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A Descoberta das Bruxas: o método científico por trás da cortina de magia

Quando pensamos em uma bruxa, em geral somos transportados ao bom e velho modelo de mulheres de centenas de anos com narizes compridos, chapéus pontudos e verrugas, ou, no máximo, lembramos de Hogwarts com sua magia muito particular. A magia, porém, nos destaca para lugares muito distantes do que consideramos palpável e próximo, e, com certeza, para o lado diametralmente oposto ao caminho da Ciência Moderna. E é esta oposição que Deborah Harkness trabalha em sua Trilogia das Almas e, especialmente, em seus personagens principais Diana Bishop e Matthew de Clermont.

Aviso: este texto contém spoilers!

A Descoberta das Bruxas é o primeiro livro da trilogia, lançado em 2011 e adaptado para uma série de televisão no final de 2018 pela emissora Sky One, A Discovery of Witches. Num primeiro momento, ao sermos confrontados com um universo recheado de bruxas, vampiros e demônios, o livro parece ser exatamente o tipo de construção bastante explorada em outras obras de ficção, como a Saga Crepúsculo e The Vampire Diaries. A série surpreende, porém, ao trazer uma personagem principal complexa e mais velha, mudar as relações de poder entre os personagens que formam o casal principal e, especialmente, ao trazer a ciência moderna e a pesquisa acadêmica como uma característica importante para toda a obra.

Diana Bishop, a protagonista, é uma acadêmica muito qualificada e professora em Yale, especializada na área de História da Ciência com enfoque principal em Alquimia, e que, durante a trama, está fazendo uma pesquisa em Oxford. Como uma bruxa que nega, durante muitos anos, seu legado mágico, é destacado diversas vezes o quão curioso é que sua área de pesquisa seja justamente essa, um momento da Ciência antes de Galileu Galilei em que as relações entre o sobrenatural, o mágico e o material ainda são difusas. A autora é, não por acaso, pesquisadora nessa área e a forma como inclui ao longo de todo o texto aspectos de sua pesquisa, com citações a pensadores do período e sutis explicações desses contextos, é uma bandeira carregada de elementos de uma divulgação científica muito bem construída, em que somos instruídos sem ao menos perceber.

A Descoberta das Bruxas

O que chama mais atenção na trama de A Descoberta das Bruxas é o fato de que Diana Bishop é, antes de uma bruxa, uma pesquisadora, e este fato é tão importante quanto o anterior para a construção de sua personagem. A relação que ela guarda com acervos e bibliotecas, o respeito e o entusiasmo que demonstra ao entrar em contato com ambientes históricos e, mais do que isso, a curiosidade irrestrita que ela carrega ao longo de todo o livro demonstram o quanto o seu aspecto acadêmico é importante em seu caráter e desenvolvimento de personalidade. E isso se torna especialmente notório quando sua relação com Matthew de Clermont, um vampiro, vai se construindo.

Matthew de Clermont também é um acadêmico, mas em áreas diferentes de Diana. Apesar de ser um aspecto importante, o passado dele acaba por ter um valor mais marcante na narração de seu caráter, bem como aspectos que são “instintivos” a vampiros dentro do universo construído por Harkness. Apesar disso, ele também caminha pela mesma linha tênue entre magia e ciência que Diana: Matthew trabalha com a genética das criaturas, ou seja, ele faz, secretamente, um mapeamento genético de bruxas, vampiros e demônios, tentando traçar a origem de cada um.

Essa pesquisa pela origem é o ponto principal para o qual convergem todos os personagens. Com uma forte e direta inspiração na obra de Charles Darwin, A Origem das Espécies, Matthew deseja traçar um ancestral comum às três criaturas — bruxas, vampiros e demônios —, pesquisa que pode modificar tudo o que é construído como status quo na sociedade desse universo secretamente mágico oculto aos olhos humanos. E Diana, ao invocar, por acaso e com objetivos puramente acadêmicos, o manuscrito de alquimia Ashmole 782, ou o Livro da Vida, como é falado na série, na Biblioteca Bodleiana em Oxford, dá o gatilho para que todas essas verdades sobre a busca da origem sejam trazidas à luz.

A busca pela verdade e o apagamento do passado são temas muito discutidos ao longo do livro. Seja dentro da vida pessoal de Diana, seja na existência das criaturas, o apagamento de partes da história e aspectos de pequenas inverdades que são espalhadas (o motivo da morte dos pais de Diana, a suposta inferioridade dos demônios dentro da cadeia de criaturas) impactam diretamente na construção do indivíduo e da sociedade no qual ele está inserido. E o Livro da Vida, nesse sentido, torna-se importante por motivos diferentes para cada um dos grupos: bruxas que querem extinguir os vampiros, vampiros que querem entender porque estão tendo dificuldade em criar novos vampiros, e demônios que precisam desesperadamente entender os motivos da aparente aleatoriedade de seu surgimento.

Se observado de um ponto de vista externo, essas três motivações dizem muito sobre cada um desses grupos e sobre como funciona essa sociedade mágica: como são as disputas de poder, quem controla o saber e a quem é rejeitado o conhecimento sobre sua história. A quem interessa, e isso é uma pergunta recorrente, que algumas criaturas sejam deixadas às escuras?

Todas essas questões são pontuadas por perguntas que se assemelham muito às que a Filosofia faz. De onde viemos? Para onde vamos? E, mais do que isso, a construção de personagens que constantemente tentam entender os porquês do funcionamento de uma sociedade desvela um universo que aplica a sistemática de um método de hipótese-teoria-experimento tão característica ao método científico tradicional, mas que é construído dentro da magia. E a magia, nesse universo, pode ser testada, avaliada e analisada por esse mesmo método, pois faz parte de sua construção de verdade e de ciência.

Ao evocar Giordano Bruno, Galileu Galilei, Charles Darwin, entre outros, Deborah Harkness nos presenteia com uma obra que, para além da ficção, incute no leitor essa mesma curiosidade do porquê. “Como se desenvolve o pensamento de um povo e quem controla como esse pensamento é guiado e que perguntas são feitas?” é uma pergunta repetida constantemente ao longo de toda a obra — e cumpre o papel muito importante de nos lembrar o quão incômoda ela pode ser para aqueles que não desejam que ela seja feita.


** A arte em destaque e o banner são de autoria da colaboradora Duds Saldanha.

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