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Para Todos os Garotos que Já Amei: a representatividade literária de Jenny Han

Um bom young adult — categoria que engloba livros de ficção juvenil — é aquele que nos apresenta personagens bem pensados, com características a serem desenvolvidas, uma premissa que carregue elementos que transmitam as mudanças e todo o turbilhão de emoções, decisões e sensações deliciosamente terríveis que é estar na fase em que não se é criança e nem adulto. Melhor ainda se envolver um grande romance e fortes laços familiares. Sendo assim, a trilogia Para Todos os Garotos que Já Amei, escrita pela coreana-americana Jenny Han e lançada no Brasil a partir de 2015 pela editora Intrínseca, pode ser considerada uma pérola em seu nicho.

Mesmo que apresente uma premissa simples e sem fugir muito do comum, Jenny Han, que entrou para a lista de best-sellers do The New York Times, consegue inovar e dar um passo adiante com sua obra ao adicionar pequenos elementos à trama que fogem ao padrão eurocêntrico e vigente na maioria dos mais vendidos, que ainda no século XXI precisam, infelizmente, ser naturalizados.

Atenção: este texto contém spoilers!

Quando a jornada de Lara Jean começa, a encontramos no penúltimo ano do ensino médio, confortável e feliz com sua vida e escolhas, especialmente aquelas que consistem em fazer o jantar para a família, assistir a um filme ou jogar cartas com as duas irmãs, Margot e Kitty, e Josh Sanderson, namorado de sua irmã mais velha. Nem a insistência ferrenha de sua melhor amiga baladeira, Chris, pode demovê-la de sua zona de conforto.

Mas a vida de Lara Jean não é tão simples quanto parece. Além de nutrir uma paixonite por Josh, Margot, sua irmã mais velha está prestes a se mudar para a Europa para fazer faculdade, iniciando um processo de desmantelamento das irmãs Song — maneira como Lara Jean, Margot e Kitty, a caçula, gostam de se autodenominar. Tudo só piora quando o maior segredo da protagonista vem à tona: tímida e com um coração carregado, Lara Jean nunca declarou seu amor para nenhum de seus crushes. O que ela faz quando o sentimento fica tão grande e forte a ponto de explodir é escrever uma carta de amor e guardá-la a sete chaves em uma linda caixa que ganhou de sua mãe.

“Quando escrevo, não reprimo nada. Escrevo como se ele nunca fosse ler. Cada pensamento secreto, cada observação cuidadosa, todos os sentimentos que guardei dentro de mim, coloco tudo na carta. Não são cartas de amor no sentido mais estrito da palavra. Minhas cartas são de quando não quero mais estar apaixonada. São cartas de despedida.”

A confusão começa quando as cartas são enviadas anonimamente para cinco antigas paixões de Lara Jean, incluindo Josh, o agora ex-namorado de Margot. É nesse momento que entra em cena Peter Kavinsky, também um dos destinatários da carta: na tentativa de fugir de Josh para não ter que explicar como poderia ter se apaixonado justamente pelo namorado da irmã, Lara beija Peter, o que leva os dois a firmarem um acordo e fingirem que estão namorando para despistar Josh. Peter, enquanto isso, poderá mostrar para sua ex-namorada, Genevieve, que já está em outra. Como é de se esperar, os dois eventualmente se tornam namorados de fato e os próximos dois livros da trilogia, P.S: Ainda Amo Você e Agora e Para Sempre, Lara Jean narram as idas e vindas desse romance, e como a experiência de amar alguém pode ser fundamental e revigorante na evolução e na construção da personalidade de uma pessoa. Com o amadurecimento dos personagens distribuída entre os três livros, cada um conta com uma trama própria, que alicerçadas à escrita precisa e envolvente da autora, consolidaram-na como um grande nome no gênero.

Para Todos Os Garotos Que Já Amei

As irmãs Song

“Todas temos Song como nome do meio, e nossa aparência é mais de Song do que de Covey, de qualquer modo, mais coreana do que caucasiana. Pelo menos, Margot e eu; Kitty se parece mais com nosso pai, tem o mesmo cabelo castanho-claro.”

A mãe das irmãs Song faleceu de forma inesperada quando as meninas ainda eram muito jovens, fazendo com que precisassem amadurecer rapidamente. Margot, que na época tinha 12 anos, sentiu-se na obrigação de zelar pela segurança, conforto e aprendizado de suas irmãs mais novas, Lara Jean e Kitty, que na época era apenas um bebê. Cada uma delas têm uma lembrança diferente da mãe, moldadas pelos períodos distintos da vida que viveram ao seu lado. Para Kitty, por exemplo, existe muita curiosidade sobre cheiros, gostos e sorrisos da mãe que nunca foram memorizados por ela, ao passo que Lara Jean sente falta do aconchego, da paz que sua mãe trazia quando algo não estava bem, quase como uma reconfortante xícara de chá com mel. Para Margot, contudo, a mãe era um exemplo de mulher bem sucedida e feliz, e por isso ela sente que sua nova função dentro da família é a de manter a ordem e a felicidade de todos que fazem parte daquele lar.

Margot, no entanto, mesmo desempenhando um papel fundamental em casa, sentiu-se no direito de viver a vida longe da família quando decide morar em outro continente. A partir da visão de Lara Jean, no entanto, aprendemos que nunca existiu um sentimento de “ela está nos deixando”, mas sim de “como sobreviveremos tão longe de quem amamos?”. Para as irmãs que ficam, a ausência da Song mais velha também significa o estabelecimento de uma nova rotina, o surgimento de novos desafios e, principalmente, de novas pessoas, que começam a fazer parte da vida das meninas que ficam nos Estados Unidos. O relacionamento entre as irmãs, por sua vez, também sofre algumas mudanças, e dá uma esfriada natural no início, mas sobrevive a tudo, inclusive à descoberta de Margot sobre o sentimento que Lara Jean nutre por Josh. Para Lara Jean, a irmã é uma das pessoas mais importantes de sua vida, principalmente porque a ajuda a se lembrar do passado, da mãe, e também a ajuda a evoluir como pessoa.

Dentro desse relacionamento existe, ainda, a figura paterna, Dan Covey. O pai das irmãs é apresentado como um homem calmo, protetor e muito orgulhoso de suas filhas. Desde o falecimento da esposa, Dan raramente teve encontros ou se propôs a conhecer novas pessoas porque sabia que tinha tudo o que precisava em casa. Ele também manteve o contato com a sogra, uma presença constante nas festas de final de ano e confraternizações coreanas, e que sempre deixou claro às netas que não queria que elas se esquecessem de suas origens e, consequentemente, da mãe. Conforme as meninas foram crescendo, no entanto, os moradores da casa Song foram diminuindo, a começar pela mudança de Margot para a Europa e continuando com a preparação de Lara Jean para entrar na faculdade. Kitty continua a ser a fiel escudeira da irmã do meio durante todo o tempo, e o sentimento de que a família está toda junta, não importando a distância, reconforta a todas elas.

Relacionamentos saudáveis na história. Mais do que um.

A trama de Para Todos os Garotos que Já Amei se concentra em Lara Jean, a protagonista, uma garota romântica que entende as cartas que escreve como uma forma de se libertar do sentimento sufocante e da expectativa por uma correspondência do garoto de que gosta. Embora seja uma história fictícia, a obra guarda bons exemplos de relacionamentos saudáveis e diversos, como a já citada relação entre as irmãs, e também entre as amigas das meninas Song, que demonstram, de maneira verossímil, que a união entre mulheres faz a diferença. Chris, a melhor amiga de Lara Jean, possui uma personalidade completamente diferente da protagonista, por exemplo, mas as duas criam uma conexão muito forte. Ambas sabem que a outra estará ali para o que precisar, e entendem os jeitos distintos que cada uma decide viver a própria vida.

Mesmo o amor romântico é desenvolvido de forma bastante positiva: o acordo firmado entre Lara Jean e Peter é muito claro desde o início, com possibilidades e proibições. Mas o sentimento evolui de um jeito ou de outro, e por fim se transforma em algo muito saudável. Juntos, os dois conversam sobre tudo; Peter respeita a decisão de Lara Jean sobre não estar pronta para o sexo antes de ir para a faculdade e não a força a fazer escolhas precipitadas ou com as quais não se sente confortável — o que não deveria ser destacado, mas ainda serve como um exemplo positivo sobre o que é amar e ser amado com respeito, sem abusos.

Além disso, Lara Jean também mantém um relacionamento muito positivo consigo mesma: ela está confortável em sua pele; é autêntica, não se coloca em situações com as quais não se sente segura ou se obriga a seguir um padrão. Mesmo que o mundo lhe diga o contrário, Lara Jean segue seus dias conforme bem entende e não precisa provar nada para ninguém. Sem sucumbir às pressões sociais, a protagonista segue seus próprios valores, mas também, ao se relacionar com Peter e Chris, descobre que pode ter os dois mundos sem machucar sua alma ou desrespeitar o momento que está vivendo.

Quando ser mulher parece sempre ter desvantagens

Por ser uma história contemporânea, muitos padrões culturais são replicados no enredo de Para Todos os Garotos que Já Amei. Um deles é o slut-shaming, termo utilizado para designar a repressão e violência sofrida por uma mulher quando é insultada por motivos que podem ir desde a roupa até detalhes de sua vida sexual.

No livro, Lara Jean também passa por isso. Em sua escola, é de conhecimento público que Genevieve é uma adolescente bastante influente e especialista em criar fofocas sobre outras meninas, de modo a tirá-las do caminho do seu romance com Peter. Quando Lara Jean e Peter têm um encontro durante um passeio da escola, em uma banheira de ofurô, ainda que estejam inteiramente vestidos, passa a circular no ônibus da excursão uma fofoca sobre a possível transa de Peter e Lara Jean em uma banheira. Envergonhada, Lara briga com Peter porque ele não se importa tanto assim com o boato. Mas ela entende que, como mulher, o peso é muito maior para o seu lado. Lara Jean passa dias chorando com vergonha de algo que era para ser um momento íntimo com seu namorado, e é Chris, e também Margot, que lhe acalmam e dizem para não se importar com o episódio, ainda que elas também saibam o quanto é difícil ignorar uma fofoca que circula ao nosso redor.

O vídeo do encontro entre Lara Jean e Peter vai parar na internet e eventualmente aparece nos computadores da escola e até mesmo em um telão de avisos, o que deixa a situação insustentável. Mais do que vergonha, Lara Jean teme pela forma como isso pode influenciar negativamente a sua aplicação a uma vaga na faculdade, uma vez que o escândalo poderia ser decisivo para impedi-la de entrar na instituição que deseja. O problema é resolvido após certo tempo, mas mesmo assim, a confiança dela em Peter fica abalada — ao menos até que seja revelado que a fofoca não fora espalhada por ele, mas por Genevieve, como forma de amedrontá-la. Todo o episódio exemplifica uma dinâmica bastante negativa entre duas mulheres e mostra que ainda estamos muito longe de uma mudança efetiva de posicionamento e mentalidade, já que mesmo entre as amigas de Lara Jean, ninguém parecia inclinado a acreditar em sua versão da história.

Para Todos Os Garotos Que Já Amei

Um exemplo para meninas orientais

Quantos livros com personagens não-brancos você já leu na vida? E só neste ano? Negros, indígenas e asiáticos, sejam escritores ou protagonistas, fazem parte do seu repertório? Em tempos em que diversidade e representatividade ocupam grande parte das discussões em rodas de conversa, on-line ou off-line, é impossível não se perguntar como livros que fogem do padrão vigente parecem não conseguir vencer barreiras e alcançar o cenário mainstream. Outra questão crucial é: quantos desses livros estão sendo realmente produzidos ou sendo engavetados devido a falta de incentivo e aceitação do mercado editorial?

Uma pesquisa idealizada pelo Arts Council England e pelo Centro de Alfabetização no Ensino Primário, e divulgada pelo jornal The Guardian, mostra números preocupantes. Das 9.115 obras publicadas em 2017 na Inglaterra, apenas 1% dos protagonistas dos livros infantis representavam minorias étnicas, sendo que dessa pequena parcela, 10% tinham suas tramas baseadas em injustiças sociais, que são as histórias que alcançam o mercado e constroem a concepção errônea de que existe apenas uma forma de narrá-las. Integrar um grupo marginalizado é, por vezes, a única característica que importa, reduzindo suas trajetória e existência ao sofrimento e preconceito, e apagando suas vivências e personalidades em prol de tramas um tanto quanto trágicas.

Nesse ponto, Jenny Han acerta em cheio ao fugir e subverter uma série de estereótipos atribuídos a asiáticos orientais e toma a decisão de não reduzir Lara Jean e suas irmãs à descendência coreana como único denominador comum relevante em suas vidas. Isso não quer dizer que a trama se esqueça que raça é uma questão muito forte — e especialmente forte nos Estados Unidos — e longe de ser superada, o que é perceptível como quando Peter afirma que Lara Jean é “bonita de um jeito peculiar” (será que ele elogiaria garotas brancas da mesma forma?) ou quando, na época do Halloween, Lara Jean afirma que não importa quão bem ela se fantasie, sempre assumem que seu figurino faz alusão a algum personagem de anime ou mangá.

Além disso, a autora traz à tona o senso comum de que “orientais parecem todos iguais”, que fere sua individualidade como seres humanos. Um dos estigmas mais fortes presentes na construção de personagens orientais é a dedicação ao estudo e a necessidade quase patológica de alcançar o sucesso; fincar-se numa realidade onde falhar não é uma opção. Mas as irmãs Song passam longe desse estereótipo e soam diferentes umas das outras, com personalidades distintas e tridimensionais. E o objetivo de Han é justamente esse: ao apresentar a história de Lara Jean para o mundo, ela mostra ao seu público-alvo, por meio de figuras que despertam identificação e inspiram grupos de leitores etnicamente diversos ou não, que suas histórias e trajetórias são tão válidas e relevantes quanto qualquer outra. Em entrevista ao site estadunidense Bustle, na época do lançamento do livro P.S.: Ainda Amo Você, a escritora resume de forma contundente como o movimento #RepresentatividadeImporta é mais do que necessário.

“[YA Authors] want [readers] to see themselves reflected in their stories, we want them to imagine themselves as heroes and villains and everything in between. We want them to know that there isn’t just one kind of story. But underneath all of that, I think we — and I’m speaking particularly about writers of color — want them to have what we didn’t have.”

“[Autores YA] querem que seus leitores se vejam refletidos nas suas histórias, queremos que eles se imaginem como heróis e vilões e tudo mais. Queremos que eles saibam que não existe apenas um tipo de história. Mas por trás de tudo isso, acho que nós — e eu estou falando particularmente sobre os escritores de cor — queremos que eles tenham o que não tínhamos.”

Contribui também para a luta de asiáticos — e nesse caso, mais especificamente os de origem oriental — sobre serem enxergados e reconhecidos, o fato de as três capas da trilogia trazerem uma modelo asiática, que representa Lara Jean — como deveria ser, é claro, mas que em virtude da prática recorrente de whitewashing (termo utilizado para designar a interpretação de personagens não-brancos por pessoas brancas) em Hollywood ou em produções literárias, mostra-se um passo importantíssimo e uma vitória para aqueles que agora podem, também, ver a si mesmos nos personagens. Nas palavras de Jenny Han:

“From the very start, I said I wanted a photographic cover with an Asian girl front and center, and my publisher was very supportive of that. My wish was for an Asian-American girl to walk into a bookstore and see a girl who looked like her on the shelf. Always, my hope is for all kids to feel seen.”

“Desde o começo eu disse que queria a capa com uma foto de uma menina asiática, e minha editora apoiou muito a ideia. Meu desejo era que uma menina asiático-americana entrasse em uma livraria e visse uma garota que se parecesse com ela na prateleira. Sempre, minha esperança é que todas as crianças se sintam vistas.”

Pesa, ainda, o fato de Han ser parte coreana e ter conhecimento da luta contra o apagamento dos seus ao longo dos anos. Por isso, além de buscar fomentar a criação de personagens que fujam dos padrões vigentes, seja na cultura audiovisual ou literária, é necessário também o incentivo à produção de autores own voices (“vozes próprias”, em tradução livre), que por terem conhecimento de causa, contribuem de forma significativa para uma representação apurada, sensível e livre de reproduções nocivas.

A presença de Jenny Han na lista de mais vendidos em diversas partes do mundo mostra a necessidade crescente de adolescentes terem acesso a livros recheados de conteúdo diverso, bem escritos e pensados, e também cheios de multiplicidade, com a construção de laços afetivos e fraternais saudáveis, a desconstrução de padrões/normas sociais e machistas enfrentados diariamente por adolescentes, das quais meninas são o maior alvo. Para Todos os Garotos que Já Amei nos dá tudo isso, e muito mais.

Para ler mais escritores não-brancos:

Texto escrito em parceria por Debora e .


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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1 comentário

  1. A Jenny Han é, a alguns anos, uma das minhas autoras favoritas. Sou muito fã dos seus livros e comecei a acompanhar as histórias pela trilogia; depois disso, li as sequencias (me lembro que comprei o segundo livro em inglês porque não ia aguentar esperar o lançamento no Brasil!), e também me aventurei em outras séries da autora.
    Laura Jean é definitivamente uma das personagens young adult que eu mais gosto, e estou super ansiosa pra ver como o filme ficou.

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