Ainda que Esquadrão Suicida não tenha sido um grande filme e existam diversos problemas de roteiro e narrativa, à época fui ao cinema e consegui me divertir verdadeiramente com o que estava assistindo. Mesmo que o projeto do diretor David Ayer — com produção executiva de Zack Snyder — não tenha jamais conseguido atingir o potencial anunciado com seus trailers explosivos, os personagens e os atores responsáveis por dar vida a cada um deles foram o suficiente para cativar a audiência (exceto, desnecessário dizer, por Jared Leto). Dito isso, foi impossível não ficar empolgada com a perspectiva de assistir Margot Robbie retornando para seu papel de Arlequina em Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa, a mais nova empreitada da DC nos cinemas, com direção de Cathy Yan e roteiro de Christina Hodson.
Atenção: este texto contém spoilers!
Logo no início do filme, somos introduzidos rapidamente, e por meio de uma animação divertida, à vida de Harley Quinn (Robbie) quando criança e ficamos sabendo como a personagem se transformou em uma vilã em Gotham City. A pequena introdução serve principalmente para situar a parte da audiência que não sabe muito sobre a personagem para além da alcunha de “namorada do Coringa”, e nos faz entender quais caminhos Harleen Quinzel percorreu até se formar em medicina, estudar para obter seu doutorado e chegar ao ponto de se atirar em um tonel cheio de substâncias químicas com o intuito de provar seus sentimentos pelo Coringa (Leto) em Esquadrão Suicida.
Após esse interlúdio, encontramos Arlequina curtindo a fossa após seu rompimento com Coringa: Harley concentra sua energia no roller derby, em sair com outras mulheres e aprontar altas confusões enquanto fica completamente bêbada por aí. Ela e seu Pudinzinho terminaram o relacionamento, e agora Harley precisa reaprender a andar por conta própria, o que significa, no mundo dela, também aprender a sobreviver sem a proteção do palhaço em uma cidade que não demora a colocar um alvo em suas costas. Ao lado de Coringa, Arlequina faz o que tem vontade sem pensar nas consequências. Agora que ela não tem mais sua proteção, todas as pessoas que se sentiram pessoalmente vitimizadas por ela ressurgem para um acerto de contas.
Nesse meio tempo, os outros personagens que compõem Aves de Rapina são apresentados. Dinah Lance (Jurnee Smollett-Bell), Helena Bertinelli (Mary Elizabeth Winstead), Detetive Renee Montoya (Rosie Perez) e Cassandra Cain (Ella Jay Basco) recebem introduções na medida em que Arlequina narra os acontecimentos do filme de forma não-linear, o que é uma maneira divertida de se aproximar da audiência enquanto o filme situa os personagens em sua saga pessoal em busca de emancipação. Ainda que no início do longa elas estejam em pontos diferentes da narrativa, tudo começa a convergir para a reunião do improvável grupo de aliadas quando Cassandra, uma menina batedora de carteiras, rouba o diamante desejado por Roman Sionis (Ewan McGregor), o Máscara Negra. O diamante em questão tem um código que permitirá a Sionis o controle de toda a fortuna da família Bertinelli, antigos mafiosos que comandavam Gotham e foram assassinados de maneira brutal.
Em busca de recuperar o diamante perdido, Sionis coloca todos os bandidos de Gotham atrás de Cassandra, e é nesse momento que Arlequina vê a oportunidade perfeita para retirar o alvo que pintou em suas costas após assumir o rompimento com Coringa: ela terá passe livre e a proteção de Sioni caso entregue ao mafioso a menina Cassandra e o diamante Bertinelli. Mas Sioni não está muito interessado em ver Arlequina viva, então coloca a cabeça de Cassandra à prêmio, atiçando todos os bandidos da cidade em uma busca, colocando-os no caminho de Arlequina. Enquanto isso, Dinah Lance, que trabalha para Sionis, primeiro como cantora em sua boate e depois como motorista particular, tenta fazer o possível para proteger Cassandra passando informações dos planos de seu chefe para a Detetive Renee, e Helena se dirige, uma morte por vez, em direção a Victor Zsasz (Chris Messina), capanga de Sioni e um dos assassinos de sua família, os já citados Bertinelli.
Embora a trama de gato e rato não tenha realmente nada de novo, é impossível assistir Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa sem se divertir com toda a perseguição que tem início quando as peças da narrativa são colocadas no lugar. A busca pelo diamante leva, por consequência, a uma perseguição à jovem Cassandra e move a trama adiante, colocando todos os personagens em rota de colisão. Arlequina quer Cassandra e o diamante para recuperar sua liberdade; Dinah Lance, a Canário Negro, quer proteger Cassandra, e Renee busca provar os crimes de Sioni; enquanto isso, Helena Bertinelli, a Caçadora, deseja concluir sua vingança pelo assassinato de sua família. O filme funciona porque não pretende reinventar a roda: com uma trama relativamente simples, personagens carismáticos e uma montagem atual e divertida, Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa entretém com muito glitter, porrada e bomba.
Com seu elenco majoritariamente feminino e a trama de emancipação de Arlequina, o longa se desenvolve em uma sucessão de acontecimentos dinâmicos e divertidos, o que se relaciona diretamente com a Arlequina de Margot Robbie. A personagem, sem dúvidas, é a alma de Aves de Rapina, e é ao redor dela que tudo se desenvolve. As Aves de Rapina só se reúnem, de fato, nos momentos finais do longa, deixando um gancho bem-vindo para futuras produções. Todas as personagens femininas são excelentes a sua maneira: a vivacidade de Arlequina é, claro, contagiante, mas também é ótimo acompanhar o tempo de tela de todas as outras mulheres. A versão de Dinah Lance de Jurnee Smollett-Bell, é tão maravilhosa e cool que fica difícil prestar atenção em qualquer outra coisa quando ela está em cena. A Helena Bertinelli de Mary Elizabeth Winstead talvez seja a personagem com menos tempo de tela em Aves de Rapina, mas o pouco que vemos da Caçadora já é o suficiente para sairmos apaixonadas; a atriz consegue aliar de maneira perfeita o lado mortal da assassina Caçadora com a falta de jeito com as pessoas de Helena, criada por assassinos na Sicília, um match que Winstead carrega muito bem. A Renee Montoya de Rosie Perez é lésbica, latina e tem mais de cinquenta anos, uma minoria representada com muita competência pela atriz veterana.
São em pequenos detalhes como esses que Aves de Rapina ganha sua audiência. O filme, embora tenha recebido classificação indicativa para maiores de 16 anos no Brasil devido ao conteúdo — há violência extrema e gore, além da linguagem imprópria e uso de drogas — é uma produção divertida mesmo que a gente esteja, de fato, acompanhando as histórias de personagens desajustadas e que não pensam duas vezes antes de quebrar a perna de alguém com um taco de baseball. Aves de Rapina tem aquele ar de história em quadrinhos, onde simplesmente tudo pode acontecer, desde uma invasão à delegacia de polícia com granadas de fumaça cor-de-rosa e azul a balas que explodem em glitter, e isso traz um frescor novo para um gênero já saturado. Aqui não há o realismo brutal que vimos na Gotham City de Christopher Nolan em sua trilogia do Batman (que particularmente amo, mas não precisamos de mais super-heróis sombrios, por favor), mas sim uma cidade dinâmica e que parece verdadeiramente saída dos quadrinhos, onde as pessoas estão conectadas de alguma maneira, se cruzam por aí e correm o risco de trombar com uma perseguição policial ou uma hiena chamada Bruce em busca da sua dona.
Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa é um filme bem-humorado e isso funciona sem parecer forçado. O tempo para a comédia de Margot Robbie é impecável e a atriz é capaz de fazer Arlequina flutuar de um momento de introspecção para outro completamente aleatório e engraçado, o que se reflete, também, na maneira como a protagonista narra sua história — a falta de foco de Arlequina reverbera na linha do tempo que ela usa para contar sua trajetória, por isso avançamos e retrocedemos na trama algumas vezes (o que não é problema algum a menos que você seja um membro votante do Oscar com sérios problemas de atenção), o que deixa o filme ainda mais dinâmico. As animações que invadem a tela vez por outra também contribuem para ampliar a sensação de que estamos assistindo personagens de quadrinhos tomando vida, algo que senti quando assisti Homem-Aranha no Aranhaverso, filme vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2019.
Se por um lado temos personagens femininas incríveis, com estilos próprios e personalidades únicas, o mesmo não pode ser dito a respeito dos homens dessa narrativa (novos tempos, talvez?). Roman Sionis e Victor Zsasz, embora tenham prazer em arrancar a pele de suas vítimas e sejam realmente machistas e misóginos, não inspiram medo algum. Em uma das cenas, Sionis exige que uma das frequentadoras de seu bar suba na mesa e dance para ele enquanto outro homem arranca seu vestido, mas, fora a sensação de nojo com relação ao comportamento do vilão, ele nunca parece ser uma grande ameaça (detalhe: a moça em questão não aparece nua em nenhum momento e seu sofrimento jamais se transforma em male gaze). Sionis quer o diamante Bertinelli e fará o possível para tê-lo, enquanto Victor Zsasz se satisfaz por meio dos rompantes de raiva do chefe, um homem mimado que acha que ter tudo o que deseja é um direito intrínseco ao seu gênero. Mesmo com pouco material para trabalhar, Ewan McGregor entrega um Máscara Negra relativamente ok dentro da narrativa, apenas mais um homem com mania de grandeza, misógino e psicopata que vive do crime em Gotham (algo que não é muito difícil de encontrar por Gotham, ou por aí).
Com pouco mais de uma hora e quarenta de duração, Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa entrega uma trama coesa, personagens carismáticos e momentos espirituosos que fazem do filme um dos melhores da DC/Warner nos últimos tempos. As cenas de luta não são uma miríade de CGI, mas coreografias que passam verosimilhança: cada mulher tem um estilo de luta próprio, seja utilizando-se de marretas, tacos de baseball ou armas de fogo, e isso transparece em cada uma dessas cenas na maneira como as personagens se movem e reagem aos vilões ao redor (e ainda pedem um elástico emprestado para prender a cabeleireira durante a pancadaria). A câmera de Cathy Yan não sexualiza suas personagens em nenhum momento e mesmo que elas usem roupas justas, não há nenhuma posição ginecológica ou closes desnecessários em seios e traseiros enquanto estão lutando para sobreviver. Harley, Dinah, Helena e Renee podem ser sexys sem serem sexualizadas, e aí está a diferença entre a visão de um homem e a de uma mulher atrás das câmeras.
O conto de como Arlequina superou uma separação explodindo uma das fábricas da ACE Chemicals para enviar uma mensagem para o seu ex, se descobriu como sua própria pessoa, lutou contra centenas de bandidos e ainda encontrou amigas no processo, faz de Aves de Rapina um filme glorioso. Ele tem a força feminina que desejamos sem parecer um fanservice ou algo didático feito apenas para se adequar ao cinema pós #MeToo. As personagens se reúnem sem parecer algo imposto, e a parceria entre elas funciona verdadeiramente — tanto pelas personagens em si, que são interessantes por conta própria, quanto devido às suas intérpretes, que são muito talentosas. Margot Robbie parece genuinamente contente por retornar em seu papel como Harley Quinn, o que transparece em sua interpretação, e Jurnee Smollett-Bell, Mary Elizabeth Winstead, Rosie Perez e Ella Jay Basco foram escolhas mais do que certeiras para o restante do elenco.
O que o futuro reserva para Harley Quinn e as Aves de Rapina só o tempo irá dizer. No Brasil, o longa estreou no topo das bilheterias, arrecadando 10,7 milhões de reais e ultrapassando Bad Boys II. Nos Estados Unidos, o filme com classificação R-Rated — ou seja, pessoas com menos de dezessete anos só podem assistir Aves de Rapina caso estejam acompanhadas por um adulto durante a exibição — arrecadou 34 milhões de dólares, embora a previsão da Warner tenha sido de 50 milhões no primeiro final de semana de estreia. A mudança do nome do longa, feita essa semana pelos estúdios — de Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa para Arlequina: Aves de Rapina — soa como uma estratégia para aumentar a popularidade do longa e o apelo, visto que um nome mais curto é de mais fácil digestão pelo público. Fantabuloso ou não no título, o que fica é o fato de que Aves de Rapina é um filme divertido, com elenco majoritariamente feminino e uma protagonista bissexual, e que faz aquilo que se propõe: emancipar suas personagens enquanto nos diverte e encanta.