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My Brilliant Friend: o que pensamos até agora

Existe uma anedota da filmagem de My Brilliant Friend que, até pelo fator coincidência, representa a essência da adaptação de A Amiga Genial, primeiro volume da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante. Uma turista brasileira passeava por Ischia, uma ilha no litoral de Nápoles que tem papel relevante na trama, quando parou num restaurante e mesmo longe das câmeras reconheceu, nos atores que provavelmente estavam jantando depois de um dia de trabalho, velhos personagens conhecidos dos leitores da Tetralogia: uma Lenu adolescente e a família Sarratore. Para o diretor da série, Saverio Constanzo, a turista ter acertado o papel que cada um interpreta rendeu um episódio engraçado. Mas, considerando a primeira temporada exibida em novembro e dezembro pela HBO, o caso da turista parece algo natural. A adaptação do livro para a TV é tão fiel que basta um pouco de contexto para reconhecer personagens, cenas e diálogos inteiros.

As características mais marcantes do cenário da história foram transpostas habilmente para a tela. O visual austero do bairro, a poeira constante das ruas de terra batida, a violência onipresente, o isolamento da vida num subúrbio afastado do centro de Nápoles, tudo isso enriquece a experiência de assistir ao início da amizade simbiótica e conflituosa entre Lila e Lenu. Elementos que são descritos no livro aparecem também com maior impacto na série: a simplicidade das casas, o figurino dos anos 50, a sonoridade contrastante entre o dialeto napolitano e o italiano formal, o cansaço no rosto das mulheres.

Atenção: este texto contém spoilers!

Dividida em oito episódios, a primeira temporada de My Brilliant Friend começa com uma Lenu de 60 e poucos anos (Elisabetta De Palo) que decide, com rancor, escrever a história de sua amiga como uma vingança pelo seu sumiço dramático. Sim, exatamente como no prólogo do livro. Dá para acompanhar a série com o exemplar em mãos, já que a ordem dos acontecimentos sofrem apenas pequenas alterações para facilitar o entendimento de eventuais espectadores que ainda não conheçam a trama, construindo uma linha do tempo para as memórias de infância da narradora. Até os diálogos são parecidos com os que foram escritos inicialmente por Elena Ferrante, que também assina todos os episódios como roteirista ao lado de Francesco Piccolo, Laura Paolucci e Saverio Constanzo. Numa extensa troca de correspondência, a escritora deu pitaco sobre os rascunhos de cada um dos oito capítulos da série. Já é intimidante adaptar uma obra que vendeu milhões de livros, provocando um efeito mundial como o da Febre Ferrante. Agora imagine adaptar o trabalho da vida de uma autora que pode neste instante estar escrevendo críticas à série em e-mails que nunca serão enviados, mas publicados daqui a anos num segundo volume de Frantumaglia.

Tão difícil quanto adaptar a Tetralogia Napolitana tem sido colocar no lugar os sentimentos e impressões a respeito dos primeiro episódio e desse primeiro contato com a materialidade de cenários e personagens que estiveram tão vivos dentre nós nos últimos anos. Um mês depois da estreia do primeiro episódio, nos reunimos para trocar algumas ideias iniciais a respeito de My Brilliant Friend, construindo um panorama geral da série até agora, bem como os erros e acertos dessa empreitada corajosa.

Se falharmos nessa missão, Parul Sehgal, crítica do New York Times, já fez o trabalho de condensar perfeitamente a impressão que tivemos com essa primeira temporada da adaptação:

“Para mim, os livros da tetralogia napolitana são uma Lila. Eles são claustrofóbicos, assustadores e ambíguos. A série é uma Lenu. Ela é muito bonita e quer agradar. Até a violência parece estilizada. E deixa de fora tanto do que torna o livro fascinante — como Ferrante retrata emoções e desejos conflitantes e competitivos e que não tem nome certo.” (tradução nossa)

Primeiras impressões

ANNA VITÓRIA: Para quem me conhece talvez isso não pareça grande coisa, já que me emociono fácil, mas chorei vendo o trailer da série. Não lembro disso ter acontecido antes. Achava que nunca mais sentiria essa emoção de ver na tela uma história que ocupou tanto meu imaginário nos últimos anos. Assim como minha infância pode ser dividida entre antes e depois de Harry Potter, o início da minha vida adulta é antes e depois de Elena Ferrante. Ver o bairro e as meninas foi viver de novo aquela emoção pura que até deixa possíveis defeitos em segundo plano, porque a chance de ver aquilo é tão mais legal que todo o resto.

Mesmo forçando o olhar crítico, no entanto, minha impressão inicial foi muito positiva. Em termos de cenário e personagens, foi a adaptação mais satisfatória que já assisti, era como ver na tela as cenas que se passavam na minha cabeça enquanto lia. Nos episódios da infância, achei que funcionou bem a abertura com os retratos de família como um aceno às primeiras páginas do livro, que trazem a listagem dos personagens e uma linha breve sobre seus feitos mais relevantes para nos situar na história. Com a mudança do elenco na passagem para a adolescência, demorei um pouco mais a identificar cada um, e talvez a abertura pudesse ter sido mais útil nisso.

Um dos meus momentos favoritos, ainda no início, é a visão que a Lenu mais velha tem da Lila pequena, como que assombrando sua casa à medida que a personagem volta a acessar as memórias do passado para escrever sua história. Achei uma cena poderosa e bem eficiente em ilustrar uma dinâmica entre as duas personagens que vai se repetir bastante ao longo da história, quase o motor que impele Lenu a escrevê-la. Esse momento quase surrealista que extrapola um pouco a obra original aparece duas vezes no piloto e é algo que sinto que poderia ter sido mais explorado pelo diretor, principalmente a respeito de aspectos subjetivos e complicados da história que são difíceis de ser transpostos para imagens.

Os insetos entrando pela boca das mulheres durante a noite, pra ilustrar aquilo que Lenu chama de insanidade intrínseca às mulheres do bairro, é muito mais forte e eficiente, na minha opinião, do que os confrontos de Melina (Pina di Gennaro) com Lidia Sarratore (Fabrizia Sacchi), que me parecem um pouco fora de tom num momento de apresentação. Depois da emoção inicial de ver o bairro, fiquei um pouco incomodada com a forma como ele surge no primeiro episódio, quase como um alívio cômico apesar da violência. Para espectadores não familiarizados com os livros, ver Melina jogando os objetos da casa pela janela provavelmente não surte o efeito desejado, o de apresentar o sofrimento de uma personagem que perdeu a sanidade pelo egoísmo de um homem — um fantasma que de certa forma acompanhará as protagonistas como uma das correntes do grilhão que é o bairro na vida de cada uma.

No segundo episódio isso já não é tão forte, aos poucos Saverio Constanzo vai encontrando o tom para se equilibrar nesse lugar tão específico de desconforto e ambiguidade de onde vem a força da obra da Ferrante, em que a violência está presente em todos os lugares mas não pode ser normalizada, e sinto que a maioria das oscilações de ritmo e tom que a série sofre são justamente tentativas de encontrar esse ponto de tensão e se jogar nele.

LUISA: Os episódios sobre a infância são encantadores e talvez assustadores na mesma medida. Na primeira incursão pelo bairro, o momento é para reconhecer os personagens e revisitar a infância de Lila (Ludovica Nasti) e Lenu (Elisa del Genio) como se também fôssemos um elemento importante dessa relação, não uma personagem secundária como Gigliola (Alice D’Antonio) ou Carmela (Francesca Bellamoli) e muito menos apenas uma das milhares de leitoras que foram marcadas pelas histórias de Elena Ferrante. Ainda que o roteiro pouco se distancie do que está no livro, na série dá para reparar melhor no entorno da trama principal. E o que mais chama atenção é a violência tão presente no cotidiano das crianças. O espancamento de Alfredo Peluso (Gennaro Canonico), o velório do marido de Melina, a pedra que atinge Lila na cabeça, são muitos acontecimentos dramáticos na vida de uma menina que só queria ser elogiada publicamente pela professora. Não é à toa que Lenu desmaia depois de presenciar a briga entre Melina e Lidia Sarratore.

Na primeira vez que vi a parte da infância, a atuação das crianças não pareceu grande coisa. Depois percebi que elas deixaram marcas mais fortes que as atrizes mais velhas, que inclusive aparecem em mais episódios. E o que fica é realmente a sensação de deslumbramento com o início dessa longa história que mostra, entre eventos significativos e outros mais simples, a primeira vez que Lila chama Lenu para brincar no pátio ou a tentativa da expedição ao mar. A trama dos estudos também ganha contornos mais dramáticos quando vemos como a professora Oliviero (Dora Romano) fica emocionada ao contar para as demais alunas que Lila aprendeu a ler sozinha. Uma amiga está preocupada porque perdeu o posto de primeira aluna da classe e a outra apenas é proibida de continuar os estudos, culminando na esperada cena em que Lila é lançada pela janela de casa.

Foi já na adolescência, no entanto, que reparei num detalhe que me ajudou a repensar a tetralogia enquanto livro escrito por Lenu. De tanto ver a amiga agir com convicção (ou simplesmente agir), Lenu (Margherita Mazzucco) passa a observar dos cantos a vida que acontece à sua frente. Em muitas cenas, ela não faz muita coisa além de reparar em Lila (Gaia Girace) e na órbita de pessoas ao redor da amiga. Será que, na festinha de Gigliola (Rosaria Langellotto), outra pessoa teria notado que Pasquale (Eduardo Scarpetta), Stefano (Giovanni Amura) e Marcello (Elvis Esposito) se aproximaram de Lila com a intenção de tirá-la para dançar enquanto ela ainda estava no meio da pista com Enzo (Giovanni Buselli)?

Toda a série parece ter sido meticulosamente pensada para os fãs dos livros e especialmente para a própria Ferrante. Qualquer análise que se faça de My Brilliant Friend parte da análise da adaptação de uma obra literária, e é difícil de imaginar se a série teria o mesmo apelo caso fosse um texto original. No Brasil, os comentários sobre a série chegam pelos leitores da Tetralogia Napolitana e, para escapar desse nicho, a adaptação teria que fazer antes um sucesso estrondoso nos Estados Unidos, o que não parece bem ser o caso.

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Adaptação

ANNA VITÓRIA: Queria que esse insight fosse meu, mas minha principal consideração sobre a adaptação veio de algo que li na newsletter da Isadora Sinay. Ela escreve que a série cria um narrador em terceira pessoa que os livros não têm, uma vez que são narrados pela Lenu e isso limita as nossas perspectivas e também faz com que toda a história seja filtrada pelo conhecimento que a narradora tem daquilo que virá adiante. Embora haja inserção de narrativa em off em alguns momentos, o uso é bem moderado e nunca é preguiçoso. Acho que a série vai bem na proposta de ser extremamente fiel aos livros, mas poderia explorar melhor essa outra possibilidade narrativa nem que fosse pra cortar passagens dispensáveis, como namorico de Lenu com Gino (Riccardo Palmieri). Nem precisava inventar nada de novo, mas o tempo poderia ser usado, por exemplo, para delinear melhor o relacionamento dela com Antonio (Christian Giroso), que foi o ponto mais divergente do original até agora e que é incômodo porque deixa de fora coisas importantes a respeito do significado da história dos dois, como isso está ligado ao relacionamento da Lila, e também porque evolui para um tipo de intimidade logo depois que a Lenu tem aquela experiência realmente péssima com o Donato Sarratore (Emanuele Valenti). Sobra cuidado em algumas coisas para o detrimento de outras.

LUISA: A adaptação foi muito boa ao retratar as grandes cenas do livro, cenas que já estavam no nosso imaginário e que ficaram ainda mais impactantes na TV: toda a dinâmica envolvendo as bonecas perdidas no sótão e a visita a Dom Achille (Antonio Penarella), os fogos de artifício na noite de Ano Novo e o momento em que Lila confronta Marcello Solara com aquela arma improvisada, por exemplo. O problema é que o roteiro se perde entre esses momentos de clímax, às vezes numa lentidão que até se encaixa melhor ao clima do livro, às vezes num atropelo de acontecimentos secundários. Fiquei com essa impressão tanto no primeiro episódio (“As Bonecas”) — que até funciona como uma abertura de ritmo mais acelerado — como no sétimo (“Os Namorados”), quando a vida de Lenu parece virar do avesso. Todo o caso com Antonio é resumido a um dia em que ele de repente aparece na praia onde ela estava e, de volta ao bairro, ele já é impelido a confrontar Donato Sarratore pela forma como ele tratou Melina.

Isso parece ser consequência do preciosismo da adaptação, que optou por não cortar algumas tramas pelo bem da narrativa central (ou seja, a vida de Lila vista por Lenu) e também da dificuldade de transpor para a tela as idas e vindas da memória da narradora, recurso que funciona muito bem no texto. Do tom de recordação de longa data, ficou apenas a voz em off e os poucos momentos em que aparecem imagens de cobertura enquanto Lila conta uma história para Lenu: quando ela narra detalhes inventados da morte de Dom Achille, depois quando compartilha com a amiga as declarações de amor que recebeu de Pasquale e Marcello e, por fim, o caso da panela de cobre que explode no meio da noite. Os momentos surrealistas, que Anna já mencionou, também poderiam ter sido melhor explorados para diferenciar as memórias da infância das outras mais recentes ou ainda para representar a confusão que às vezes fazemos na tentativa de lembrar circunstâncias muito específicas do passado.

Não sei se isso parece um contrassenso, mas o fato de a série seguir o livro tão de perto me deixou mais incomodada quando notava que algum elemento não correspondia ao texto original. No fundo, fiquei curiosa para saber o que Saverio Constanzo teria feito de diferente se tivesse uma maior liberdade narrativa.

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Male gaze versus Female gaze

ANNA VITÓRIA: Uma das principais coisas que se diz sobre o trabalho da Ferrante é que nenhum homem poderia ter escrito aqueles livros e isso é verdade. O olhar dela é muito único não só como autora, mas como alguém que narra a experiência feminina. Isso se torna um ponto de tensão importante quando a série é adaptada por um homem, e foi algo que me deixou apreensiva desde o início. O episódio com o Donato é um acerto da direção, que consegue captar a confusão emocional da personagem, que a paralisa ao sofrer um abuso, sem fetichizar o ato ou a dor causada por ele. Um pouco antes, quando Lenu espia Nino no escuro com roupas de baixo, existe um esforço para criar esse olhar feminino sobre corpos. Alguns momentos me deixaram em dúvida, como no plano fechado sobre os seios marcados da personagem por baixo da blusa, e o impacto que o corpo nu de Lila causa sobre Lenu; outros, como o primeiro beijo em Antonio, me deixaram bem desconfortável.

LUISA: Também tive esse receio inicial ao saber que um homem seria o responsável pela adaptação, principalmente em tempos que pedem mais mulheres ocupando mais posições no cinema e na TV. Só voltei a pensar no assunto na cena em que Lenu menstrua pela primeira vez. Tudo acontece como no livro, com exceção da mancha de sangue no colchão e na saia, um arranjo extra da adaptação. Será que Lenu, sempre preocupada com a opinião alheia, não iria checar se não tinha sujado também a própria roupa antes de sair de casa? É o tipo de coisa que homens parecem não se importar muito. Lembro que na adaptação de uma história de Alice Munro para o filme Julieta, Pedro Almodóvar troca uma cena de desconforto típico dos primeiros dias de menstruação para uma cena de sexo durante uma viagem de trem. Ao menos a menstruação foi mantida em My Brilliant Friend.

Foi de fato a cena do primeiro beijo e primeiro contato sexual com Antonio que me fizeram pensar no contraste entre olhar masculino e o olhar feminino. Com o romance deles reduzido a pouco tempo de tela, a rapidez da intimidade entre o casal não foi muito condizente com o contexto da época e também toda a situação. A perspectiva da câmera não é a da adolescente, mas do olhar de um terceiro, quase um voyeur, como Antonio tentando espiar Lenu trocando de roupa minutos antes. Já no finale, a cena em que Lenu ajuda Lila a se preparar para o casamento foi outro momento no mínimo esquisito. A nudez de Lila aparece com tanto destaque em primeiro plano de tal forma a ofuscar o ponto principal daquele instante: o desconcerto de Lenu ao reparar no corpo da amiga. Algo se perdeu ali.

Pontos fortes

ANNA VITÓRIA: Eu gosto bastante dos momentos de ternura e leveza que a série consegue captar. Tão difícil quanto mostrar a violência sem banalizá-la, também é retratar os momentos mais delicados da história sem cair na pieguice ou fugir demais do tom geral. A cena das meninas abraçadas enquanto leem Mulherzinhas, por exemplo, ficou muito marcada pra mim. Ao contrário da Luisa eu gosto bastante do segundo episódio (“O Dinheiro”) porque ele tem a chance de jogar com o contraste das meninas em situações de violência extrema de um lado, e de muito carinho em outro. E nesse episódio em específico ainda existe o fato da sede delas por conhecimento ser o que alavanca tanto a violência como a ternura, e essa ambiguidade está presente em vários momentos da história. A questão da inteligência, dos estudos e dos livros marca as duas pra sempre, até mesmo no sentido mais amplo da construção de narrativa, algo a que Lenu recorre para dar conta da própria vida e algo que escapa completamente à Lila, sendo a desmarginação a manifestação extrema disso.

Nessa mesma toada, gosto muito do episódio passado em Ischia (“A Ilha”), meu favorito ao lado do segundo, pela transformação de Lenu e a forma como ela, de fato, fica mais bonita e parece mais viva quando vai para a praia. O olhar da personagem é diferente. Isso diz muito sobre o acerto com o elenco todo de modo geral, especialmente na escolha das protagonistas. A abertura do episódio, que mostra Lenu descobrindo o mar e o mundo para além do bairro, é com certeza uma das coisas mais bonitas que vi na televisão esse ano. Quanto mais o plano se abre, mostrando a imensidão do mar se fundindo com o horizonte, vemos um bom uso da máxima do cinema que diz “mostre, não fale”, e o que a câmera de Constanzo mostra são todas as possibilidades que existem fora do bairro que pela primeira vez Lenu tem a chance de enxergar.

LUISA: Pasquale e Enzo dançando a “Lazzarella” no casamento de Lila e Stefano é um dos melhores momentos de toda série e foi uma novidade da adaptação. A música é citada no livro, mas, na verdade, ela só toca quando os irmãos Solara entram no salão de festa, no finalzinho da história. Todo o casamento tem sequências ótimas, e nem consigo imaginar o desastre que teria sido a temporada caso a cerimônia realmente tivesse sido cortada por questões orçamentárias. O episódio que se passa em Ischia é um dos mais redondinhos e, apesar de ter aquele final que gostaria de desler e agora também de desver, é um bom exemplo de como contar as histórias paralelas das amigas mesmo que elas estejam geograficamente separadas.

Também funcionou muito bem o pesadelo que representa a transição da infância para a adolescência das protagonistas. Como no prólogo, ele também mostra uma coexistência de Lila e Lenu em diferentes estágios da vida. Espero que as próximas passagens de tempo tenham essa mesma delicadeza. Por fim, o trabalho de verão de Lenu como garota responsável por levar outras crianças à praia rendeu uma referência à estética da capa brasileira de A Amiga Genial, com destaque aos maiôs usados na época. Uma referência provavelmente involuntária, já que as capas originais mostram a cena de um casamento, com daminhas que não foram vistas na festa de Lila e Stefano.

Pontos fracos

ANNA VITÓRIA: Os pontos citados antes foram o que me causaram mais incômodo: a forma atrapalhada como o relacionamento de Lenu com Antonio foi conduzida, a dificuldade de Saverio Constanzo em se desviar das armadilhas do olhar masculino e o esforço de My Brilliant Friend em ser tão literal que perde a chance de explorar outras possibilidades narrativas. Alguns episódios, como “Os Sapatos”, sofrem com o excesso de acontecimentos emaranhados a um ponto que sua força se perde, e até consigo entender as pessoas que, durante a leitura, conseguiram se entendiar com a subtrama dos sapatos. O fato de Michele Solara (Adriano Tamaro) não ser um homem tão bonito como prometido nos livros também é um detalhe que não consigo esquecer.

LUISA: O maior ponto fraco da série foi ter dado margem para que alguns espectadores torçam para que Lila e Marcello fiquem juntos na próxima temporada. Nem sei direito como isso aconteceu, mas existem dois momentos da série que podem ajudar a explicar esse delírio coletivo. Depois de ameaçar cortar o pescoço de Marcello, Lila passa muito tempo olhando para o rapaz, primeiro com raiva — como era de se esperar — e depois com uma certa confusão que pode ser interpretada até como o início de um romance. O outro momento acontece nos últimos instantes do finale. Lila percebe que Marcello está usando o sapato Cerullo que ela ajudou a fabricar e, a ponto de chorar, troca olhares intensos com ele (mais uma vez), mas também com Stefano e com Lenu. Todo esse momento parece ser uma cena que passou do ponto de corte. É triste que logo o final tenha sido decepcionante. Em vez de mostrar um close no sapato e pronto, fim da temporada, aquela atenção forçada ao olhar de Lila parece sugerir que ela está antevendo todo seu sofrimento futuro. O olhar dela não está transformado numa espécie de fenda, como tanto se descreve no livro. A impressão que dá é que as atrizes adolescentes tentaram suavizar os trejeitos das atrizes que interpretam as crianças, sem muito sucesso.

E agora?

ANNA VITÓRIA: Acredito que o desafio para a próxima temporada é dar conta da quantidade de eventos do segundo livro, que precisaria de uma temporada nos moldes antigos de 24 episódios se a ideia é continuar com uma adaptação tão fiel. Saverio vai precisar tomar algumas liberdades e ir adiante na proposta de criar uma série que seja uma obra em si, porém mantendo o sentido do original — o que acho mais importante do que uma transposição literal para as telas.

LUISA: Com certeza o diretor vai precisar aprender a trabalhar com prioridades. Até porque já foi confirmado que a segunda temporada também terá apenas oito episódios. Não adianta querer contemplar cada um dos pequenos acontecimentos do segundo livro, que é um tanto maior que o primeiro. Se continuar nesse ritmo, a quarta temporada corre o risco de ser feita no formato dos clipes de recapitulação exibidos no início dos capítulos, sem falas para não ocupar muito espaço. Particularmente, gostaria que até o fim da série alguma cena importante fosse gravada exclusivamente do ponto de vista da Lenu, sem que ela aparecesse em tela. O narrador em terceira pessoa já está estabelecido como uma das principais diferenças entre livro e adaptação, mas seria interessante ver uma cena que trabalhasse com a noção de narrador não confiável. Por mais que seja uma experiência e tanto acompanhar a Tetralogia Napolitana na TV, a história já é conhecida. Resta saber o que pode ser feito a partir dos livros além de uma releitura tão precisa.

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