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Jovens Bruxas: nossa é a magia, nosso é o poder

Velas, ervas, um pentagrama ao centro e três garotas repetindo “nosso é o tempo, esta é a hora, nossa é a magia, nosso é o poder”. Assim começa o filme The Craft, Jovens Bruxas na versão em português, lançado em 1996 sob direção de Andrew Fleming. Com referências de rituais, encantamentos e símbolos ocultistas um dos objetivos da produção era lançar um paganismo pop para a juventude — e deu certo. O filme, mesmo com um pequeno orçamento de produção, foi sucesso de bilheteria e atraiu muita atenção para a Wicca e o universo gótico.

A história do começa com a chegada de Sarah Bailey (Robin Tunney) em Los Angeles. Logo no início ela se torna a quarta integrante do grupo formado por Nancy (Fairuza Balk), Bonnie (Neve Campbell) e Rochelle (Rachel True), praticantes da Wicca, uma antiga religião pagã que começou a ser difundida na Europa no final do século XIX. Pregando o culto a uma Deusa e um Deus, iguais entre si, e relacionado à natureza, ganhou o mundo entre os anos 1960 e 1970 com influência dos movimentos feministas e ambientalistas.

No filme, as garotas entendem que Sarah é a integrante que faltava para que o coven (nome dado, principalmente na Europa, a um grupo de bruxas) se tornasse mais poderoso, agora com os quatro elementos. A Wicca adota esse termo e, em geral, não há uma líder ou uma suprema, mas cada agremiação pode ter regras próprias. A auto-organização é um traço comum na Wicca que tem como uma de suas leis fazer o que se quiser, desde que não prejudique ninguém.

Jovens Bruxas

Quando o coven percebe ser capaz de realizar magias fortes, elas começam a usá-la para acertar algumas questões com pessoas que lhes faziam mal. Sarah decide fazer com que Chris, um típico babaca de colégio, se apaixone por ela, com o objetivo de humilha-lo depois que ele inventou coisas a seu respeito. Bonnie tem problemas de auto-estima por causa das grandes cicatrizes de queimaduras que tem nas costas e usa os poderes para fazê-las desparecer. Rochelle, uma garota negra, sofre constantes ataques racistas e usa seus poderes para fazer cair o cabelo de uma das garotas que a atormenta. Nancy sofre com a falta de grana da família, a mãe ausente e o padastro abusivo. Ela provoca um acidente que o faz morrer de um ataque cardíaco.

Elas são alertadas, por uma bruxa que não faz parte do seu círculo, que o uso desses poderes deve ser feito com equilíbrio. Tudo aquilo que elas fizeram a alguém retornará três vezes mais forte — uma outra regra da Wicca. A Lei tríplice fala sobre não interferir no livre arbítrio de ninguém e os riscos que insistir nessa interferência podem acarretar.

Apesar de a religião Wicca ter como criador um homem, a bruxaria, como bem sabemos, está conectada a história das mulheres. Desde as milhares de mulheres assassinadas como bruxas até a pesquisa desacreditada de Margaret Murray — que foi base para a Wicca. Nesse mesmo sentido, quase todo elenco e arco da história é construído focado em mulheres, no que elas querem, no que fazem, os problemas que enfrentam e até onde estão dispostas a ir.

Jovens Bruxas

É raro que, nos anos 1990, um filme protagonizado por mulheres com visual gótico, em que elas são grande maioria e que a questão central não é o interesse romântico por um cara — inclusive, em que os homens estão ali apenas para morrer em algum momento — tenha feito tanto sucesso. As Patricinhas de Berverly Hills era o sucesso do ano anterior e, apesar de ser um filme incrível, segue um caminho totalmente diferente.

O filme foi lançado no ano em que nasci, e assistir Jovens Bruxas na adolescência, mesmo tantos anos depois da estreia, ainda me fez querer gastar o dinheiro que eu não tinha em velas e ler tudo que eu podia sobre a Wicca. Em Jovens Bruxas é o momento de quem não se encaixava nos padrões tradicionais de feminilidade se sentir representada, de algum forma. A cena em que Nancy diz ao motorista de ônibus “we are the weirdos, mister” [nós somos as esquisitonas, senhor], deixa isso bem claro. E aqui, o poder feminino é peça central da história.

Uma grande questão na luta feminista é que mulheres tomem o controle da própria vida. Que elas possam decidir o que fazer, quando fazer e que elas possam ser elas mesmas. Se quiserem sair com alguém, que isso não se torne o assunto da escola porque um cara babaca decidiu espalhar ou inventar alguma coisa. Ou que não sejam discriminadas pelo cabelo e pela cor da pele e que a aparência não seja um fator tão decisivo em suas vidas. Sem que tenham que viver em um lar sendo vítimas de abuso e maus tratos.

Cada uma das personagens sente o uso da magia de forma diferente, mas tudo que elas querem é se livrar dos problemas da adolescência. Racismo, machismo, abuso e questões estéticas e emocionais são difíceis demais para qualquer garota. A bruxaria é mais que a possibilidade de resolver tudo em um passe de mágica: é o acesso a um poder e controle das próprias vidas que elas não achavam que poderiam ter. Um poder e controle que garotas, em geral, são negadas, se sentindo incapazes de mudar circunstâncias sociais, políticas e econômicas que parecerem pequenas em um contexto geral, mas que têm grande impacto em suas vidas.

Jovens Bruxas

Nancy, de uma família pobre, sofre com uma mãe ausente que não percebe seus pedidos de ajuda, um padrasto abusivo e tendo que aguentar ser a vadia da escola por coisas que o mesmo cara babaca disse sobre ela. Ao acessar toda liberdade dada por seus poderes, ela se nega a deixá-lo. Não estou querendo diminuir o peso de uma tentativa de homicídio, mas é importante entender o que a levou a fazer o que fez e os muitos momentos de sua trajetória em que isso poderia ter sido evitado. Olhando com empatia para a sua história, será que ela não poderia ter uma segunda chance? Nesse trecho, eu escolho interpretar a história como uma representação do tratamento dado às mulheres que vão longe demais. A cena de Sarah indo visitá-la no hospício e oferecendo ajuda chegou a ser gravada, mas foi deletada.

O final do filme nos entristece com a separação do coven e a loucura de Nancy, mas seria injusto reduzir a relação das quatro bruxas às cenas finais. A amizade, a confiança e a química entre elas desde as cenas iniciais é o que torna o filme tão incrível de ser visto. Qualquer garota estranha gostaria ter o seu próprio coven e se livrar das coisas que fazem com que nos sintamos tão pequenas.

Em 2018 foi anunciado um remake de Jovens Bruxas e a nova versão será dirigida por Zoe Lister-Jones. As atrizes que vão interpretar Sarah, Nancy, Bonnie e Rochelle já foram escolhidas, mas ainda não existe uma data de lançamento. A onda de novas versões tem causado muitas decepções e espero, com toda magia e poder, que essa não seja mais uma.


** A arte em destaque e o banner são de autoria da colaboradora Duds Saldanha.