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De Cada Quinhentos Uma Alma: o apocalipse é incompreensível

“O fim do mundo está do outro lado da porta, mas isso ele ainda não sabe.” Essa é a primeira frase do mais recente livro de Ana Paula Maia, De Cada Quinhentos Uma Alma, publicado pela Companhia das Letras. Não faria sentido começar este texto com outra frase: esse é o único sentimento que importa. A diferença é que nós já estamos cansadas de saber que o fim do mundo está, de fato, bem ali do outro lado da porta. Ou, talvez, o fim do mundo já tenha até entrado. Afinal, aqui estamos, ainda vivendo o fim do mundo como o conhecemos e, portanto, não é de se espantar que narrativas apocalípticas apareçam mais em 2021. Mas, o fim do mundo de Ana Paula Maia vem sendo construído há algum tempo — ou, pelo menos, essa é a impressão que eu tenho.

Em De Cada Quinhentos Uma Alma reencontramos personagens já conhecidos do universo de obras da autora. Esse é o segundo livro de uma trilogia que começou com Enterre Seus Mortos, lançado em 2018, e continua acompanhando Edgar Wilson e Tomás. Para completar um trio de anti-heróis, Bronco Gil, um dos protagonistas de Assim na Terra Como Embaixo da Terra, também dá as caras no romance. Apesar do elemento de continuidade para personagens que já tiveram suas histórias contadas em outros livros, me arrisco a dizer que você não precisa ler a obra de Ana Paula Maia em uma ordem específica e nem seguir o protocolo de ler algum outro livro antes de pegar De Cada Quinhentos Uma Alma. Cada história é quase como um recorte e fazer uma leitura não linear, a meu ver, não atrapalha a experiência.

“Bronco Gil acende seu charuto e apoia o braço na janela enquanto dirige. Ele não merece o céu. Continua seguindo para oeste, como manda sua intuição. Se o fim do mundo havia chegado, ele permaneceria aqui embaixo com o resto de nós. Se o tempo de matar e morrer é chegado, ele está preparado para ambos.”

Se você já leu alguma coisa da Ana Paula Maia, não é preciso dizer muito. Você já sabe o que vai encontrar nessas pouco mais de 100 páginas: morte, violência, brutalidade. É um mundo sanguinário, de personagens masculinos, de figuras marginalizadas e de poucos sentimentos — com exceção, é claro, dos sentimentos de quem está do lado de fora das páginas. A escrita segue o estilo próprio da autora, direta e cortante, com um toque cinematográfico nas construções das cenas. Mais uma vez, fiquei com cada imagem claramente desenhada na cabeça como se estivesse vendo um filme, com mudanças de iluminação, cortes bruscos, closes.

Como a primeira frase já adianta, este é um livro sobre fim do mundo. Bronco Gil encontra Tomás e Edgar Wilson em meio à cena apocalíptica de um rebanho de ovelhas mortas e acaba se juntando aos dois na tarefa de recolher corpos pelas estradas. Todo o cenário é caótico e, ao mesmo tempo, vazio. Animais morrem às pencas sem muita explicação, humanos morrem assolados por uma epidemia, pelo desespero ou, como o trio de protagonistas descobre mais tarde, pelas mãos de outros humanos. Essa descoberta leva os três homens a uma busca perigosa (e pouco planejada) por entender o que de fato está acontecendo e quem está por trás de tudo.

“Com a epidemia, veio o isolamento. Com o isolamento, o silêncio. As explosões nas pedreiras cessaram e nem o cricrilar de um grilo ou o mugido de uma vaca pode ser escutado. Quem não suporta a si mesmo entenderá que o inferno não são os outros nem está nas profundezas dos abismos.”

A existência de uma epidemia temida por todos é só um dos elementos extremamente próximos da nossa realidade. Eu já imaginava que isso aconteceria, mas ainda não tinha ideia do quanto seria esquisito começar a ler ficções recentes sobre epidemias de doenças avassaladoras depois da (ou melhor, durante a) Covid-19. No livro, não ficamos sabendo ao certo do que se trata essa epidemia, quando começou e como se manifesta. Mas podemos aos poucos recolher os fragmentos que nos dizem que as pessoas estão aterrorizadas, que ninguém entende muito bem o que é aquilo, que devem ficar isoladas e que as autoridades não são uma ajuda, mas sim uma ameaça. Nada que a gente já não tenha visto ou sentido aqui fora.

Se a epidemia é o elemento próximo da realidade, mais óbvio, o risco representado pelas autoridades (no livro, na figura do exército) é o mais marcante. O abuso de poder e a brutalidade do ser humano é uma questão recorrente na obra da autora e, aqui, ela surge mais uma vez com toda a sua carga terrível e motivadora de revolta. Ainda mais quando sabemos que isso está muito longe de ser algo limitado às páginas de um livro. “Estão matando as pessoas, Tomás. Não é a praga, nem o vírus, nem a besta do apocalipse”, diz Bronco Gil em certo momento da história. A frase me lembrou tantas outras que vi por aí esses dias mesmo, na internet e em cartazes de manifestações. No Brasil de 2021 não é preciso se esforçar para entender o que é estar à mercê de um governo genocida. O fato de Bronco Gil, o personagem que diz essas palavras, ser ele próprio um assassino é algo a mais a se pensar. Bem e mal se confundem o tempo inteiro ao longo do livro, de formas até caricatas.

Os humanos e o vírus mortal não são as únicas coisas que parecem mexer os pauzinhos do fim do mundo. Um terceiro agente muito presente é um elemento sobrenatural. Aqui entram uma série de citações e referências bíblicas — incluindo uma nuvem de gafanhotos, que também não nos é estranha — que constroem um apocalipse que parece ser enviado pelos céus ou por alguma outra força transcendental.

“O caos é silencioso. Move-se insuspeito. Penetra pelas brechas ordinárias que ignoramos. Instala-se, e, assim como um organismo vivo, seu instinto é expandir-se, sulcando camada após camada até enraizar-se. Quando nos damos conta, ele é quem já dita as ordens e os próximos movimentos. Nem mortos, nem impotentes; estamos dominados.”

Para mim, todas essas coisas pouco explicadas não são um fato ruim, pelo contrário. A epidemia é inexplicável. A carnificina causada pelas figuras de poder é incompreensível. As personagens sobre-humanas que surgem recitando passagens bíblicas não têm razão. Por um lado, isso pode ser lido como falta de aprofundamento ou pouco desenvolvimento da narrativa. Mas, eu não vejo como algo necessariamente superficial. O fim do mundo, de fato, não faz sentido. Colocar explicações didáticas e reflexivas no meio de tudo isso talvez fosse colocar um fim no sentimento de caos e de impotência que embala a história. A gente nem sempre precisa (ou consegue) saber de tudo.

Dito isso, não espere encontrar um final conclusivo. De Cada Quinhentos Uma Alma acaba sem grandes respostas ou resoluções. Sabendo que o livro é parte de uma trilogia, talvez essas respostas ainda cheguem na obra final. Sinceramente, eu meio que espero que não.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


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