inglesas católicas, as vikings escandinavas possuíam muito mais autonomia e direitos do que qualquer outra mulher europeia na época. Embora fossem responsáveis pela maior parte das tarefas domésticas e não tivessem controle sobre o casamento, essas mulheres podiam se divorciar de seus maridos caso fossem traídas ou maltratadas, ou ainda se o esposo não desempenhasse adequadamente seu papel de provedor, sustentando a esposa e os filhos de maneira adequada. Elas também mantinham a posição de chefe da família na ausência do marido e não eram tratadas como uma propriedade do homem, muito menos seus pertences adquiridos antes do casamento e os filhos – que se mantinham propriedade da mãe mesmo após o divórcio. Brida não tem filhos e não é uma mulher casada, mas possui total autonomia sobre suas escolhas, e muitas das decisões que toma enquanto busca ajuda ao lado de Uhtred são importantes para que os dois não terminem com a cabeça em uma bandeja.

Ao passo que Brida é a razão e a inteligência, Uhtred é apenas um homem imaturo em comparação, insubordinado e teimoso, que enfia os pés pelas mãos com alguma frequência e quase sempre pensa com a cabeça errada. Mesmo que os dois mantenham um romance por um breve período, o relacionamento nunca se torna a parte mais importante da sua vida e nunca é motivo para que Brida deixe de ser quem é ou de tomar decisões autênticas, seguindo aquilo que acredita. Ela rejeita o comportamento submisso das mulheres católicas, e o fato de Uhtred se aproximar cada vez mais dos saxões não a faz, automaticamente, se aproximar também, porque aquilo não é o que ela quer e jamais vai ser. Brida reconhece a hora em que os dois devem seguir caminhos diferentes, mesmo que ela e Uhtred tenham vivido tantas coisas juntos e segue para longe com Ragnar (Tobias Santelmann), o filho, em busca da vida que desejava para si junto aos vikings. Mais tarde, ela também estaria em campo de batalha e não é uma surpresa que seu desempenho seja tão bom quanto o de qualquer homem. Brida é uma das personagens mais consistentes de The Last Kingdom, a que apresenta mais nunces e consegue ir além, desenvolvendo-se longe da sombra do protagonista. Ela é uma mulher complexa que sente raiva, amor, ciúmes, inveja, medo e tristeza, às vezes ao mesmo tempo, tão humana e complicada quanto deveria ser.

Como muitas mulheres na série, porém, não demora até que Brida se torne um empecilho para o próprio Uhtred, que o impede de seguir em frente nas negociações com Alfredo. Quando sai de cena para reconstruir sua vida ao lado de Ragnar e do povo viking, Brida e Uhtred já tinham opiniões conflitantes em relação aos caminhos que ambos seguiriam dali em diante, o que faz com que o personagem deixe de ouvi-la para seguir os próprios instintos – quase sempre equivocados. Brida deixa de se tornar uma peça decisiva dentro da narrativa porque já não se dispõe a ajudar Uhtred a alcançar algo que ela própria não deseja, e a partir daí é preciso tirá-la de cena para que a história continue seguindo seu rumo. O timing do reencontro com Ragnar é preciso: ao levar Brida de volta aos dinamarqueses, Ragnar deixa Uhtred livre para firmar laços matrimoniais com Mildrith (Amy Wren), uma moça saxã, e conquistar a confiança de Alfredo.

I have found peace. I hope you can do the same

Em um extremo oposto, Mildrith é uma católica bastante devota, delicada e gentil, que se casa com Uhtred muito mais pelo seu senso de dever para com o rei e sua família do que qualquer outra coisa – e muito da sua força reside justamente em sua gentileza, devoção e fé. Herdeira das terras de sua família, ela mantém a lealdade daqueles que trabalham em suas terras a partir da sua gentileza, simpatia e cuidado, e são essas características que os mantém ao seu lado mesmo em momento difíceis. É muito diferente da relação que essas pessoas mantêm com Uhtred após o casamento dos dois, por exemplo, a quem tratam com respeito pela sua posição, mas que não mantêm nenhum tipo de vínculo ou lealdade, e a quem viram as costas tão logo o casamento com Mildrith começa a ruir, numa espécie de proteção que se mantém até que a moça precise partir e abandonar suas terras.

A princípio, a união com Uhtred não é de todo um fracasso: Mildrith é uma esposa dedicada, que não se submete à vontade do esposo e não abandona suas crenças pela descrença do outro, mas que o trata com respeito e carinho; que, por sua vez, a trata de volta da mesma forma. Pouco a pouco, os dois ultrapassam as barreiras de suas diferenças ideológicas para construírem um relacionamento que não é perfeito, mas que parece sólido e benéfico para ambos – algo que só é quebrado quando se torna claro que a manutenção do casamento não é uma prioridade para Uhtred tanto quanto é para Mildrith. A religião se torna o elefante na sala que os dois não conseguem ignorar: com um filho recém nascido, tanto Mildrith quanto Ultred deixam de ser tão tolerantes em relação às crenças do outro, dando luz a um conflito que não conduz apenas as discussões do casal, mas grande parte do conflito entre vikings e saxônicos. O casamento dos dois, no entanto, só encontra um ponto final quando Uhtred abandona sua família para ficar com Iseult (Charlie Murphy), uma rainha pagã, e deserda o próprio filho por este ter sido batizado em sua ausência; o que, automaticamente, constrói e perpetua um grande clichê das relações femininas: a rivalidade entre mulheres que nasce a partir da disputa por um homem. Frustrada, Mildrith culpa a única pessoa que não era culpada de nada – Iseult – e a expulsa de sua casa, quase como se sua presença fosse a única responsável pelo fim de seu relacionamento quando, na realidade, essa era uma culpa exclusiva de Uhtred, que não respeitaria o compromisso firmado com ela muito antes de cruzar o caminho da bruxa pagã – o que fica evidente no modo como ele passa a tratá-la após cada briga.

Por fim, é Mildrith quem sofre todas as fases da perda, quase sempre sozinha: primeiro, do marido; depois, do filho único. Mais uma vez, a sensação é a de que, assim como Brida, Mildrith deixa de ser uma peça fundamental no jogo de Uhtred para se tornar um obstáculo, que deve ser tirado do caminho para que a história continue a seguir em frente. O casamento com Mildrith deixa de existir para se tornar uma infeliz lembrança do passado, que se torna ainda mais traumática após a morte do filho – um momento que Mildrith enfrentaria inteiramente sozinha, não fosse a cumplicidade construída com aqueles que a serviram ao longo dos anos e que ficam ao seu lado até que ela sinta que precisa partir para longe e abandonar suas terras, deixando para trás todos os momentos, sonhos e sentimentos construídos e destruídos naquele mesmo lugar. Mas ao mesmo tempo, a solidão é uma parte da qual ela não pode fugir completamente, e é por isso que, mesmo cercada de amor e carinho, Mildrith precisa enfrentar sozinha a sua dor. Não é por acaso que, mais tarde, ela se tornaria uma freira: sendo a fé uma parte tão fundamental da sua vida, ela passa a tirar suas forças da religião, crença e devoção a Deus, e é isso que a ajuda a seguir em frente e encontrar paz em um cenário tão desolador.

I’ve seen too much, I know too much, I want to see no more

A jornada de Iseult, contudo, parece ser ainda mais problemática. Jovem e virgem, com conhecimentos medicinais e mágicos, uma voz doce e um coração enorme, Iseult desconstrói profundamente o estereótipo da bruxa pagã imortalizado pela Igreja Católica, ajudando, inclusive, os saxões em sua luta contra os dinamarqueses. Ainda que não seja vista com bons olhos pela comunidade católica, suas visões proféticas orientam o exército de Alfredo, o que imediatamente a faz uma peça determinante para a ascensão inglesa, além de uma importante aliada na manutenção da saúde do rei e seu exército.

Casada inicialmente com o rei Peredur (Paul Ritter), Iseult encontra em Uhtred uma oportunidade de se ver livre, e é isso que a motiva a se aproximar do guerreiro. Quando a lealdade e devoção inesperadas dele ameaçam se tornar um problema para o seu casamento, no entanto, ela não hesita em dizer que não quer ser a responsável por separar um homem de sua família, uma postura que mantém mesmo depois de ser tratada com hostilidade por Mildrith. Mais tarde, quando os dois por fim fogem e o romance é consumado, ela não se torna uma mulher ressentida tampouco. Mesmo o olhar acusador dos católicos que condenam seu paganismo não a fazem uma mulher amarga, preferindo lidar com o incômodo com gentileza, cuidado e afeto. Iseult faz remédios, cuida de quem está doente, coloca a si mesma em risco para salvar outra mulher de ser estuprada e se oferece para realizar um ritual capaz de salvar a vida do filho do rei Alfredo – e ao final, quando todos celebram a recuperação do bebê, é ela quem chora pela criança que, em algum lugar do mundo, teve sua vida usurpada para que outra fosse salva.

De todas as mulheres introduzidas ao longo da primeira temporada da série como possíveis interesses amorosos de Uhtred, Iseult talvez seja a única que não se transforma em um fardo à medida que a história avança, construindo uma conexão profunda e sincera com ele. Mas sua jornada termina de maneira abrupta quando é assassinada durante a Batalha de Ethandun, em um ataque surpresa à caravana saxã onde escondiam-se mulheres e crianças inglesas. Mais tarde, no campo de batalha, sua cabeça é exibida como um troféu, o que motiva Uhtred a buscar vingança e avançar contra os dinamarqueses. Seguido pelo exército britânico, sua vitória é óbvia, mas não deixa de ser um desfecho amargo, doloroso e muito, muito cruel. De maneira mais ampla, seu arco traz à tona não apenas a discussão sobre mulheres utilizadas como plot device em histórias que nunca são exatamente sobre elas, mas faz também um paralelo com a ideia da existência de um castigo divino ligado, principalmente, a valores morais. Iseult era uma bruxa pagã que abandonou o marido para ir atrás de sua liberdade, que fugiu com um homem casado e perdeu sua virgindade fora do casamento – e o fato de ser uma pessoa tão gentil e bondosa não é suficiente para absolvê-la de seus pecados.

Not everybody enjoys a fool

O que nos leva a outras duas mulheres que não possuem nenhum vínculo com Uhtred, mas desempenham papéis que se tornam relevantes à medida que a história se desenvolve: Hild (Eva Birthistle), uma freira indômita que luta bravamente ao lados dos saxões; e Aelswith (Eliza Butterworth), esposa de Alfredo e figura constante ao seu lado.

Após quase ser estuprada durante um ataque dinamarquês, Hild utiliza sua própria raiva para enfrentar aqueles que a aterrorizaram no passado. Sob todos os aspectos, ela é uma mulher em busca de vingança, mas o objetivo particular não a impede de agir com consciência, respeitando as ordens que recebe e as orientações do rei. Diferente da freira boazinha ou megera, Hild subverte – e muito – a concepção estereotipada que havia nosso imaginário coletivo, trazendo para a tela uma representação completamente nova; ser freira é apenas um detalhe, que não a define tanto quanto o trauma e a vingança não o fazem.

Em tempo, Hild também passa a se interessar com mais força pelas questões que concernem Wessex e se oferece para ajudar o reino também fora do campo de batalha, no recrutamento de soldados e como mensageira do rei; uma posição até então desempenhada somente com homens e que ela executa com louvor.

Aelswith, por sua vez, é uma mulher insuportável na maior parte do tempo, mas com uma consciência ímpar a respeito de seu papel enquanto rainha. Sua fé inabalável é o que a move em direção não apenas de seus interesses particulares, mas principalmente dos interesses de sua igreja e religião. Com um senso de responsabilidade imenso, ela confronta homens, mulheres, padres, dinamarqueses e até o próprio rei, ou quem quer que se coloque em seu caminho, para defender aquilo que acredita ou aqueles que ama. Não demora para que ela se torne uma figura impopular na corte, mas essa jamais é uma questão para a própria Aelswith; ela não está em busca de aprovação. Assim, a rainha segue fiel àquilo que acredita, sem se permitir abater pelo o que pensam ou falam a respeito dela.  

You can’t ignore what’s true

O que talvez seja a grande lição deixada pelas mulheres de The Last Kingdom. Ainda que estejam inseridas em um contexto diegético desvantajoso, elas encontram forças para subverter a realidade opressora e alcançar seus objetivos, conquistando espaços – seja de maneira tímida, seja de maneira ousada – que muito se apressam em lhes negar.

É por isso que essas mulheres também são um lembrete de que existe um caminho enorme a ser percorrido, que só é subvertido quando passamos a enxergar o entretenimento também como formador de opinião. Assim, talvez sejamos capazes de caminhar para um futuro em que mulheres não sejam tratadas de maneira tão negativa, seja na ficção ou fora dela, mas como os seres humanos complexos e complicados que são, cheios de histórias fascinantes para contar. 

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