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Maria e João: O Conto das Bruxas

Na história registrada pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, João e Maria são duas crianças de uma família muito pobre, que acabam abandonadas pelos pais em uma floresta. Conscientes dos planos da família, os dois jogam migalhas de pão pelo caminho de modo que, mais tarde, pudessem encontrar a trilha de volta para casa. No entanto, ao tentar retornar, ambos percebem que as migalhas haviam sido comidas pelos pássaros da floresta. Perdidos e sem meios de encontrar seu caminho, as crianças acabam por descobrir uma casa feita de doces, onde vive uma gentil e solitária senhora que os convida a entrar. Todavia, a aparente gentileza logo dá lugar à maldade, e as crianças descobrem que aquela senhora é, na realidade, uma bruxa canibal, que se aproveitara da vulnerabilidade dos irmãos para atraí-los a uma armadilha, e que os alimenta não por bondade, mas para tornar suas carnes mais suculentas.

Diferente de muitos contos de fadas, a história de João e Maria não termina em tragédia, no entanto: usando de sua inteligência, as crianças traçam um plano para enganar a bruxa, que termina morta no mesmo forno em que pretendia assá-los. Os dois, então, retornam para casa, onde reencontram a família e presenteiam a todos com o dinheiro que encontraram no antigo cativeiro — o suficiente para que possam viver tranquilamente pelo resto de seus dias.

Tradicionalmente transmitido de forma oral, a versão de João e Maria imortalizada pelos irmãos Grimm foi adaptada para um público diferente — no caso, a classe média do século XIX —, em contraste com as classes mais baixas da Idade Média, entre os quais havia se originado. Em sua versão mais antiga, a história reflete sobre as dificuldades de subsistência dos camponeses do período medieval, quando o homicídio infantil era uma prática bastante comum. João e Maria são abandonados pelos pais porque não podem ser devidamente alimentados por eles (um tema recorrente nos contos de fadas) e, dentro desse contexto, deixá-los à própria sorte lhes parece uma opção razoável. Em tempos em que a maternidade não era sacralizada, não é uma surpresa que caiba justamente à mãe fazer a sugestão, refletindo racional e friamente sobre sua própria condição, enquanto ao pai cabe acatar a decisão, ainda que a contragosto, reconhecendo-a como a única saída para suas aflições. Mais tarde, com a morte da bruxa, muitas versões também apresentam a morte concomitante da mãe, reforçando a ligação entre duas mulheres que não apenas colocam os protagonistas deliberadamente em perigo, como também dividem receios quanto à própria sobrevivência. Somente quando a maternidade ganha contornos míticos é que a figura materna passa a ser substituída pela madrasta ou é deixada de fora do desenvolvimento do conflito, atenuando seu papel em vista da concepção moderna da mãe — uma mulher que, fossem quais fossem as circunstâncias, jamais seria capaz de ferir os próprios filhos, preferindo sacrificar-se por eles se necessário. Há, ainda, versões nas quais as crianças saem para dar um passeio e acabam se perdendo da família como consequência de sua própria desatenção, reforçando o teor didático da narrativa.

Maria e João

A história de João e Maria também dá conta do desenvolvimento de duas crianças que, embora em uma aventura breve, são obrigados a abrir mão da segurança familiar para só então adquirir independência. Se, por um lado, o conto revela questões como abandono, vulnerabilidade e mortalidade, é também verdade que sua narrativa evoca a separação entre pais e filhos, que eventualmente se afastam da sombra dos progenitores para crescer enquanto indivíduos. Mesmo o retorno ao lar não contradiz a tese: as experiências vividas na floresta são de fato transformadoras, e tanto João quanto Maria voltam para casa não como as crianças indefesas de outrora, mas como sobreviventes.

Atenção: este texto contém spoilers!

Em sua adaptação do clássico, Oz Perkins se debruça sobre o desenvolvimento das crianças em uma leitura que transfere maior peso à trajetória de Maria (Sophia Lillis) — ao contrário do conto, onde poderia ser facilmente descrita como uma menininha chorona; descrição que, no filme, serve perfeitamente ao irmão — e prioriza a intimidade e a construção de uma atmosfera sombria e de ameaça iminente muito mais do que a ação em si. O grande mal que habita a floresta é evidente desde o princípio, mas Maria e João: O Conto das Bruxas o desenvolve com cuidado, em um crescendo que se atém a detalhes, ilusões e dúvidas, que pairam sobre os protagonistas tanto quanto sobre a natureza da história que protagonizam, e que possibilitam explorar cenários e personagens em um ambiente de constante e paulatina tensão.

É depois de se candidatar a uma vaga como “governanta” na casa de um homem rico e ser assediada durante a entrevista (“você ainda é intacta?”, ele pergunta, e a menina não sabe o que responder, o que fazer), que Maria é expulsa de casa pela mãe viúva, junto ao irmão caçula, João (Samuel Leakey). Sem um emprego para a filha que assegurasse as necessidades básicas da família ou uma figura masculina que pudesse fazê-lo, a mãe ordena que os filhos busquem ajuda em um convento, mudando de atitude ao pressentir a hesitação de Maria em partir: ao ameaçar os filhos com a morte, a mãe não torna a escolha necessariamente mais fácil para a filha, mas a impulsiona em direção ao único caminho em que ela e o irmão podem ter alguma chance. O roteiro de Rob Hayes é certeiro ao não criar uma mulher essencialmente má, mas à beira da loucura — causada principalmente pela privação —, que não os expulsa de casa para que possa sobreviver, mas em muito consciente de que a morte é o único destino para ela própria. Quando diz aos filhos que “cavem belos túmulos”, inclusive um para ela, fica evidente que não lhe resta qualquer esperança, e que nem mesmo acredita que esta resta aos filhos, embora ainda tente garantir-lhes alguma espécie de futuro.

Sem quaisquer condições de permanência, os dois irmãos partem em direção à floresta, vestindo apenas as roupas do corpo, sem nada que lhes pertença de fato. Esse momento inicial é importante principalmente para estabelecer a dinâmica entre os dois, em que Maria reafirma a posição da protetora irmã mais velha, enquanto João, como seria natural a uma criança de sete ou oito anos, torna-se uma presença cada vez mais insuportável. A fome e o cansaço são companheiros constantes, mas João é muito mais suscetível — e menos compreensivo — diante de seus efeitos. É fácil enxergá-lo como um peso para Maria, mas a atitude quase sempre paciente e cheia de afeto da menina também revela que aquele é um arranjo bastante complexo e que, embora João não seja uma responsabilidade estritamente sua — porque, tanto quanto ela, João é antes uma responsabilidade de seus pais —, ela a toma para si e se permite, em partes, ser definida por esse relacionamento. Muito da trajetória pessoal de Maria diz respeito a contornar as ameaças que surgem em seu caminho e descobrir a si mesma no processo. É João, no entanto, a variável que a impele para a frente, e parte de suas tentativas de sobrevivência são, antes, uma forma de mantê-lo vivo e em relativa segurança.

Maria e João

As experiências de João podem ser facilmente resumidas como a narrativa de uma criança que pouco a pouco perde a inocência; uma consequência do amadurecimento, e de um amadurecimento particularmente precoce. É evidente que ele permanece vivo mais pela dedicação de Maria do que por sua existência irresponsável, mas eventualmente ele também percebe que coisas estranhas acontecem nas redondezas e passa a desconfiar das verdadeiras intenções da falsa benevolência de Holda (Alice Krige), a bruxa má. O que começa como a brincadeira de uma criança, que deseja ser brava e corajosa acima de tudo, também fornece um vislumbre do que pode ser um futuro para João, em um universo fantástico que insinua a existência de outros importantes personagens da literatura imortalizados pelos irmãos Grimm (a menção, ainda que breve, a lobos sedutores e maus é um indicativo bastante óbvio nesse sentido).

É sobre a trajetória de Maria, muito mais do que a de João, no entanto, que Perkins e Hayes lançam uma maior gama de nuances. Diferente de filmes como The Blackcoat’s Daughter e I Am the Pretty Thing That Lives in the House, nos quais também foi responsável pelo roteiro, Maria e João é o primeiro filme no qual Perkins se ocupa apenas da direção, trabalhando em cima do texto de uma terceira pessoa. É também seu primeiro projeto voltado para o público infantojuvenil, e o único a ser lançado amplamente nos cinemas. Mas o que poderia ser uma narrativa marcada por limitações criativas, comerciais e etárias consegue ser, na realidade, uma história que diz tanto sobre a passagem de uma mulher da adolescência para a vida adulta quanto seus antecessores dizem sobre mulheres ligeiramente mais velhas, embora ainda bastante jovens. Pouco a pouco, o filme desvela as habilidades sobrenaturais de Maria, permitindo que a descoberta de si mesma como bruxa ocorra ao mesmo tempo que sua descoberta como mulher — o que torna suas experiências na casa de Holda muito particulares e bastante diferentes daquelas vividas pelo irmão. Se é perceptível que ele corre mais perigo ali, à maneira do conto tradicional, Maria, de maneira oposta, é reconhecida como uma igual. Holda se aproveita de suas habilidades para treiná-la, compartilhando parte de seus conhecimentos, mas é longe do olhar sempre atento da bruxa que Maria verdadeiramente se desenvolve, descobrindo por conta própria o seu lugar naquele mundo.

Em tempo, são suas descobertas individuais que a levam a enxergar Holda como uma mulher bem menos afetuosa e bem intencionada do que parece em um primeiro momento, e não demora para que a casa, outrora acolhedora, com suas mesas fartas e luzes em tons quentes, também adquira um aspecto muito mais próximo ao febril e claustrofóbico. Parece absolutamente impossível fugir de lá, e eles nem sequer tentam, porque não poderiam ir muito longe de qualquer forma. O roteiro, no entanto, se apropria dessa rotina sombria como uma forma de construir as inquietações e angústias que se revelam entre eles, reafirmadas pelo posterior desaparecimento de João, que não deixa evidências se foi apenas um sonho ou se de fato aconteceu.

Maria e João

Maria e João se apoia na ideia, não exatamente nova, de que, para se tornar uma mulher auto-suficiente e poderosa, Maria precisa abrir mão daquilo que lhe é mais precioso — no caso, o irmão. Seria fácil enxergar sua jornada como uma narrativa sobre mulheres que não podem ter tudo (amor, poder, família) ou, ainda, como uma história de homens versus mulheres, em que a presença masculina necessariamente impede a aquisição de autonomia por parte da mulher. Ambas as abordagens possuem bases sólidas nas quais se sustentar, mas ainda são leituras simplistas sobre uma história que é mais complexa do que isso. Mesmo a trajetória de Holda se mostra mais complicada do que propõe o estereótipo da bruxa canibal do conto infantil, servindo também como um espelho à Maria. Ao construir um pano de fundo para a vilã — que, na verdade, não nasceu má ou se alimentando de crianças —, o filme parece propor um caminho inescapável para Maria apenas para, não muito tempo depois, revelar que sempre houvera uma escolha. Quando ingere o que resta de sua família, em partes para protegê-los do mal perpetuado pela menina do capuz cor-de-rosa (em uma referência mais próxima da maternidade medieval), Holda (em sua versão jovem, interpretada por Jessica De Gouw) escolhe um caminho, mas ele está longe de ser o único. Como o encontro entre duas gerações, ambas as mulheres crescem para se tornarem bruxas poderosas, mas as experiências de uma não necessariamente são as mesmas da outra. Maria, mais jovem, encontra possibilidades que não são factíveis para Holda, fazendo com que ela consiga fugir ao mesmo destino e se torne uma bruxa sem abrir mão do que — ou, no caso, de quem — a torna vulnerável.

Ao se libertar das garras da bruxa má, Maria liberta não apenas o irmão, mas todas as crianças capturadas por ela, cujas almas podem finalmente voltar para casa. Mas o retorno ao lar não é uma possibilidade para ela e nem mesmo para João, da mesma forma que a dinâmica de protetora/protegido já não existe mais entre eles. Crescer continua a ser um processo de constante ruptura e os dois entendem que precisam seguir seus caminhos individualmente para descobrir quem realmente são. O filme constrói o rompimento de maneira muito sensível, tornando fácil a tarefa de compreender os motivos que os levam à separação, mesmo que ela seja inevitavelmente dolorosa. Enquanto João segue em frente, Maria permanece na casa, assumindo o lugar outrora ocupado por Holda, embora não exatamente da mesma forma. Ainda assim, é devidamente conectada com a natureza e com seus poderes que ela enxerga a própria transformação, nos dedos que enegrecem à medida que se aproxima de seu verdadeiro eu (em uma alusão à dicotomia entre claro e escuro associada ao mito da bruxa e a escuridão como indicativo do mal que habita seu corpo). “Você ainda é intacta?”, pergunta o velho rico que a assedia no início do filme, a quem jamais é feita nova referência; o questionamento, no entanto, retorna juntamente com sua transformação, como se a mudança fosse, afinal, uma resposta em si mesma.

Maria e João: O Conto das Bruxas não é uma história de terror comum. É uma história mais sombria do que assustadora, muito mais sobre uma atmosfera de medo do que sobre sustos; mais estranha e incômoda do que sangrenta. Perkins bebe de fontes como Robert Eggers, Alejandro Jodorowsky e Luca Guadagnino, repensando junto com eles o que define o horror enquanto gênero, em um exercício de frequente subversão. No fim das contas, não são bruxas ou fantasmas ou florestas obscuras o que de mais assustador existe nesse mundo; é a escuridão que habita em cada um de nós.

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