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Em Pedaços: o amor que cura tudo e outros problemas do new adult

Rótulos são importantes no mercado editorial, afinal, escritores, agentes literários e editoras precisam saber o que estão escrevendo e vendendo, enquanto leitores precisam saber o que estão consumindo. Com o comércio de livros baseado nesses princípios, é esperado que, de tempos em tempos, aconteçam mudanças fundamentadas nas transformações de consumo, comportamento e preferências do público-alvo de cada gênero, além de serem pautadas temáticas efervescentes de determinadas épocas, o que acaba trazendo novos tipos de livros, com características específicas — ou a junção/mistura de uma série de fórmulas — à tona.

Nessa onda em que rotular, por si só, ajuda a definir gostos e desenvolver histórias que atinjam determinados públicos estratégicos, surge a categoria literária new adult (NA), criada para atender as necessidades de um público que estava às margens, sem se encaixar exatamente na audiência dos livros young adult (YA), e também não maduro o suficiente para livros propriamente adultos. Quando falamos em new adult, podemos esperar livros que tragam personagens de 14 a 25 anos com temas centrados em autodescoberta, angústias, como balancear faculdade, trabalho, amor e outros dilemas típicos do período de transição que precede a idade adulta.

Considerado por muitos, erroneamente, como um gênero, logo após a sua primeira aparição em 2009, nos Estados Unidos, quando o site Publisher’s Weekly revelou que a editora norte-americana St. Martin’s Press estava trabalhando em um conteúdo que viria a ser conhecido como new adult, a denominação nada mais é do que um recorte etário que pode ser aplicado dentro de qualquer gênero literário, sejam livros de cultura pop ou até os chamados cults. A popularização da categoria, porém, só ocorreu em meados de 2012, quando uma enxurrada de livros começaram a invadir as prateleiras das livrarias, movimento que para muitos atribuiu aos NAs o sinônimo de romance hot, devido a presença quase que obrigatória de cenas de sexo, por vezes gráficas, no enredo das histórias.

Como tudo que alcança boas vendas e sucesso, não demorou para que a fórmula dos livros passasse a ser considerada maçante e desencadear uma saturação tanto no mercado quanto no público em geral. Foi mais ou menos nessa mesma época que um padrão começou a ser notado, com as capas chamativas e apelativas, semelhantes a dos romances de bancas, com homens seminus, casais se beijando e títulos que sempre transmitiam a ideia de personagens que precisavam ser consertados ou que buscavam no amor a própria salvação. Com isso, ficou claro que o recorte etário não estava imune a uma premissa básica: boas histórias e medianas são uma constante, mas também integram essa balança as ruins.

No caso dos new adult, entretanto, a fórmula batida, tramas pouco originais e o lançamento de séries após séries cuja quantidade era preservada em detrimento da qualidade, vieram acompanhadas de consequências piores do que críticas negativas e, por vezes, preconceituosas. A reprodução de estereótipos e tropos nocivos se tornaram uma regra e, pior, sem qualquer sinal de subversão. Com a oportunidade de trazer para o debate temas pertinentes e necessários no momento atual, como transtornos mentais, autoestima, empatia entre mulheres e relacionamentos saudáveis, poucos foram os livros que fizeram tentativas de incluí-los em suas narrativas, e menos ainda foram bem-sucedidos; a grossa maioria continua a perpetuar discursos tóxicos enraizados na cultura machista e patriarcal na qual estamos inseridos.

Belo Desastre, escrito pela norte-americana Jamie Mcguire, lançado em 2011 nos Estados Unidos e traduzido para o português pela Editora Verus em 2012, foi um dos precursores a impulsionar a categoria literária em todo o mundo, principalmente no Brasil, que, apesar de apresentar uma escrita instigante e uma história que prende o leitor, encabeça a lista de NAs extremamente problemáticos, com um repertório extenso de comportamentos questionáveis, que vão desde machismo, romantização de abuso emocional e sexual, até manipulação, controle, ciúme extremo e mais itens que endossam o conceito de relacionamento abusivo. Além de vangloriar a atitude macho alfa de Travis — interesse amoroso da protagonista, Abby — o livro em nenhum momento gera um debate sobre a necessidade pouco saudável do personagem de fugir dos próprios problemas com sexo, enquanto justifica seus deslizes como consequência de problemas familiares e emocionais do passado. Além disso, a história atribui a Abby a tarefa de consertar e ensinar Travis a levar uma vida regada a muito amor e carinho — uma alternativa, para todos os efeitos, um tanto quanto equivocada.

Tramas como essa parecem ser um denominador comum nessas histórias, já que, fora a violência física e simbólica performada contra mulheres das mais diversas maneiras, todos os personagens masculinos centrais possuem um passado traumático, que por fim é utilizado para minimizar e explicar todo o abuso destilado no presente. Nesse sentido, O Lado Feio do Amor, de uma das escritoras consagrada do gênero, Colleen Hoover, escrito em 2015, e com casa na Galera Record, cumpre bem o papel de sensibilizar o leitor ao apresentar um personagem, neste caso Miles, com uma história de partir o coração, que fechado para o mundo, abusa emocionalmente do seu par romântico, Tate, no decorrer de praticamente todo o livro. Tudo, claro, sem expor ou apontar o quão errado e nocivo o comportamento é.

Vale lembrar também que se os livros não tratam bem suas personagens femininas, para os autores a existência da comunidade LGBTQ+ parece se limitar, apenas, ao melhor amigo gay da mocinha; Um Caso Perdido, também de Colleen Hoover, é um bom exemplo deste descaso.

Apesar disso, nem só de péssimos exemplos vive a categoria. Felizmente, nem todos os autores desperdiçam a oportunidade de subverter alguns temas espinhosos, especialmente por dialogar com uma faixa etária que precisa ter acesso e se fazer presente em certas discussões. É o caso da escritora Tammara Webber em seu livro Easy, lançado em 2013 no Brasil pela Verus, onde a personagem principal, Jacqueline, sofre duas tentativas de estupro, e apesar de seu par, Lucas, a salvar, perpetuando uma cultura de mulheres que precisam de homens para sobreviver no mundo, a evolução da trama desmantela a premissa ao mostrar uma protagonista decidida a lidar com o caso de cabeça erguida e aprendendo a se defender em aulas de defesa pessoal. Lucas, nesse caso, cria uma rede de suporte para a namorada ao ajudar na percepção de que ela é forte e capaz, concedendo espaço e poder de decisão para que ela decida como lidar com o acontecimento.

Outro bom exemplo vem da estreante Sally Thorne. Em seu primeiro livro, O Jogo do Amor/”Ódio”!, lançado pela Universo dos Livros, em 2017, a autora acerta em diversos pontos, mesmo utilizando um enredo que já é um velho conhecido do público leitor. Com o tradicional clichê enemies to lovers (inimigos a amantes, em tradução livre), ela traz ar fresco para o recorte etário com a história de Lucy e Josh, e a possibilidade de escrever uma história livre de comportamentos problemáticos.

Mas, afinal, o amor não é a chave?

O amor, a paixão e o romance, claro, são personagens com presenças garantidas nos new adult pois, apesar de tratar sobre o amadurecimento pessoal e, às vezes, profissional de seus protagonistas, a trama vem sempre acompanhada de interesses românticos. Da mesma forma que as tropes citadas anteriormente, a presença do amor, na maioria dos casos, não parece ser benéfica, até porque comportamentos como possessividade, ciúme descontrolado, culpabilização e manipulação emocional, são mascarados como cuidado, atenção e amor entre o casal, estabelecendo um precedente para o leitor, muitas vezes meninas adolescentes, de que, ao agarrar o braço da mocinha e impedi-la de ir embora, por exemplo, ou proibi-la de conversar com determinadas pessoas são atos de alguém que preza pelo outro e só quer o melhor para a relação.

Colocar, também, o amor pelo outro, no contexto de uma relação romântica, como um bote salva-vidas quando se está magoado, destruído ou ferido, são situações que só tem a gerar consequências negativas. Ninguém deveria ser responsável por curar o outro, ter tamanha expectativa depositada em si, e, além do mais, não é a melhor solução para a pessoa que o faz, com riscos de criar uma codependência afetiva difícil de ser superada. Entretanto, é este o caminho que o livro Em Pedaços, primeiro da duologia Recomeços, da autora Lauren Layne e lançado em 2018 pela Editora Paralela, integrante do grupo Companhia das Letras, decide seguir. Com uma proposta de recontagem moderna do clássico A Bela e a Fera, logo na sinopse a ideia de que o amor tem um poder curativo milagroso fica clara.

“Uma garota com segredos corrosivos. Um ex-soldado com cicatrizes externas e internas. Um amor que pode salvar ambos… ou destruí-los de vez.”

O amor é sim um fator importante no processo de cura de uma pessoa, que sem suporte e apoio acaba à deriva, mas tornar este o elemento principal para fazer todos os problemas emocionais e psicológicos sumirem, apenas porque se encontrou alguém para amar, é irreal e estabelece um padrão frustrante, difícil de se concretizar e perigoso para aqueles que compram a ideia. Ainda assim, Olivia Middleton e Paul Langdon decidem embarcar nesse trem. Ela é uma universitária no último ano de faculdade que decide largar seu curso e estragar a carreira promissora como chefe do patrimônio da família para se desconectar de seu círculo social e pagar pelo maior erro de sua vida: ter traído o namorado perfeito. Como forma de punição contra si mesma, e honrando o sentimento de auto-aversão que sente, ela aceita a proposta de cuidar de um veterano da guerra do Afeganistão, que vive isolado em uma pequena cidade do Maine, nos Estados Unidos, e retornou da guerra com muito mais do que sequelas emocionais. A leitura é rápida, facilmente vencida em algumas horas de dedicação ao livro — a trama tem a seu favor a escrita leve, simples e concisa da autora, que cria personagens consistentes e palatáveis, com crescimento e evolução de caráter à medida que vão se relacionando entre si e revelando as áreas sombrias de suas personalidades.

A história serve ao seu propósito de distrair o leitor, mas é impossível não se deixar abater pela gravidade dos temas que surgem ao longo do livro e exemplificam muito bem tropes tóxicas utilizadas sem cuidado ou intenção de subversão pelos precursores da categoria literária. No primeiro encontro entre Olivia e Paul, ele, irritado e amargurado por seu pai ter contratado mais uma “babá”, a beija sem consentimento para assustá-la, em uma tentativa de fazê-la desistir do emprego, comportamento que se repete, sem a autorização de Olivia, pelo menos mais uma vez. Daí para a frente as coisas não melhoram muito, uma vez que Paul tem a desculpa perfeita para agir com agressividade e grosseria, devido ao seu histórico traumatizante no Afeganistão — o que, com um enredo que coloca “panos quentes” em sua atitude, cada vez parece mais agradável aos olhos da mocinha.

Nesse quesito, Olivia não se deixa abater e mostra que não será desse modo que irá ser conquistada. Assim, a autora obtém algum sucesso ao criar uma personagem de fibra e decidida, com mais senso na cabeça do que as tradicionais personagens sonsas e ingênuas que permeiam a categoria literária (também um estereótipo depreciativo e carregado de machismo). Porém, tudo é jogado pela janela nas últimas páginas do livro, quando Olivia finalmente está superando a atração e paixão por Paul, após o tradicional momento de rompimento, motivado pela percepção dos dois de que alguém precisa ceder (neste caso, vale a nota, não de maneira saudável ou baseada no diálogo) na relação, mas ninguém está disposto a tal. De volta a Nova York, ela tem um apartamento próprio, um emprego e uma vida que pode chamar de sua, não mais a sombra do sucesso de seus pais; com o tempo ela poderia ser feliz e ter se livrado de um relacionamento nada saudável, mas Paul decide que não deixará sua paixão escapar e, por isso, com o argumento de que está totalmente mudado, ele se muda para o apartamento ao lado do dela para que, caso Olivia não o aceite de volta, ela tenha que encontrá-lo todos os dias, até ele persuadi-la a reatar a relação.

“— Não vou te culpar se desistir. Mas não vou a lugar nenhum. Vou ficar aqui, e vai ter que ver minha cara feia todos os dias.”

Em Pedaços concentra, mesmo que em menor escala, comportamentos nocivos, extremamente romantizados, inseridos com tamanha naturalidade em nossa sociedade e, por reflexo em produtos midiáticos, que é difícil enxergar que estão lá e são indubitavelmente prejudiciais. Perpetuados com tamanho afinco por uma sociedade que tem ao seu favor um sistema patriarcal, regida pelo homem, é preciso começar a usar mão das ferramentas poderosas que temos ao alcance se quisermos mudar o jogo. E é preciso mudar, afinal; as consequências de tais reproduções não são apenas histórias mal escritas ou planejadas, mas a limitação da vida e/ou morte de mulheres e outras minorias — negros e LGBTs, por exemplo — porque, como cansamos de apontar e constatar, o machismo, juntamente com outros os tipos de preconceito, mata — e muito.

Desromantizar e subverter tropes tóxicas é preciso e um ato necessário, além de uma obrigação e responsabilidade de qualquer produtor de conteúdo ao usar mão de tais recursos em suas produções, especialmente quando se volta para um público em formação, de afirmação de sua intelectualidade, posicionamento ideológico e ideais.

Em Pedaços

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui

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