O mito do rapto de Perséfone por Hades talvez seja um dos mais conhecidos da mitologia grega, inspirando diversas histórias, nas mais diferentes mídias. De musical da Broadway a livros, canções e filmes, os mitos gregos sempre atuaram como fonte de inspiração para artistas, e não foi diferente no caso de Rachel Smythe. A quadrinista e folclorista nascida na Nova Zelândia começou a publicar on-line a sua versão do mito grego, batizada de Lore Olympus, em formato de graphic novel, em 2018, e não demorou a conquistar uma legião de fãs.
O reconto moderno do relacionamento de Hades e Perséfone foi publicado por completo na plataforma digital Webtoon e, devido ao sucesso, alcançou as prateleiras em formato impresso. No Brasil, os dois primeiros volumes da graphic novel foram lançados pela Editora Suma com tradução de Érico Assis além de uma cuidadosa edição de arte. As edições, com quase 400 páginas cada, preservam as cores vivas da arte de Smythe, transformando a leitura de Lore Olympus em algo tão encantador quanto divertido mesmo que não se furte de mencionar temas como abuso físico, sexual, traumas sexuais e relacionamentos tóxicos — assuntos para os quais há um aviso de gatilho logo nas primeiras páginas dos livros.
E assim mergulhamos no universo colorido e singular de Lore Olympus onde somos apresentados a uma jovem Perséfone de apenas 19 anos que se muda para o Olimpo para estudar na universidade, separando-se da mãe, Deméter, pela primeira vez desde que nasceu. Perséfone passou toda a infância e início da juventude afastada do Olimpo, vivendo no mundo dos mortais ao lado de sua mãe, estudando e ajudando-a em seus afazeres enquanto deusa da agricultura e a responsável por proteger as plantações e garantir a fertilidade dos grãos. No Olimpo, Perséfone mora com Artémis e, quando vão juntas para uma festa, conhece Hades. Por conta de um mal entendido com Afrodite, Perséfone acaba sendo levada para o submundo. O encontro de Perséfone com Hades os leva a desenvolver um relacionamento curioso com um inesperado laço de amizade nascendo entre ambos.
O primeiro volume de Lore Olympus é dedicado a desvelar as personalidades dos protagonistas e demais personagens que orbitam ao redor deles. Enquanto Perséfone, desenhada sempre em tons de cor-de-rosa, é uma jovem ingênua e repleta de vida, ainda que com uma melancolia escondida embaixo de seus sorrisos e flores que parece que somente o rei do submundo consegue perceber, Hades, caracterizado por seus tons frios de azul, é um homem mais velho, taciturno e com traumas que prefere manter para si. As interações entre eles são deliciosas de acompanhar principalmente devido ao humor de Rachel Smythe que trabalha tão bem as expressões dos personagens e suas falas espirituosas. Ler Lore Olympus é sorrir o tempo todo com os diálogos entre os personagens, as trocas de farpas entre os deuses do Olimpo e a arte, tão bela e etérea que só poderia mesmo ser feita para caracterizar divindades.
Mas como nem tudo são flores na vida de Perséfone, a personagem precisa lidar com uma pesada carga emocional que ainda não está pronta para compartilhar com ninguém. Embora seus laços com Hades se estreitem cada vez mais e seja inegável a atração que sentem um pelo outro, Perséfone deve se dedicar aos estudos enquanto Hades compreende que um relacionamento entre eles não deve seguir adiante não apenas pela grande diferença de idade, mas também por todas as demais questões que permeiam os relacionamentos entre os deuses do Olimpo. Se no Volume 1 de Lore Olympus é de se deslumbrar com a arte de Rachel Smythe e seu roteiro espirituoso, mas que não se omite de assuntos difíceis, no Volume 2 a trama vai crescendo em intensidade e emocional. Ainda que Lore Olympus pinte toda essa história com belas cores e ilustrações, os relacionamentos mostrados não estão livres de problemas, mesmo o de Perséfone e Hades. Aqui não temos a versão cruel do mito original, mas as questões como insegurança e ciúmes estão todas lá, cimentadas por fofocas da imprensa, inveja de outros deuses e circunstâncias que parecem ser maiores do que os sentimentos que Perséfone e Hades começam a nutrir um pelo outro.
O excelente trabalho visual de Lore Olympus atua como uma ferramenta de narrativa impecável, identificando cada deus por cores específicas que podem ser exacerbadas ou atenuadas de acordo com aquilo que estão sentindo. Todas as páginas são belamente ilustradas, compostas com maestria, transformando a experiência de leitura em algo tão sensível quanto divertido. A fluidez do roteiro se manifesta naquele sorriso que o leitor solta sem querer ao acompanhar os personagens interagindo, testemunhando o nascimento de um casal até então improvável (embora tenhamos conhecimento prévio do mito), que é o da deusa da primavera com o deus do submundo.
Lore Olympus é uma criativa e interessante jornada sobre como o amor pode nascer nas circunstâncias mais inesperadas com visuais de aquecer o coração, um roteiro impecável e muito delicado. A forma como Perséfone e Hades começam a se relacionar, abrindo um para o outro, ainda que sejam completamente diferentes um do outro, é encantadora de acompanhar. Para quem gosta de mitologia grega, Lore Olympus é um prato cheio não somente pelo reconte inteligente e espirituoso de um mito, mas pela delicadeza e sabedoria com que o faz.
Os exemplares foram cedidos como cortesia pela Companhia das Letras.
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