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“É para rir ou chorar?”: Fleabag é uma obra sobre solidão, mas ninguém está falando sobre isso

Por muitos anos, compartilhei meus pensamentos e decisões erradas de maneiras pouco convencionais. Falando sozinha, escrevendo para ninguém, passando noites em claro ou começando projetos que até hoje estão inacabados. Em Fleabag, Phoebe Waller-Bridge dá vida à personagem que empresta a identificação ao título da obra. Uma mulher sexualmente compulsiva, que nunca conseguiu lidar com suas perdas e compensa seus vazios com um humor e comportamentos destrutivos muitos similares ao nosso cotidiano. Sim, ao meu e ao seu. Como ter uma noite de porre, voltar com aquele ex que você não sente nada mas é bom para o ego, ou investir em alguém que você sabe que jamais irá sentir algo romântico por você. Quem nunca?

Atenção: este texto contém spoilers!

Em 2013, Waller-Bridge lançou a peça que inspiraria a série Fleabag, um espetáculo que imperou durante seis anos com uma sequência intermitente em diversos teatros prestigiados na Europa. O monólogo foi adaptado, através de produção da Amazon, para o seriado homônimo. Inicialmente, a trama conta a história de uma mulher inglesa e suas batalhas diárias a respeito da autoaceitação, problemas financeiros, amparos sexuais, relacionamentos com a própria família e suas questões com o luto que vive por conta de sua mãe, falecida por conta de uma câncer de mama, e sua melhor amiga e sócia da cafeteria que é dona e está à beira da falência.

A série, dividida em duas temporadas, com seis episódios cada, aposta na revisitação de alguns recursos já usados pelo entretenimento, como a não existência do nome de alguns personagens. O pai, chamado apenas de “Dad” (Bill Paterson), a madrasta, interpretada pela irreverente Olivia Colman, ganha menção como “Godmother” e a própria protagonista, que em nenhum momento tem seu nome mencionado nem por si mesma ou pelos outras pessoas; “Fleabag”, em tradução livre, significa “bagaceira”, “saco de pulgas”, ou “na lama”.

Fleabag
Por diversas vezes, Fleabag se vende como uma série sobre uma mulher que compensa suas frustrações e inseguranças com sexo e flerte com homens estranhos cujos quais ela pouco tem interesse. Outras, ela se apresenta como um novo jeito de fazer comédia. Mas Fleabag vai muito além: a obra é o puro suco sobre o processo de solidão e desamparo, e esse sentimento é deixado quase que em doses homeopáticas através de diálogos entre a protagonista ou as metáforas narrativas.

O outro lado

Um dos momentos mais determinantes, foi quando Fleabag dá de presente uma porquinha-da-índia chamada Hilary para a sua melhor amiga, Boo (Jenny Rainsford). Mais tarde, a porquinha passaria a representar o coração da protagonista, um aceno para seu apego ao luto e seu complexo de abandono. A conexão das duas amigas era tão forte, que após a perda da mãe, Fleabag pergunta onde depositar todo o amor que tinha pela progenitora agora que ela se foi, quando a melhor amiga responde: “Eu aceito.”

A presença do animal na série e a metáfora que ele apresenta são cruciais para o decorrer da narrativa. Porquinhos-da-Índia são, no geral, animais adoráveis e companheiros, gostam de estar juntos uns com os outros e não são difíceis de cuidar, mas são seres dependentes emocionalmente entre si, e precisam de uma companhia. Na Suíça, por exemplo, tornou-se ilegal adotar apenas um. No caso da série, a porquinha Hilary, além de ser parte da conexão que Fleabag tem com Boo, também inspirou o tema da cafeteria que ambas abriram.

Boo teve uma morte considerada um “suicídio acidental” na série. Ela reaparece em alguns flashbacks durante a obra, sobretudo nos momentos em que a protagonista reencontra pessoas em comum com a melhor amiga ou objetos que lembram momentos que passaram juntas. Com a morte de Boo, Hilary passa a representar o luto ainda incessante de Flea e ainda vai além — traz a ideia de que tudo o que a rodeia e que, por sinal, está se deteriorando, é parte de um processo emocional que está longe de ser curado, seja pela culpa ou pelo desamparo. E no meio de todo esse mix de emoções, a personagem usa ainda dispositivos para não se sentir tão sozinha e deixa claros acenos para nós, espectadores.

Fleabag

A quarta parede

Apesar da quebra da quarta parede não ser mais algo tão novo no entretenimento, o recurso é usado de maneiras diferentes para cada peça. Em House Of Cards (2013), ele é usado para evocar a ideia de cumplicidade com o protagonista anti-herói, uma maneira de estar por dentro dos esquemas — legais e ilegais — que Frank Underwood se envolvia. Com The Office (2005), a quebra da quarta parede é usada pela série para se apropriar do formato de pseudodocumentário, além da comédia por trás do recurso, que nos aproxima de Michael, Jim, Pam, Dwight e o restante dos personagens através das suas “olhadelas” para a câmera.

Mas qual é a inovação de Fleabag? Na série britânica, o recurso também é usado pela comédia e cumplicidade, mas sobretudo por conta da solidão da protagonista. Nós passamos a fazer parte do processo de autoconhecimento dela consigo mesma. Somos sua segurança durante as decisões ruins, seu alívio cômico nos gatilhos do luto, do abandono e do amor. Somos um espaço para o refúgio, para o segredo e, até mesmo, para o pecado. Não há segredos entre nós. Somos duas mulheres que se entendem em suas estranhezas, desconfortos sociais, comportamentos destrutivos e decisões impulsivas para driblar a solidão. Esse espaço de refúgio passa despercebido por todos — e até por isso e para isso que esse espaço é pavimentado — até a chegada do Padre.

A segunda temporada de Fleabag entrega, logo de cara, a ideia de que a personagem de Phoebe conquistou seus amadurecimento pessoal e profissional. A cafeteria se recuperou, ela não transa casualmente há alguns meses e está feliz consigo mesma. O que faltava para sua redenção, era mostrar maior vulnerabilidade para o amor romântico, e é no Padre que ela encontra esse despertar.

Andrew Scott vive a figura sacerdotal e sua entrada na narrativa se dá através do casamento do pai de Fleabag com sua madrasta, ocasião em que ele irá oficializar o matrimônio. Apesar da alcunha divina, o personagem não é tão comum ou previsível. Ele fala palavrões, possui um charme jovial e toma whisky. Com ele, Fleabag questiona o destino, propósitos da vida, Deus e, acima de tudo, amor. Um amor como nunca se permitiu encontrar ou viver.

Fleabag
O Padre nos descobre em uma das cenas mais divertidas da série quando, fazendo carinho na porquinha Hilary em seu colo, ele pergunta para onde ela vai quando “some” no meio da conversa, sendo ele o único a notar as escapadas que a protagonista dá para o outro lado. O lado em que nos encontramos com ela.

Vai passar

A última sequência de Fleabag sintetiza tudo o que a obra propôs desde o seu início. Waller-Bridge escreve uma cena que, de todas as maneiras possíveis, descreve a vida como ela é.

Sentado em um ponto de ônibus, Fleabag fala sobre seu amor pelo Padre, e ele responde para compor o diálogo mais icônico da série: “Vai passar”. Quando ele vai embora, finalmente diz que a ama de volta e nós ficamos com nossa companheira desde o início da trajetória.  Alabama Shakes começa a tocar, a gente quer confortá-la, dar uma carona para casa, dizer que ela merece ser feliz de novo. Ela nos encara por uma última vez, sorri como alguém que entende que nossa jornada acabou, e que está tudo bem. Nossa história também termina ali. Vai passar.

No meio de todos os ganchos que o roteiro de Phoebe proporciona e sua irreverência como atriz, roteirista e criadora, Fleabag também aparece como um reconforto para quem está sozinho do lado de cá. Como um retrato da vida com todos os seus absurdos, impulsos e escombros, o trabalho ainda entrega um despertar sensível de que, assim como todos os ciclos, os ruins também têm seu fim — a solidão encontra seus espaços e nós nos reajustamos em meio ao conjunto de traumas do jeito que dá, mesmo que isso signifique nos destruir às vezes.

9 comentários

  1. ótima análise! eu sinto que muitas vezes a cena final é “frameada” na internet como sendo um momento unicamente triste e melancólico por conta da fleabag e do padre não ficarem juntos; não que o momento não seja essas coisas, mas tanto a música como a própria cena final mostram que ela agora está num caminho bom e que isso é o mais importante.

    apesar de ser mais leve, outra série que aborda essas questões é high fidelity!

    1. Obrigada, Kamon! Acredito também que a cena final seja um fechamento perfeito para a trajetória até aquele momento. O aceno final da Fleabag para a câmara encerra nossa trajetória com um “quê” de que está tudo bem e que ela quer continuar sozinha. Diz muito também sobre nosso processo de desapego com a obra e com a personagem que tanto nos identificamos.

      Não conheço High Fidelity, mas obrigada pela sugestão! Vou procurar sobre. Abraços!

    1. Oi, Lolly! Já pensei muito nisso, mas por sentir falta da companhia de fleabag, não pela história em si, porque acredito que ela teve o fechamento perfeito!

  2. Texto simplesmente maravilhoso, eu queria deixar um comentário gigantesco sobre o quanto sua analise foi perfeita, mas como não quero cansar ninguém com leitura, vou resumir tudo que eu penso em:
    UAAAAAAAAAAAUUU!!!

  3. Terminei Fleabag hj, e no misto de “que triste” e “que lindo”, vim para o Google ver o que falavam sobre a série.
    Caí aqui no site e nessa análise totalmente assertiva e bem escrita.
    Não precisamos de outra temporada.
    Os desfechos foram feitos e de forma linda!
    Ela está em paz, com o coração triste, mas em paz. Vai passar!

    Obrigada pelo texto Brenda!

  4. Eu to sem reação pro final da série e a sua análise me confortou, de certa forma, começo a tentar entender que está tudo bem e vai passar! Obrigada pela escrita e pelo alento, sucesso para você.

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