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Aqui e em qualquer lugar, é tempo de Anavitória

A história não é nova: naturais de Araguaína, município de Tocantins localizado a menos de 400 km da capital Palmas, Ana Caetano e Vitória Falcão se conheceram ainda na escola, mas tornaram-se amigas somente anos mais tarde, por intermédio de uma amiga em comum, e a relação foi o que possibilitou o surgimento da parceria musical, que não demorou a florescer e colher frutos. Mesmo antes do lançamento de seu álbum de estreia, a dupla já experimentava o sucesso e o reconhecimento; inicialmente, chanceladas por Tiago Iorc — responsável tanto pela produção de um EP quanto do primeiro álbum do duo, o também intitulado Anavitória —, mas por sua própria conta não muito tempo depois.

O lançamento do primeiro disco trouxe o alcance de uma visibilidade ainda inédita para a dupla no cenário mainstream: da participação em programas de auditório até a trilha sonora de novelas, o duo teve a oportunidade de apresentar-se a um público cada vez mais abrangente, conquistando uma audiência proporcionalmente mais diversa. Tamanho sucesso permitiu ao Anavitória acumular experiências que iam desde parcerias com outros músicos (às vezes, de gêneros bastante distintos) até bailes de carnaval, ou, mais recentemente, a produção de um filme, protagonizado por elas mesmas e baseado livremente em suas trajetórias — conquistas notáveis, cuja influência fica mais evidente em seu trabalho mais recente, O Tempo é Agora, que chega dois anos após o lançamento de seu álbum homônimo, em 2016.

Em comparação, O Tempo é Agora guarda algumas semelhanças com seu antecessor, muitas das quais tornaram-se marcas registradas do Anavitória: o chamado pop rural continua mais vivo do que nunca, os vocais ainda são doces e o amor continua a ser personagem principal nas composições. Mas entre a doçura de suas vozes e suavidade das melodias, é perceptível como a dupla se encontra em um lugar diferente. O Tempo é Agora continua a ser um trabalho que fala principalmente sobre amar e ser amada, mas não é construído sob a perspectiva ingênua de quem acredita que o amor é suficiente em si mesmo. Muitas das canções versam sobre romances que não deram certo, e cujas marcas continuam a existir mesmo depois do fim. Em “Ai Amor”, faixa que abre o álbum, Anavitória canta sobre a falta, sobre sofrer sozinha e a dúvida de não saber se o outro ainda se sente da mesma forma. “Ai amor/ será que tu divide a dor/ do teu peito cansado/ com alguém que não vai te sarar?”, elas perguntam, mas não há uma resposta — diferente do eu-lírico anterior, que embora experienciasse o fim, o aborda de maneira bastante distinta.

A ausência conduz boa parte da narrativa, como uma parte intrínseca ao processo de ruptura. “Calendário” funciona como um pedido a alguém que não está mais ali, mas que se espera que retorne. “Te guardo solto pra se aventurar/ é tão bonito te espiar viver/ se encontra, se perde, se vê/ mas volta pra se dividir/ amor, é que você fica tão bem aqui/ é que você fica tão bem aqui comigo” — o reconhecimento de que o querer nem sempre existe de forma igual e estar junto não é uma via de mão única. A sonoridade também chama a atenção: é o piano, e não o violão, que recebe maior destaque, seguido pela guitarra, notadamente o instrumento que mais se distingue em comparação às produções anteriores da dupla — o que também promove outra espécie de ruptura. Como em Anavitória, a maior parte das composições continuam a ser de autoria de Ana Caetano e são produzidas por ela e Tiago Iorc, cuja parceria também é mantida no novo trabalho. Mas as semelhanças não levam a um resultado similar. Se Ana Caetano e Vitória Falcão não são mais as mesmas de dois anos atrás, o caminho que percorrem também não é — um contraste que vai desde a identidade visual do álbum (um preto e branco óbvio, mas certeiro) até suas composições e sonoridade, que exploram desdobramentos de inúmeros gêneros tanto quanto de novas influências.

“Outrória”, muito provavelmente a melhor faixa do disco, é um interessante retrato desse novo momento. A música é uma parceria da dupla com a banda OutroEu (cujo título, aliás, é uma brincadeira com a junção entre os nomes da banda e do duo), que também tem participação na composição ao lado de Ana Caetano, e revela um Anavitória que por vezes remete à sonoridade produzida em subgêneros da música baiana — e não ao pop rural ou ao folk, talvez as referências mais óbvias para a parceria. A influência não existe de forma isolada, no entanto: além do EP Anavitória Canta Para Foliões de Bloco, Foliões de Avenida e Não Foliões, que permitiu que a dupla explorasse elementos do gênero, a influência de artistas como Saulo Fernandes, com quem colaboraram no passado, também torna-se evidente. O resultado é uma música que une o melhor de dois mundos, mas mais do que isso, exibe um Anavitória mais maduro e consciente musicalmente, e relativamente mais disposto a se arriscar. Ao mesmo tempo, a dupla não abre mão de sua essência: se seu diferencial sempre foi a capacidade singular de transformar o cotidiano em poesia,“Outrória” continua coesa ao contexto geral.

“Quando vi, já veio sim
Tomou parte de mim
Levou embora o meu pesar
Teu ver me encanta, enfim
Canta perto de mim
Tua voz amansa o teu olhar”

Músicas como “A Gente Junto”, “Porque Eu Te Amo” e “O Tempo é Agora”, faixa que dá título ao álbum, seguem por uma linha similar, porque são músicas que utilizam referências pouco óbvias, mas continuam compatíveis com a narrativa que vem sendo construída desde o disco de estreia — exceto por “O Tempo é Agora”, que destaca-se justamente por ser tão diferente das demais. É curioso que essa seja a faixa que batiza o álbum (a única cuja autoria também é atribuída à Vitória Falcão), mas ainda mais curioso é que ela sirva, também, como um divisor; tudo existe antes ou depois. O que não é mera coincidência. Em sua segunda metade, O Tempo é Agora apresenta um Anavitória em seu melhor: as músicas que constroem a parte final do trabalho são delicadas e cheias de ternura, mas não por isso menos ambiciosas ou fascinantes. “Preta”, outro grande trunfo e uma favorita em particular, traz duas mulheres cantando abertamente sobre o amor que sentem por outra — detalhe que não passa despercebido e é, em muitos aspectos, revolucionário. “Pretinha/ o céu tá ali pra te enfeitar/ não tem um peso em quem veio pra amar/ não tem escolha quando o coração quem diz/ pretinha/ não tem problema se doer/ me deixa perto pra fazer passar/ tem nada errado se é o que te faz feliz”. Ainda que tenham preferido utilizar artigos indefinidos em boa parte de suas composições no passado, o feminino surge de forma bastante natural e condiz com recentes declarações de ambas, que questionadas sobre sexualidade, dizem acreditar em um amor livre e independente de gênero.

“Canção de Hotel”, por sua vez, soa mais comercial, mas não por isso menos sincera — e o fato de ter sido escrita em parceria com Mike Tulio, da OutroEu, não torna a voz de Ana Caetano menos perceptível ou diluída dentro da canção. Já “Cecília” é uma balada tão triste quanto sensível. “Teu olho despencou de mim/ não reconheço a tua voz/ não sei mais te chamar de amor/ não ouvirão falar de nós”, lamentam em suas vozes dobradas, e então cantam mais adiante: “Ausência quer me sufocar/ saudade é privilégio teu/ e eu canto pra aliviar/ o pranto que ameaça” — a tradução da dor que coexiste com a consciência de que o fim às vezes é a única alternativa. “Dói Sem Tanto”, penúltima faixa do álbum, retoma o tom característico do duo e encara o fim de forma mais saudosa do que melancólica. “Dói sem tanto te lembrar/ dando voltas e fazendo meu mundo bambo girar/ mal tu sabe que meu peito/ tem só falta do teu fogo/ nosso jeito torto de seguir/ abandonando todas as defesas, distribuindo nossas cartas em todas as mesas/ fazendo carnaval em terça-feira/ fazendo amor e dizendo besteira”.

A dupla encerra o álbum com “Se Tudo Acaba”, faixa que não apenas conclui a experiência que é ouvir O Tempo é Agora, como também marca o fechamento de um ciclo. Anavitória surge em seu segundo álbum com um material inédito que se distingue tanto quanto se conecta ao antecessor, sobretudo liricamente, e continua a explorar o amor de muitas formas. Mas é, também, o primeiro passo em uma nova direção. Existem caminhos a ser explorados, e mais maduras e seguras, Ana Caetano e Vitória Falcão parecem mais dispostas a fazer apostas proporcionalmente mais elevadas. Como um álbum de transição, O Tempo é Agora possui irregularidades e parece menos orgânico em comparação ao anterior, mas a existência desses traços é o que torna seu resultado tão… vivo. Entre os altos e baixos de um monitor cardíaco, o coração do Anavitória continua a bater mais forte do que nunca.

4 comentários

  1. Ouvi o cd inteiro dentro do carro, andando pela cidade. Essas mulheres realmente trazem algo de especial, algo de verdadeiro, cotidiano poético. Excelente texto!

  2. Texto muito bom, me fez ver as músicas por outras perspectivas.
    Melhor ainda são as músicas, há muito um CD não caía tão bem.
    Não tem uma música ruim., cada uma bate mais fundo que a outra.
    E Ana Caetano arrasando na escrita, como pode alguém ser tão fo**
    Já ouvi o CD umas 300x e vi os vídeos dos shows 700x, outro campo que cada dia mais elas amadurecem é no contato com o público e na presença de palco, isso tudo sem perder a simplicidade e o jeito que cativou todo o Brasil.

  3. Eu só vim (um tanto quanto atrasada e numa época em q provavelmente todo mundo já sabe disso) pra dizer q Preta a Ana escreveu pra mãe dela, não é sobre um amor romântico de duas mulheres kkkkk (mas analisando a letra parece ser sobre se assumir e ser aceita)

  4. Espetacular a sua forma de observar com tanta fidelidade o que elas são! Indefinidas, porque não existe definição para pessoas cuja maturidade vem do que vivem a cada momento. E não somos nada mais que o que vivemos. Parabéns.

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