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Nossa Humanidade em Floresta é o Nome do Mundo, de Ursula Le Guin

Na obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo, o ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas Ailton Krenak aponta que a origem do desastre socioambiental de nossa era está na ideia de que a humanidade está desassociada da natureza, que somos “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”. Esse pensamento moldou nossas ações durante quase toda a nossa existência, influenciadas também pelo não reconhecimento da diversidade e da ideia de igualdade entre os seres.

O resultado disso é um embate de séculos. De um lado, agentes da “iluminação”, cujo empreendimento visa limpar o mundo da selvageria, da sujeira e da desordem; de outro, guardiões da terra e, por consequência, da sua própria espécie. Entre eles, violência e devastação. Esse embate, muito presente em nossa História, é o centro de Floresta é o Nome do Mundo, de Ursula Le Guin.

Escritora norte-americana, as obras de Le Guin variam de histórias infantis a ficção científica, ficção especulativa, fantasia e teoria. Ela escreveu em prosa e poesia e produziu roteiros, mais de vinte romances, sete livros de poesia e uma série de ensaios. Algumas de suas obras mais conhecidas são A Mão Esquerda da Escuridão (1969), Floresta é o Nome do Mundo (1972, pelo qual a autora venceu o Hugo Award), e Os Despossuídos (1974). Esses trabalhos abordam questões que estavam amadurecendo na época em que foram publicadas ao refletirem sobre questões de gênero, raça, classe, o mundo natural e o impacto dos humanos nele.

Floresta é o Nome do Mundo aborda um momento distópico no futuro, quando os humanos causaram uma perda massiva de biodiversidade na Terra e o esgotamento de muitos de seus recursos naturais, especialmente a madeira. A saída encontrada para a solução do problema foi a exploração dos recursos de outros planetas. Em Athshe, os terráqueos encontram uma densa floresta, madeira em abundância e também os pacíficos habitantes do planeta, os Athsheanos.

O narrador onisciente da obra faz uma focalização interna nas personagens principais, de modo que o leitor tem acesso a diferentes perspectivas sobre os acontecimentos da narrativa: Capitão Davidson, terráqueo que representa a dominação branca, masculina e capitalista; Dr. Lyubov, antropólogo responsável por observar e analisar os nativos, servindo de ponte entre eles e os dominadores; Selver, um dos nativos escravizados e que se torna líder da resistência contra os invasores.

No decorrer dos oito capítulos que dividem Floresta é o Nome do Mundo, o leitor observa em profundidade e cores as visões de mundo dos protagonistas. Davidson descreve os nativos — também chamados de creechies, apelido pejorativo dado pelos colonizadores — como preguiçosos, lerdos e desleais e se vê  como um “domesticador de mundos”, cujo objetivo é “por fim à escuridão e transformar o emaranhado de árvores em tábuas bem serradas” (p. 12). Já Lyubov não percebe os nativos como seres inferiores, sendo o único entre os terráqueos a se dispor a aprender o idioma dos Athsheanos. Mas, apesar de tentar se manter objetivo e analítico, Lyubov não consegue evitar o próprio preconceito. Por meio dos olhos de Selver, somos apresentados à maneira como os Athsheanos se relacionam com seu planeta. Ao invés de separar a natureza e qualquer ideia de “Mundo”, Selver vê na destruição das árvores a eliminação do próprio mundo.

Capa da edição brasileira de Floresta é o nome do mundo

No período de feitura e publicação do livro, o mundo, ainda sob o assombroso rescaldo da Guerra da Indochina,  testemunhava a violência brutal e sistemática que ocorria no Vietnã, com massacre de civis e uso de armas químicas, numa clara violação das leis do Direito Humanitário Internacional e da Convenção de Genebra, que estipulam direitos e deveres em tempos de guerra. Le Guin conecta o genocídio de diversas civilizações na “era do descobrimento” à devastação contínua das guerras contemporâneas da América na Ásia, ostensivamente para impedir a propagação do comunismo. Semelhante aos vietnamitas, os Athsheanos se tornam vítimas de uma empreitada que visa, além de benefícios econômicos, eliminar “escuridão, a selvageria e a ignorância primitivas” (p.9).

A narrativa de Le Guin é um conto sobre colonização planetária, esgotamento de recursos e escravidão, em que a população racista de uma Terra desmatada — que julga os nativos pela sua aparência e costumes — conquista outro planeta rico em biodiversidade silvestre e habitado por um povo avesso a violência. Embora curto, a obra não é leve, ressoando a ocupação impositiva de territórios como os da África e da América do Sul e focando em questões debatidas ainda hoje, e que parecem não ter avançado muito desde a sua publicação.

Vivemos em uma sociedade dividida entre aqueles que acreditam apenas em obter os lucros custe que custar — seja a vida e o legado de povos originários, seja a preservação na natureza, fundamental para a permanência das espécies, incluindo a nossa — e aqueles que creem que seres humanos e recursos naturais não podem ser reduzidos a meras mercadorias. Estes últimos têm ganhado mais voz no debate nos últimos anos, mas será que ainda é possível reverter os danos? Em Floresta é o Nome do Mundo fica claro a impossibilidade de separar as guerras travadas em nome da ideologia do colonialismo da destruição causada ao meio ambiente. Na compreensão dos Athsheans, o mundo é a floresta, ambos têm o mesmo significado, não sendo palavras separadas em sua língua. Destruir a floresta é destruir o mundo.

A violência retratada na obra é descrita com a crueza necessária para caracterizar a brutalidade do colonialismo e da devastação ambiental. E as terríveis consequências dessa brutalidade  é o que faz com que muitos terminem a leitura com um gosto amargo na boca devido ao caráter pessimista de Floresta é o Nome do Mundo. Para sobreviver, os Athsheanos precisam ir contra sua própria essência. A resposta é  contundente e necessária, porém, para eles, a resistência tem um custo alto.


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