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Linda Linda Linda e o sentido aglutinador da adolescência

Quando somos adolescentes, vivemos um universo mental cheio de aparentes certezas e eternidades. Ironicamente, na companhia de todas as nossas supostas convicções, experimentamos um regime de ambiguidades, o qual se alimenta do choque entre as emoções e os desejos inquietos. Em um trecho de seu conto “As Relações Humanas”, Natalia Ginzburg ambienta esse estado conflituoso que a adolescência desperta. Seu texto discorre sobre a vergonha de expor a si mesmo em meio à vontade de ser reconhecido pelos pares, as tentativas de encontrar um “outro” similar que esteja aberto a nos amar e as crises existenciais em relação ao próprio “eu” e a realidade que se apresenta à nossa volta.

A competência da escritora italiana em captar o caráter universal da experiência juvenil, em muito, se assemelha à do cineasta japonês Nobuhiro Yamashita em seu filme Linda Linda Linda (2005). Ambos conseguem comunicar as perspectivas da juventude com a profundidade e a atenção que sua natureza fértil e extraordinária possui e exige. Num elo primário com esses sentidos, a obra de Nobuhiro abre exatamente com as sentenças que nos despertam para essa realidade de sentidos dúbios e temporários:

“Não deixe ninguém dizer que quando crescermos, deixaremos de ser crianças. Quando nós crescermos, não deixaremos de ser crianças. Onde está o nosso verdadeiro eu? Nosso verdadeiro eu está aqui? Nós temos pouco tempo para sermos nós de verdade…”

Antes mesmo do título ser apresentado, essa primeira fala — e a cena que a segue — capta o tom que domina a narrativa inteira: lânguido e sereno. Yamashita escolhe um olhar distante cujo valor mora na maneira como seu trabalho de câmera e seus quadros evitam extravagâncias distrativas dos seus focos: a energia do punk rock do The Blue Hearts e a relação entre as quatro jovens secundaristas que performam suas vigorosas canções.

Linda Linda Linda

Diante de uma simplicidade não só de sua forma e estética, mas também de sua história, a obra se sustenta sobre os contornos intensos e cansativos dos ensaios musicais conduzidos por Kei (Yû Kashii) na guitarra, Kyoko (Aki Maeda) na bateria, Nozomi (Shiori Sekine) no baixo e Son (Bae Doona) com a voz. O espectador se depara com nada mais do que uma hora e cinquenta minutos de construção singela das personagens e de sua jornada até a apresentação no festival cultural do colégio. Isto é, sem grandes esquemas dramáticos, a trama se desenrola sobre um fluxo sóbrio e orgânico que quer registrar o máximo da experiência cotidiana e das vidas internas de Kei, Kyoko, Nozomi e Son. Na verdade, não só deseja e realiza essas expedições, mas também honra o que se propõe fixar em cena, tratando o universo delas sem condescendência ou maneirismos exagerados, atitudes que em tantas ocasiões reduzem o cosmos adolescente ao ridículo.

A faceta rica e refrescante de Linda Linda Linda, pelo contrário, se ancora nessa competência de utilizar uma premissa tão trivial para explorar o lirismo que a relação entre as jovens adolescentes oferece. A beleza da obra reside no carinho e na autenticidade visíveis na amizade cultivada entre as meninas, fator que dirige a narrativa por completo. Uma das cenas mais emocionantes é justamente a que Son, de frente a um anfiteatro vazio, apresenta suas amigas para uma plateia imaginária. Kyoko é a baterista fofa que perde os ensaios; Nozomi é a baixista tímida e querida que faz uma comida um pouco salgada demais; e Kei é a guitarrista de pavio curto, um pouco assustadora quando brava, mas doce apesar de tudo. No momento de se identificar, meiga e inspirada antes, Son não consegue dizer nada. De frente com sua timidez e uma liberdade linguística — Son é uma estudante intercambista vinda da Coreia com pouco domínio do japonês — fogem as palavras para falar de si própria, como se mais importante que sua individualidade existisse seu grupo, que a representa ao acolher seu verdadeiro eu.

O filme acerta ao nos lembrar que qualquer experiência essencialmente humana é coletiva. Ainda mais as que nos acometem nos tempos de juventude. A técnica, a prática, o cansaço e o aperfeiçoamento das meninas só fazem sentido se compartilhados. Em nenhum momento os esforços precisaram fazer parte de um grande esquema maior, o objetivo sempre foi um pretexto para algo que mora no meio do caminho, e é divertido, lúdico, desbravador e provocativo: descobrir novas paixões, amizades, novos talentos e caminhos. E desbravar todas essas pequenas e primárias porções da vida alimenta o espírito juvenil que vive pelas fronteiras, as divisas que tornam as noites mal dormidas e os treinos escondidos até altas horas da madrugada tão marcantes e integrais quanto o show final.

Linda Linda Linda

Na verdade, ao entregar parte dos holofotes às canções do grupo punk The Blue Hearts, Yamashita consegue comunicar essa sua mensagem para além dos artifícios do audiovisual. Um dos versos mais repetidos na extensão da trama é o da música homônima à obra, o qual evoca os encantos que passam despercebidos e são, assim, privados de serem vistos e lembrados: “Como um rato, eu quero ser bonita. Pois existem belezas que não são capazes de serem fotografadas”. É na subversão desse enunciado que Linda Linda Linda se sujeita a todos os recursos disponíveis a fim de transpor à tela exatamente as joias difíceis ou impossíveis de serem eternizadas.

Em sua sequência final, após uma chuva obrigar todos os estudantes a se abrigarem no ginásio onde acontece o festival musical, e as meninas dormirem no estúdio e perderem a hora, finalmente chega o momento esperado da apresentação. Trocando olhares orgulhosos, Son, Kyoko, Kei e Nozomi tomam vigorosamente a atenção de uma plateia até então distraída e tocam a plenos pulmões os versos que marcaram sua gênese e os que encerram seu percurso.

Vamos cantar uma música infinita para esse universo babaca. Vamos cantar uma canção infinita para todo o lixo (…) Vamos cantar uma canção infinita para mim, para você e para eles. Vamos cantar uma canção infinita para que possamos rir amanhã.”

Com essa última instrução, tomando os corredores cinzentos do colégio com uma melodia fervorosa e instigante, Linda Linda Linda finaliza com o mesmo espírito juvenil que guiou seu todo dramático, elogiando com todas as letras o abismo turvo e valioso entre o que somos e o que podemos ser em comunhão.