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Carol: o patriarcado contra-ataca

Na minha maratona para o Oscar 2016, Carol foi o primeiro filme que eu assisti. É um filme belo, esteticamente falando, e cheio de atuações maravilhosas, mas também é muito mais que isso. É um filme que traz muitas reflexões pertinentes e compatíveis com a nossa realidade atual, ainda que a trama se passe na década de 50.

O filme conta a história do relacionamento entre Carol (Cate Blanchett), uma mulher rica de meia idade no meio de um processo de divórcio, e Therese (Rooney Mara), uma jovem sem família que trabalha como vendedora e gosta de tirar fotos. As duas se conhecem por acaso na loja em que Therese trabalha e o interesse recíproco é instantâneo. Rola um flerte inicial e daí em diante nenhuma das duas coloca voluntariamente mais nenhum empecilho na relação, essa é justamente a questão.

O romance entre Carol e Therese tinha tudo para não ser complicado. Carol já estava separada e em processo de divórcio do ex-marido, Therese tinha um namorado, mas não faz nenhum “drama” para terminar com ele quando aparece algo que a interessa mais. Tecnicamente, as duas são pessoas maiores de idade que se gostam e querem se relacionar. A diferença de classe social nunca chega a ser uma questão no filme.

A única questão é que elas são duas mulheres. É aí que todo o castelo de cartas desmorona.

Tudo porque a nossa sociedade é heteronormativa e, ainda, falocêntrica. Os únicos relacionamentos romântico-sexuais aceitos são aqueles envolvendo um homem e uma mulher. Como dizem por aí, “dois iguais não reproduzem”, e o ponto é exatamente esse. A mulher é fundamental por sua capacidade reprodutiva, e é escravizada por meio dela, assumindo de forma quase exclusiva os encargos e responsabilidades sobre a família. A heteronormatividade é imposta todos os dias por todos os meios de controle: a religião, a sociedade, os meios de comunicação, a família; ao mesmo tempo, prega-se a ideia de que uma mulher não pode ser feliz rejeitando seu destino sagrado de se tornar esposa e mãe de família. Somando 1+1, terminamos com o conceito social profundamente enraizado de que uma mulher não pode ser feliz e completa sem um homem.

Se qualquer relação homoafetiva atenta contra a heteronormatividade estabelecida, uma relação entre duas mulheres vai mais além e comete o crime de rejeitar a figura divina e essencial do homem, do falo. Atenta contra o famigerado falocentrismo. Uma relação lésbica tem a audácia de sugerir que o homem pode ser dispensável em alguma situação, que pode existir prazer sem a sua venerável e insubstituível presença. Um relacionamento que dispensa a presença de um homem, em uma sociedade falocêntrica e heteronormativa, incomoda muita gente. Um relacionamento entre duas mulheres que não estão nem aí para o incômodo que causam incomoda muito mais.

Infelizmente, o patriarcado contra-ataca.

Nesse caso, ele contra-ataca na forma de um ex-marido possessivo e ciumento que não admite que Carol prefira mulheres, e que usa a filha contra ela. Contra-ataca também na forma de um sistema que proíbe uma mãe de ver a filha porque considera que ela é moralmente questionável pelo fato de se relacionar com mulheres. No dia a dia, às vezes as coisas vão além — assassinato, estupro corretivo.

Uma vez ultrapassado esse ponto, o que vemos em Carol são duas mulheres muito confiantes e bem resolvidas consigo mesmas.

Minha primeira impressão, que também foi a de algumas amigas, é a de que Therese tendia à passividade: ela apenas dizia sim para tudo o que Carol resolvia e a seguia para onde fosse. Mas, da segunda vez que assisti ao filme, minha opinião mudou completamente.

Essa é uma preocupação genuína. Nem todo relacionamento lésbico é pautado por igualdade e harmonia. Muitos emulam abusos e hierarquia de relacionamentos heterossexuais e, quando se trata de relacionamentos com grande diferença de idade, como acontece em Carol, o risco de que isso aconteça é ainda maior. Mas não é o que acontece. No filme, o que vejo é que, ainda que seja uma situação nova para Therese, e mesmo que Carol tenha uma personalidade dominante, Therese se posiciona de forma firme e decidida quando necessário, ela não segue o fluxo simplesmente. O interesse inicial, no primeiro encontro entre elas, é claramente mútuo, mas é Therese quem toma a iniciativa de ligar para Carol pela primeira vez, é ela quem dá o primeiro passo para que as duas dividam o quarto de hotel e é ela quem toma a iniciativa para o primeiro contato físico mais íntimo delas.

Do mesmo jeito, Carol claramente não tem nenhuma vergonha de ser quem é e não faz nenhum esforço para esconder-se. Ela até tenta se submeter a um tratamento psiquiátrico (uma “cura lésbica), é verdade, mas fica evidente que o único motivo para aceitar isso é retomar o contato e, possivelmente, a guarda da filha.

Atenção: este texto contém spoilers

Um grande momento do filme é quando ela percebe que não tem como ganhar esse jogo. Carol se dá conta de que chegou a uma encruzilhada, na qual é obrigada a escolher entre a filha e ela mesma, e usa seus últimos recursos para manter o mínimo de contato com a menina sem precisar renunciar ou negar quem ela é. A atitude não deixa de ser um pouco chocante, considerando a romantização da maternidade na nossa sociedade, uma vez que é esperado que mulheres sempre renunciem a si mesmas pelos filhos. Mas a conclusão a que Carol chega é que essa não é a lição que deseja ensinar à filha.

Acredito que esse é o ponto alto de Carol. As personagens não se dobram. Nada é fácil para elas, porque elas ainda estão indo diretamente contra vários dos princípios básicos da sociedade patriarcal. Mas elas nunca duvidam, nunca se questionam e, sobretudo, nem negam quem elas são.

1 comentário

  1. Acabei de assisti o filme, não tinha entendido muito bem o final, mais a forma que vc explicou me ajudo bastante. O filme é realmente lindo, a forma como Carol se firma mesmo depois de tudo oq ela passo é incrivel,

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