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O horror em O Convento

Em muitas religiões, particularmente nas tradições judaico-cristãs, ser mulher é também ser uma ameaça — sobretudo quando dotada de pensamento crítico. Mitos como os de Lilith e Eva, até fatos históricos como a queima de mulheres acusadas de bruxaria, demonstram quão ameaçadora a figura feminina é para o status quo religioso, lógica que se estende às histórias de possessão, em que mulheres estão mais sujeitas às violações de demônios e são o sexo mais frequentemente submetido a bárbaras sessões de exorcismo.

Essa conexão pode ser traçada desde as sociedades greco-romanas, quando a literatura já delineava figuras femininas de modo a inspirar o medo (Circe, Medeia, Medusa etc.), o que perduraria mesmo após o estabelecimento do Cristianismo como religião oficial do Império Romano. Além disso, de acordo com Brooks Alexander e Jeffrey B. Russel, autores de História da Bruxaria, por muitos anos a condenação por heresia não fez distinção entre homens e mulheres: qualquer pessoa que não concordasse com as doutrinas da igreja estava sujeito a receber a pena por tal acusação. É somente quando a heresia passa a ser vista como um ato contra Deus e em favor do diabo (cuja figura também se altera ao longo do tempo), e não apenas contra a instituição religiosa, que a associação entre a mulher e o mal a torna sistematicamente passível de perseguição e punição.

Nesse ínterim, a figura da freira ocupa um espaço dicotômico: ao mesmo tempo, uma ameaça e parte da instituição que a enxerga como tal. Em linhas gerais, freiras são mulheres que assumem votos de castidade, pobreza e obediência, e abrem mão da vida em sociedade para dedicar-se a religião, mantendo-se reclusas em abadias e conventos. Entretanto, historicamente, os conventos também se tornaram o abrigo de mulheres sem lugar na sociedade, inclusive aquelas pertencentes a famílias abastadas: jovens sem perspectiva, viúvas, mães de filhos bastardos (muitas das quais eram enviadas pelas próprias famílias, que desejavam esconder gravidezes indesejadas) ou que buscavam um caminho alternativo ao casamento, incluindo a educação, uma vez que, por muitos anos, as freiras estiveram entre as poucas mulheres a quem a leitura e a escrita eram permitidas. De certa forma, isso ajuda a explicar o que torna sua figura tão interessante para a cultura popular e os conventos (ou as abadias) lugares igualmente passíveis de atenção. Não se trata apenas da multiplicidade de experiências que ali se misturam, mas da complexidade dos sentimentos que estão ligados a vida dessas mulheres — muitos deles relacionados à raiva, em oposição à figura pacífica idealizada no imaginário popular. Ademais, dois pontos podem ser considerados. O primeiro que, embora habitado por mulheres e muitas vezes administrados por elas, os conventos permanecem sob a autoridade masculina, o que daria margem para alguma sorte de tensão entre ambos. A segunda são os casos como os das casas de amparo maternal, denunciadas por abusos, maus tratos, doações e vendas de crianças entre as décadas de 50 e 80, em países como o Canadá e os Estados Unidos (o que demonstra que nem só de boas graças são feitas essas mulheres).

o convento

Essa variedade de perspectivas deu origem a obras diversas, entre elas Narciso Negro, de 1947, A Religiosa, de 1966, Os Demônios, de 1971, Mudança de Hábito, de 1992, A Freira, de 2018 e Benedetta, de 2021. O Convento (2023), de Christopher Smith, insere-se parcialmente neste grupo ao apresentar uma história ambientada quase exclusivamente em um convento, mas centralizada em uma mulher aparentemente comum: Grace (Jena Malone), uma médica oftalmologista pouco sociável e desprovida de crenças religiosas, cuja rotina sofre uma disruptura após a morte repentina do irmão — e também padre — Michael (Steffan Cennydd). Acusado de assassinato seguido de suicídio, a morte de Michael ainda é investigada pela polícia local; contudo, sem acreditar na versão que lhe foi relatada, Grace decide visitar o convento Mount Saviour, onde o crime supostamente ocorreu, e conduzir uma investigação particular. No local, ela é recebida pela rígida Madre Superiora (Janet Suzman) (“você não precisa me chamar de madre”, ela diz, em uma frase que diz muito mais do que realmente parece dizer), e eventualmente tem maior contato com o padre Romero (Danny Huston), um homem que, embora pareça sensibilizado pela situação de Grace, oferece mais discursos do que qualquer ajuda.

Ainda que a morte do irmão seja o catalisador que move Grace, O Convento não demora a se tornar uma história de autoconhecimento em que a resposta para qualquer mistério é a própria protagonista. Suas experiências particulares dentro do convento desencadeiam uma série de experiências que não apenas recuperam parte do seu passado com Michael, como desvelam habilidades sobrenaturais. É também a partir desse momento que o filme passa a abordar questões como abuso, assassinato, luto e abandono, mas nenhuma delas parece encontrar o espaço necessário para se desenvolver com propriedade.

Tampouco fica claro até que ponto Grace — e, de certa forma, também Michael — sabe o que realmente é. Se é evidente que acontecimentos estranhos a perseguem desde muito nova, que sua parceria com Michael é muito profunda (vale ressaltar que os dois não são irmãos de sangue) e que ele está disposto a entender e se sacrificar pela irmã se necessário, a compreensão sobre a verdadeira origem dos poderes de Grace são bastante vagas e parece pouco crível que uma busca por esclarecimento pudesse tornar seus caminhos tão discrepantes, especialmente quando a igreja possui um papel tão traumático na vida de ambos. Em determinado momento, após perderem a mãe, os dois são levados por um padre que abandona Michael no meio de uma estrada e tenta abusar de Grace dentro do carro, o que só não acontece porque a menina consegue interferir — e cabe ao filme explicar como isso acontece. O que é suficiente para afastar Grace da religião, no entanto, não parece exercer a mesma influência sobre Michael: sua convicção sobre a bondade da irmã não se altera (e, no contexto geral, a dicotomia entre bem e mal se mostra relevante narrativamente), mas sua escolha pela vida sacerdotal, se justificada somente pelo desejo de descobrir mais sobre as habilidades da irmã, transforma Grace apenas em um alvo — o que ela nunca deixa de ser.

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Assim, é a relação de Grace consigo mesma, muito mais do que com o exterior, que de fato se altera ao longo da narrativa. Embora nunca deixe de representar uma ameaça, é a partir da descoberta sobre o que acontece no convento e a verdade sobre o assassinato do irmão, que ela pode abraçar seu eu genuíno e alcançar seu potencial por completo. O Convento embaça as linhas entre bem e mal ao fazer de Grace alguém que não é indiscriminadamente cruel (o que ela poderia ser), mas que tampouco deixa de se vingar daqueles que lhe fizeram mal ou àqueles que ama. É por isso que, ainda que seja colocada em uma posição de vilã pelos demais e seja movida essencialmente pela raiva, nunca chegamos a enxergá-la desse modo: Grace, de fato, nunca ocupa essa posição; pelo contrário, já há quem a ocupe.

Há algo inegavelmente satisfatório em assistir Grace ser consumida pela raiva e finalmente tomar as rédeas da situação, tendo enfim o seu momento de catarse. Nesse sentido, ela se aproxima de outras personagens da ficção que se utilizam do mesmo sentimento e/ou de suas variações como força motriz — Amy Dunne, em Garota Exemplar; Cassandra Thomas, em Promising Young Woman; Pearl, em Pearl, etc. — e respondem ao trauma e à violência não com a delicadeza e compreensão tipicamente atribuídas ao feminino, mas com a mesma agressividade do mundo que as cercam. Grace é capaz de subverter sua imagem de introversão e aparente fragilidade, reagindo contra os interesses dominantes, representados pela Igreja Católica. Ainda assim, reconhecer o poder que existe em si mesma a coloca novamente em uma posição de mulher maligna, reforçando o estigma de que mulheres estariam mais suscetíveis à ação de demônios.

Além disso, se a morte do irmão é uma inegável ruptura, que proporciona a Grace um profundo autoconhecimento, O Convento não explora mais profundamente sentimentos como o luto, o que seria natural para pessoas que dividiam uma relação tão próxima. A despedida dos irmãos é dolorosa e mesmo a aceitação de Michael diante da morte não torna as coisas mais fáceis. Assim, quando volta à rotina, Grace já não é a mesma — e tampouco poderia ser. Entretanto, cabe questionar até que ponto as mudanças em sua personalidade são condizentes com o trauma vivido ou se apenas são um reflexo de quem ela precisava se tornar para ser capaz de salvar a si mesma (um molde, desnecessário dizer, aplicado a um único sexo).

Há pouco que de fato assuste em O Convento; não se trata do horror que estamos acostumados a temer. Embora lide com o sobrenatural e a religião, dois temas típicos do horror, o filme faz uma abordagem livre o suficiente para que ambos os elementos sejam utilizados mais como cenário e fonte de reflexão do que catalisadores para o medo. Há uma tentativa inerente de subversão, e ela poderia ser bem-sucedida, não fosse a necessidade do texto em fazer uma leitura elaborada de si mesmo, quando nunca houve bases suficientes para isso. Em determinado momento do filme, Grace diz: “Meu irmão costumava acreditar que eu tinha um anjo da guarda. E eu não acreditava em nada. Agora, não tenho tanta certeza.” Talvez falte a Christopher Smith acreditar um pouco mais em sua própria obra.

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