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Harry & Meghan: uma cruzada contra a mídia

Em dezembro de 2022, foi ao ar na Netflix o documentário de seis partes Harry & Meghan, onde o casal autointitulado, Duque e Duquesa de Sussex, aborda os bastidores do processo de deixar os seus deveres na Realeza Britânica e estabelecer uma vida independente, no que pode ser considerado um dos movimentos mais ousados de membros da Coroa desde o divórcio de Charles e Diana, em 1996.

Antes de adentrar o que realmente se espera da produção, ou seja, as picuinhas entre os familiares da então Rainha Elizabeth II, que acontece por volta do quarto episódio, o documentário cumpre a função de delinear quem eram o Príncipe Harry e Meghan Markle antes de se tornarem um fenômeno da monarquia.

Diversos amigos da atriz e ativista frisam como “Meg” já tinha uma vida inteiramente estabelecida antes de conhecer “H”, através do Instagram. Quem acompanhava seu trabalho na série Suits sabia de seu envolvimento com a ONU Mulheres e projetos sociais para os quais dava visibilidade por meio de seus posicionamentos. Do outro lado, apesar de uma carreira de dez anos nas Forças Armadas e praticamente o mesmo histórico de ativismo social que a esposa, Harry tem sua história muito marcada pela morte da mãe, a Princesa Diana.

Harry e Meghan

A este ponto, o documentário não tem medo de deixar claro tudo o que já se especulava na mídia sobre sua personalidade e caráter. Sucinto, simpático e empático sem realmente se esforçar para tanto, Harry é um exímio filho de Diana e já existia como tal, como o filho que o Reino Unido abraçou muito antes de Meghan, sobre o qual as pessoas tinham tolerância, pois havia sido aquela criança que andou atrás do caixão da mãe e lidou com este trauma sob os olhos da nação.

Na atriz, ele encontrou tudo aquilo que precisava para continuar a desempenhar este papel. Apesar de afirmar não querer falar sobre uma suposta lista de pré-requisitos que uma namorada deveria ter para chegar ao título de esposa, ele assinala que “Meghan é a lista”. Ou seja, ela estava disposta a fazer o trabalho, uma vez que, para os membros da realeza que se encontravam na linha de sucessão, esse é parte do significado de um casamento: um trabalho.

Os encontros entre eles são descritos como uma verdadeira comédia dramática, com narrações sobre atrasos de Harry no primeiro encontro, assim como a famigerada e altamente documentada viagem para Botswana, onde ficaram sozinhos por uma semana, dormindo em uma barraca no meio da selva, sem banheiro ou espelho, além da torcida de todos os amigos como pano de fundo; segundo os depoimentos, desde a primeira vez, eles pareciam saber que tinham encontrado a pessoa certa.

O caos público de Harry & Meghan se inicia em 2016, quando um tabloide britânico antecipa aos assessores do Príncipe William que o namoro de Harry e Meghan já era de conhecimento da imprensa e que a história seria vazada para o público sem que eles pudessem fazer qualquer coisa a respeito. Na monarquia, quando se trata de mídia, não há o que se possa fazer para conter o furacão de manchetes em tabloides e, portanto, não há embates; tudo é encarado como uma guerra perdida. E se não há como combater o inimigo, junte-se a ele.

Antes de Harry e Meghan surgirem como fenômeno e reagirem de forma diferente à cobertura excessiva da mídia, não havia muita reflexão — ao menos para além do território britânico —, sobre como a Coroa Britânica e a imprensa, especialmente a de tabloides como o The Sun e o The Daily Mirror, andam de mãos dadas. Trata-se de uma relação mútua, de favores trocados e jogos sujos, onde Instituição, povo e mídia ganham, mas não os indivíduos em si — estes sempre saem perdendo e Diana foi a maior prova disso.

Harry e Meghan

A imprensa é diretamente alimentada por uma monarquia que almeja e precisa de cada passo seu muito bem registrado e intrincado na mente do povo. Uma visita real bem sucedida a um hospital? Muito bem, você está fazendo o seu trabalho! Uma quebra de protocolo em nome de uma situação sensível? Eles são tão empáticos! Um herdeiro real sendo teimoso ou fazendo gracinhas? São crianças como quaisquer outras! Uma foto de biquíni em uma viagem para a praia? Que escândalo! E nesse contexto, tudo é notícia na manhã seguinte.

Se existe um Chefe de Governo e um Parlamento estabelecido para resolver as questões burocráticas do país, a Família Real precisa ter uma função para além de ser uma família simpática que os britânicos consideram como sua. Assim, eles são analisados: cada postura errada, cada escolha de look, cada cor de sobretudo, cada modelo de chapéu casquete, cada palavra que possa significar algo além do que se possa entender em um primeiro momento, cada sorriso morno, cada olhar, do simpático ao triste e ao superior. Tudo está ali, e é servido pela Instituição para que possa ser explorado — não há outra palavra para tanto.

Tendo crescido perante as câmeras, em meio à regras rígidas de comportamento, vestimentas, etc., Harry estava acostumado a um tipo de assédio que Meghan nunca tinha sofrido. Mesmo que Suits fosse uma série de sucesso, ainda era uma série de televisão gravada em Toronto, no Canadá, onde todos estão acostumados a ter pessoas famosas transitando por todos os lados, tendo em vista as diversas produções em andamento na cidade. Diferente dele, ela não possuía o apelo mundial de pertencer a uma das realezas mais famosas do mundo.

Em seu depoimento, Harry deixa claro que os membros da realeza encaram a mídia como mais um problema de rotina, uma parte do trabalho, e que o assédio dos tabloides e dos paparazzis é como um rito pelo qual se deve passar para encarar a prova maior: o pós-casamento. E algo que, tacitamente, foi exigido que Meghan passasse, especialmente depois do anúncio do noivado do casal, no fim de 2017. Ela estava entrando para a família e sua relação com a imprensa deveria ser tão natural ao ponto de ser administrada pelos escritórios de assessorias de cada membro na linha de sucessão, mantidos pelo Palácio. Apesar do susto e do estranhamento inicial (Meghan foi perseguida durante as gravações de Suits e câmeras foram colocadas em pontos estratégicos nas casas de seus vizinhos, por exemplo), foi algo com o qual ela se dispôs a lidar, e de forma, aparentemente, bastante consciente.

Além do amor floreado e dos momentos nunca publicados sobre os quais eles adoram falar, como numa tentativa de conquistar a simpatia do público em nome do relacionamento, muito mais comum entre os casamentos da realeza é a constante abdicação. Sem adentrar muito na ficção, a série The Crown, da Netflix, pontua isso de forma perfeita em suas temporadas, quando o Príncipe Phillip (Matt Smith) se casa com Elizabeth (Claire Foy), então herdeira do trono britânico e, portanto, não apenas sua esposa, mas também o trabalho que ela demanda.

Harry e Meghan

Assim é para Meghan em relação à Harry e para Kate em relação à William: uma renúncia a tudo aquilo que conhecem como sua vida comum, com sua rotina, independência e privacidade para se transformar no que a Instituição precisa — a esposa, o herdeiro, a mãe, a família estável vivendo em cenários cinematográficos e passando férias em lugares paradisíacos, ou seja, a narrativa completa, pois não existe outro motivo para que o casal se sente em uma entrevista para dar detalhes do pedido, do anel, sobre seus sentimentos, a reação da família, etc. senão para vender sua história.

Há uma diferença, no entanto, entre nascer como William e Harry, destinados aos deveres reais, e escolher essa realidade. Pessoas como eles sempre serão membros oficiais, herdeiros de sangue, aqueles que estarão na linha de sucessão por nascimento e sempre serão um símbolo geracional disso. Por outro lado, seus respectivos cônjuges sempre serão os agregados, os “outsiders”.

No caso de Meghan, essa é uma questão ainda mais pesada, especialmente após o casamento, porque se trata de uma real “outsider”. Diferente de Kate, Diana e até mesmo da atual Rainha Consorte, Camilla, que são britânicas e, sobretudo, brancas, Meghan é o completo oposto: americana, atriz, divorciada e negra. Não havia como preparar a realeza, o povo e a mídia para Meghan Markle pois nunca houve outra Meghan Markle antes dela, e neste ponto reside o cerne de tudo que o casal viveu em seu tempo como Duque e Duquesa de Sussex, membros ativos da monarquia, e de tudo o que é documentado em Harry & Meghan.

Após o casamento real em 2018, o encanto sobre Meghan, sua aparente facilidade em lidar com o trabalho como membro da realeza, seu interesse pelo ativismo social, os elogios à sua postura sóbria, mas ao mesmo tempo simpática, bem como ao fato de como ela e Harry pareciam completar um ao outro, mudou radicalmente. Especialmente após as turnês que foram feitas pelos países da Commonwealth, subordinados à Monarquia Britânica, onde o interesse sobre eles pareceu ainda mais elevado, como na Austrália.

Finalmente, as pessoas de nações de maioria negra viam em sua realeza alguém parecido com eles, sem parecer uma interação forçada. Quando William e Kate fazem este caminho, ele é o herdeiro ao trono, aquele que um dia será rei, cumprindo seu dever junto aos seus súditos. Quando Harry e Meghan aparecem, no entanto, é como se demonstrassem uma proximidade real, principalmente pelas origens da atriz. Mesmo pensando nessa época e sem levar em consideração a óbvia parcialidade do documentário, a naturalidade com que Harry e Meghan estabelecem essa conexão e caminham entre o povo como se tivessem nascido para isso é algo que não pode ser imposto pelo mero respeito a uma figura de autoridade.

Harry e Meghan

Harry & Meghan aborda algo que apenas se especulava: que havia uma fagulha de ciúmes correndo entre os membros da realeza ao perceberem como o arsenal de popularidade do casal de Sussex era pesado. Não é exagero afirmar que eles eram superstars da monarquia, pois até mesmo a rivalidade que se formou depois entre os príncipes os teve como motivação central.

Apesar de ser necessário reconhecer que Harry & Meghan serve a uma agenda bem específica e traça uma imagem muito sóbria de Meghan Markle, sendo necessário reconhecer que ela não é a pessoa perfeita que, em tese, se relaciona muito à imagem, também perfeita, da Princesa Diana, é importante apontar o padrão de narrativa de uma mídia que também serve à sua própria agenda: a de depender de interesses escusos e nem sempre exclusivos — que é quando Harry aponta diretamente para seu irmão, William.

Quando Meghan Markle era apenas uma novidade nos cenários reais, andando entre os membros da realeza empolgada para fazer parte daquela família, era aceitável que a mídia se deleitasse sobre ela e, consequentemente, o povo se encantasse com o futuro promissor da monarquia. Depois, quando isso passou a ofuscar outros membros, ela se transformou em um grande problema. Não é por acaso que o documentário estabelece quão próxima é a relação da Instituição com a mídia, pois, logo depois das turnês do casal real, Meghan se tornou uma pária. Como se, antes do casamento, ela estivesse encenando a personagem perfeita para adentrar a família, manipulando a todos para pensarem que ela seria uma ótima esposa, e tivesse, finalmente, se revelado uma vilã, levada pelo poder de seu novo status real subindo à cabeça.

O maior problema em relação aos ataques da mídia, no entanto, não eram somente as ofensas em si, apontando defeitos, aumentando histórias e, às vezes, simplesmente inventando mentiras através de “fontes pagas”, mas o tom racista que possuíam. A narrativa da mulher negra, furiosa, arrogante ou superior por estar em um local de destaque (uma crença muito como, por exemplo, sobre Taís Araújo quando começou a ganhar espaço na Rede Globo). Mesmo que Harry, como marido e membro da realeza, estivesse disposto a aprender sobre antirracismo e, inclusive, sexismo, para compreender o que Meghan estava passando, ele era uma exceção. Ele tinha o poder de apontar os ataques à própria Instituição que deveria protegê-lo e à sua família, incluindo seu herdeiro, Archie, mas não seria capaz de fazê-los compreender o que não estavam dispostos. Porque apenas Meghan recebia ameaças de morte por conta de um dos maiores problemas do século XXI, as fake news, e, afinal, apenas ele seria o pai do filho de uma mulher negra.

Como foi noticiado durante o processo, o casal fez diversos pedidos, como Duque e Duquesa de Sussex, para que houvesse um posicionamento da Coroa, no sentido de combater os ataques da mídia. Porém, a única resposta que obtiveram foi a de que não poderiam reagir para que a questão não tomasse maiores proporções e que a imprensa também não se virasse contra outros membros da Coroa: como membros da realeza, eles estão a serviço do povo e devem anuir à qualquer tipo de cobertura midiática em contrapartida ao dinheiro do contribuinte que os mantém. Ou seja, a publicidade de seus atos sempre será uma justificativa; quando se é um membro da coroa, não há como desatrelar o negócio da família e o perigo existe quando as duas partes entram em conflito.

Quando uma carta de Meghan ao pai, com quem passou a ter uma relação conturbada desde o início do casamento, foi vazada integralmente à imprensa, o Palácio prometeu tomar as medidas cabíveis devido à quebra de sigilo da Duquesa, mas nada foi feito, e Meghan e Harry tiveram que procurar por advogados particulares. No fim das contas, os pedidos de apoio, talvez, tivessem surgido da crença de enxergar os membros mais como uma família do que como colegas de Instituição a serviço de um poder maior e onipresente.

Em Game of Thrones, muito se falou sobre o momento em que seria quebrada a roda, estabelecendo uma nova realidade, alinhada com os ideais de quem queria fazê-lo, por conta das convicções de que o estava provocando. Colocar Harry e Meghan, deliberadamente, em evidência e como motivação concreta da quebra de paradigmas da Coroa Britânica seria como dar um atestado de poder a ambos, especialmente de popularidade, algo que eles não compreendiam à época. Caso o povo percebesse que a monarquia estava se levantando contra a imprensa, depois de anos de inércia, ficaria claro que eles eram valiosos demais. Ou seja, não era permitido que eles demandassem tal importância, ainda que se tratasse do neto da Rainha Elizabeth II.

Mesmo que tenha dito não querer causar problemas, Meghan possuía suas próprias convicções e algumas sobre as quais não faria concessões, como o nascimento de seu filho, Archie, em um parto feito por sua médica de confiança… mas não no tradicional hospital imperial, onde Diana e Kate marcaram o mundo ao apresentar seus filhos pela primeira vez. Por decisão do casal, Archie foi apresentado à imprensa no Castelo de Windsor, em mais uma quebra de expectativas que só ia minando a falta de tolerância da família com este novo casal, que aparentemente queria viver a vida à sua própria maneira, mas também fazer parte deste mundo exclusivo. Se todas as mulheres que adentram a monarquia, tradicionalmente, deixam suas convicções pessoais em nome da Instituição, por que Meghan não poderia fazer o mesmo? Se todas têm suas singularidades tomadas por esse sistema, por que ela teria suas exceções, quando as mulheres britânicas, por nascimento, jamais puderam desfrutar de alguns privilégios, mesmo os mais básicos? Como se vê, é um jogo que nunca se ganha e sempre se refaz o mesmo caminho.

Em Harry & Meghan, Harry confirma o que já havia ficado claro aos que estavam mais atentos às entrelinhas do sensacionalismo. Em um embate de pontos de vista, necessidades e egos, William e ele tomam direções opostas, pela primeira vez, e Charles seguiu por uma delas — chegando a revelar que a Instituição mentiu para proteger a reputação do futuro rei em uma narrativa que, em muito, irá favorecer a ficção sobre a realeza no futuro.

Harry também corrobora as diversas histórias publicadas em 2020, de que eles ofereceram opções para deixar o Reino Unido e representar a monarquia em outros de seus territórios, como o Canadá e a Nova Zelândia. Mas a proposta não foi aceita, demonstrando algo que já estava nítido pelo tempo que eles demoraram para abandonar a Instituição como membros oficiais: Harry e Meghan não desejavam sair.

Como restou bem claro desde as primeiras interações de ambos como casal junto ao povo, eles foram feitos para aquele lugar, em detrimento de todos os impasses e traumas quanto ao assédio da imprensa, e não há como aqueles que restaram no Reino Unido disfarçarem e fingirem que não restou uma rachadura que eles não se esforçam para consertar. Assim, mesmo que Harry e Meghan entrem para a posteridade como uma dessas grandes histórias de amor, que combinam elementos pré-requisitados do gênero — o drama, os vilões, os mocinhos e os símbolos reais como seus obstáculos maiores —, não deixa de ser uma novela trágica. Pois como se evidencia nesta, que é uma peça publicitária de demonstração de poder e engajamento popular, assim como uma retaliação, muito mais à mídia tabloidiana do que à monarquia em si, resta para o Reino Unido a possibilidade de um futuro, que poderia ter sido, mas jamais será. Toda a possibilidade de um futuro, contida em cerca de quatro anos da presença esmagadora de Harry & Meghan como membros da Coroa, será apenas isso.

A expectativa de que os ares de inclusão racial e progresso, ao ganhar um contorno muito realista a partir de um retrato de casamento sobressalente aos retratos de seus seculares pares na parede de um palácio qualquer, chegariam ao Reino Unido, agora são apenas isso: uma história conturbada entre familiares e uma história tão instigante quanto decepcionante. Até mesmo triste. Após desfrutar o potencial que Harry e Meghan poderiam levar à Coroa, especialmente em relação aos países da Commonwealth, este foi reduzido a cinzas por um sistema muito poderoso, patriarcal e branco, de forma que, apenas em alguns anos, será possível perceber que esta mancha acinzentada ficará, para sempre, na história da Família Real.

Meghan e Harry demonstram ter pela frente um futuro quase tão brilhante quanto teriam junto à Instituição. Prova disso é o documentário que, mais uma vez, quebra todos os paradigmas relacionados à monarquia e, por conseguinte, a famigerada roda dos poderes, enquanto para a Coroa restam os protocolos e a normalidade de um cenário sem superstars indevidamente roubando as atenções dos personagens principais.