Categorias: MÚSICA

Turn Off The Light: o Dia das Bruxas pop de Kim Petras

Álbuns natalinos sempre foram populares. Artistas consagrados já trabalharam em projetos para o natal, como Michael Bublé, John Legend, Elvis Presley, Jackson 5, Mariah Carey, entre diversos outros. O Dia das Bruxas, entretanto, nunca foi de fato o tema de um álbum. É bastante comum encontrar por aí uma infinidade de playlists para o tão esperado 31 de outubro, compostas principalmente de músicas que se encaixam na data, mas que não foram efetivamente feitas para ela.

É neste cenário que se encontra Kim Petras, cantora e compositora pop que, em outubro de 2018, lançou seu álbum para o Dia das Bruxas: Turn Off The Light, vol. 1.

Quem é Kim Petras?

Antes de falar do álbum, porém, é importante conhecer a artista. Nascida em 17 de agosto de 1992, no estado de North Rhine-Westphalia, na Alemanha, Kim Petras apareceu na mídia muito antes de iniciar sua carreira musical. Segundo seus pais, Lutz e Konni, Kim (nascida Tim Petras), desde os dois anos de idade, já afirmava ser uma menina. Eles tinham certeza que aquilo claramente não era apenas uma fase. Por mais compreensivos que fossem, o casal não tinha instrução o suficiente para lidar com a situação, então a vestiram em roupas sem gênero — o que mostra um nível de sensibilidade e consciência bastante admirável, mesmo que não fosse exatamente aquilo que a filha precisava.

Eventualmente, começaram a buscar ajuda profissional. Demoraram certo tempo para encontrar alguém que tivesse experiência no assunto, mas acabaram encontrando o Dr. Bernd Meyenburg, chefe da clínica pediátrica da Universidade de Frankfurt, especialista em transexualidade desde os anos 1970, que lhes deu as primeiras orientações.

Aos 13 anos de idade, em 2006, Kim fez sua primeira aparição significativa na programação do canal alemão Stern TV, mostrando sua transição de gênero e os tratamentos médicos que recebeu em um centro endocrinológico na cidade de Hamburg. Mas foi só tempos mais tarde, com 16 anos, que ganhou espaço mundial por estar lutando para conseguir realizar a cirurgia de redesignação de sexo. Segundo a lei alemã, mesmo com a permissão dos pais, o procedimento só poderia ser realizado quando completasse 18 anos. Ela apareceu em documentários e talk shows para falar sobre suas experiências.

Desde que tinha 12 anos, quando iniciou o processo de transição, foi nomeada como “a mais jovem transexual do mundo”. Essa afirmação é incerta, já que a disforia de gênero é frequentemente diagnosticada em crianças mais jovens, mas foi dessa maneira que Kim ficou conhecida pela mídia. No fim, ela realmente conseguiu fazer a operação aos 16 anos, que chamou a atenção por ser a cirurgia de redesignação na pessoa mais jovem do mundo. “Me perguntaram se eu me sinto como uma mulher agora, mas a verdade é que eu sempre me senti como uma mulher. Eu só acabei no corpo errado”, ela declarou ao The Telegraph na época.

Depois de trabalhar como modelo para uma rede alemã de cabeleireiros e fotografar para algumas grifes, Kim começou a embarcar na indústria do entretenimento. Em 2011, publicava no YouTube vídeos sobre sua vida pessoal, cobertura de eventos e covers de cantores como Demi Lovato e Britney Spears. Em 2013, saiu de Colônia, sua pequena cidade natal na Alemanha, para viver em Los Angeles, onde começou a trabalhar com famosos produtores, como The Stereotypes (envolvidos em projetos de Justin Bieber, Bruno Mars e Cardi B). Como muitos artistas, começou a divulgar seus primeiros projetos no SoundCloud. Lançou “STFU” na plataforma em 2014 com o apoio do produtor Aaron Joseph, com quem trabalha até hoje.

Em agosto de 2017, lançou seu primeiro single, “I Don’t Want It At All”. O pop contagiante e as batidas tecnológicas fizeram com que a canção entrasse para a lista Global Viral 50 do Spotify. O vídeo musical chegou em outubro, com participação especial de Paris Hilton. No final do mesmo ano, liberou a canção “Hillside Boys”, foi indicada pela Paper Magazine como uma das artistas que tinham o potencial para dominar as paradas de música pop e participou da música “Unlock It”, de Charli XCX e Jay Park.

Em 2018, “Heart To Break” e “Feeling of Falling”, em parceria com o grupo Cheat Codes, também fizeram sucesso nas plataformas de streaming. Com um estilo dance inspirado no pop dos anos 1990/ 2000 de Christina Aguilera, Kylie Minogue, Madonna e Spice Girls, além do Italo Disco de 1980, o som de Kim Petras já havia conquistado o público e a crítica especializada. E no dia 1º de outubro do mesmo ano, Kim lançou o trunfo de sua carreira até aquele momento: o EP Turn Off The Light, vol. 1, com músicas inteiramente inspiradas no Dia das Bruxas.

Turn Off The Light, vol. 1

Até certo ponto de sua carreira, Kim vinha construindo uma imagem no estilo Barbie, ressuscitando o bubblegum pop que se encontrava em escassez na indústria. Em setembro de 2018, suas redes sociais começaram a ser inundadas por fotos que fugiam muito da estética divertida e vibrante de sempre. Os fãs ficaram confusos quando Kim começou a postar fotos de si mesma com um aspecto levemente distorcido e deformado, com sangue escorrendo pelo rosto e perturbadores olhos de pupilas brancas.

Mas no dia 1º de outubro, tudo fez sentido. Kim lançou, de surpresa, uma mixtape temática de Dia das Bruxas, o Turn Off The Light, vol. 1. O clima macabro estava presente no álbum desde a capa — com uma pálida mão de ossos salientes e unhas compridas pintadas de magenta — até as letras e a sonorização. O ápice do clima halloweenesco é a participação de Elvira, a Rainha das Trevas (nome artístico de Cassandra Peterson), a protagonista do filme trash de comédia/horror de 1988 de mesmo nome. A música fala, de um jeito todo especial, sobre viver verdadeiramente.

Só na escuridão você encontra seu verdadeiro eu
Uive para a lua para despertar o feitiço
Não se pode julgar o que o olho não vê
Fora do reino da humanidade
Abrace seu medo, não se atreva a correr
Só então você será o que você deve se tornar

A canção se parece com algo que seria bastante apropriado para compor a trilha sonora do deliciosamente anedótico Abracadabra, de 1993, comédia clássica da Sessão da Tarde com Sarah Jessica Parker e Bette Midler. É uma música divertida e inegavelmente pop, com elementos de um terror leve e contagiante.

Turn off The Light, vol. 1 é perfeito para dançar. Não é difícil imaginar uma festa de Dia das Bruxas, um ambiente escuro e com luzes coloridas cortando o ar, embalada pelas batidas modernas e levemente robotizadas das canções. “o m e n”, “TRANSylvania”, “Boo! Bitch!” e “i don’t wanna die” são puramente sonoras. Apenas esta última tem alguma letra, com somente dois versos. Apesar disso, essa característica não é desagradável, e cumpre seu papel de criar músicas energizantes compostas de trilhas tecno e a vocalização muito bem harmonizada de Kim.

“Tell Me It’s a Nightmare” e “Close Your Eyes” são canções animadas que mostram todo o talento vocal de Kim, além de provar que ela sabe fazer músicas joviais perfeitas para momentos de diversão despretensiosa, mas “In The Next Life” é a melhor e mais peculiar música do EP. Provocadora e sem escrúpulos, Kim se coloca em um patamar de glória inimaginável, comparando a si mesma com uma doença contagiosa, com um deus e com o demônio.

Além da letra ser de extrema pertinência ao tema do álbum, também pode se conectar muito bem a uma entrevista que Kim deu ao site Junkee em 2019. “Eu quero ser o maior que eu puder. Eu quero ser o melhor que eu puder. […] Eu quero irritar um monte de pessoas com a minha existência.” Outro ponto que faz com que “In The Next Life” se destaque é a parte inteiramente em alemão, sua língua materna. Ao ouvir pela primeira vez, é inevitável estranhar a sonoridade tão diferente, mas rapidamente este se torna um elemento crucial da música e de todo o EP, provando o quão criativa e única Kim Petras realmente é.

Seu tempo expirou
Se você me ver, é melhor você começar a andar
Você pode acreditar?
Diga suas últimas palavras agora
Eu sempre consigo o que quero
Eu sou o fim dos seus dias
Eu sou a doença, eu sou a praga

Turn Off The Light, vol. 2

Turn off The Light, vol. 2 chegou exatamente um ano depois do primeiro, no dia 1 de outubro de 2019. Apesar de ser a segunda parte, ao procurar nas plataformas de streaming, o EP será encontrado apenas como Turn off The Light (sem a indicação de volumes), já que Kim Petras transformou as duas partes em um único álbum.

De um modo geral, esta segunda parte é um pouco mais agressiva do que a primeira. Há diversos elementos sonoros fortemente ligados à temática de horror do Dia das Bruxas, como uivos, correntes, passos, lâminas, gritos e o soar macabro e melancólico das notas de órgão instrumental. Assim como o volume 1, o EP tem diversas músicas sem letra, apenas com a batida de música eletrônica e os elementos de terror, como “Purgatory”, “<demons>” e “Knives”. “Bloody Valentine” tem apenas dois versos, e está diretamente ligada à música que, pela ordem do álbum, vem logo em seguida, “Wrong Turn”.

A canção começa como uma história. É possível ouvir o ronco de um carro em alta velocidade, e, pela atmosfera do projeto, não é difícil imaginar uma estrada deserta em uma noite sombria e — por que não? — chuvosa. Em seguida, as rodas derrapam e o inconfundível som de uma batida se faz presente.

A produção de altíssima qualidade e a letra fazem com que a mente crie um cenário de um clássico filme de terror, em que o mocinho — o tal do “bloody valentine”, que pode ser traduzido como “namorado sangrento” ou “maldito namorado” — se encontra sozinho e desamparado em uma noite sinistra, e encontra Kim, uma espécie de dama vampírica que desenvolve uma paixão mortal. “Nunca deveria ter vindo sozinho/Você nunca vai voltar para casa”, ela canta.

Fogo, chamas, sangue e ossos
Chicotes e correntes, coração de pedra
Eu sou quem você realmente teme
Segure suas lágrimas, poupe as orações
Demônios, diabos, crucificados
Você e a morte, olho por olho
Vá e se despeça da sua vida
Se despeça da sua vida

Em “Massacre”, a voz intensa de Kim e o ritmo mais lento faz com que a música seja digna de estar na trilha sonora de algum filme de Tim Burton, algo como uma evolução pop, feminina e mais madura de “This is Halloween”, cantada por Marilyn Manson para o filme O Estranho Mundo de Jack. “Death By Sex” é mais animada e tem um quê de hip hop. “There Will Be Blood” é dançante, e novamente Kim se coloca na posição do monstro sedutor e cruelmente impiedoso.

Kim Petras

“Everybody Dies” se destaca por vários motivos. É a música que fecha o projeto de Dia das Bruxas e tem uma sonoridade mais suave e sem tanto das costumeiras características eletrônicas e de terror, é a letra mais pessoal e emocional do álbum. É também uma homenagem ao filme musical The Rocky Horror Picture Show, de 1975, como Kim conta ao site L’Officiel. Mais uma vez, Kim canta sobre viver verdadeiramente, sem esconder quem realmente é. Fala sobre rejeição e rebelião, sobre viver intensamente e como, no final das contas, todos morrem e vão para o mesmo lugar.

Mamãe vai receber uma ligação um dia
Dizendo que seu bebê está morto e foi embora
Eu bati na porta do céu
Desde o dia em que nasci
Sim, desde que eu era uma jovem garota
Sempre soube que eu era problema
Vivendo como uma pistola carregada
Porque quando você vai embora é quando eles sentem sua falta

Turn off The Light é um projeto que transborda criatividade e artisticidade. O álbum-conceito que mistura elementos do terror dos anos 1970 e 1980 ao ritmo rápido e tecnológico da era digital fala sobre amor, luxúria, morte e bruxaria de um jeito divertido e que sabe muito bem conectar elementos antigos às modernidades dos tempos atuais. É um projeto inegavelmente millennial que não se esquece de acenar para todos os componentes que o inspiram.

Sem esquecer quem é e o que faz, Kim Petras não deixa seu bubblegum pop de lado, e cria uma narrativa coerente nos dois volumes do EP, contando histórias de um terror contagiante e inédito no cenário musical dos últimos tempos. Fala, dentro da temática do álbum, sobre não esconder sua essência, como sempre fez desde que era uma criança.

No final das contas, para Kim Petras, o verdadeiro horror é não poder ser quem realmente é, e deixa para o Dia das Bruxas uma carta de amor à autenticidade e à permissão de traçar seu próprio caminho do jeito que bem entende.


** A arte em destaque e o banner são de autoria da colaboradora Duds Saldanha.

1 comentário

  1. Adorei a matéria, esse álbum é um dos meus projetos recentes favoritos! Mas só uma correçãozinha, se me permite, Massacre na verdade é uma verão de Halloween de Carol of the Bells, famosa música natalina.

Fechado para novos comentários.