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As mães e os filhos (fora) do cárcere

A chama para este texto veio há quase dois meses: no dia 24 de março, a ex-primeira-dama do Rio de Janeiro, Adriana Ancelmo, investigada por corrupção ao lado do marido, o ex-governador Sérgio Cabral, teve concedido pelo Supremo Tribunal de Justiça um habeas corpus que lhe permitiu ficar em regime de prisão domiciliar enquanto não tivesse seu caso julgado. Isso aconteceu porque ela tem um filho menor de 12 anos e, teoricamente, a lei brasileira garante o direito de prisão domiciliar a mães de filhos na primeira infância, especialmente aqueles que estão privados do convívio dos dois pais ao mesmo tempo — Cabral está preso desde novembro. Hoje, 10 de maio, essa discussão parece até uma faísca atrasada, já que no fim do mês passado Adriana retornou à prisão por decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª região. O caso dela poderia não ser levado em consideração na discussão que proponho agora, mas será porque faz parte dessa grande suruba arbitrária que é a lei brasileira.

Meu trabalho de conclusão de curso na faculdade de jornalismo foi um livro-reportagem, Contando os Dias. O livro contém dez relatos de mães que estão presas e, portanto, afastadas de seus filhos. Os depoimentos abordam diferentes realidades, de mulheres que cometeram crimes diferentes e com filhos de diferentes idades, mas a maioria foi presa por tráfico de drogas. Em 2015, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, feito pelo Ministério da Justiça, o Brasil tinha 20.541 mulheres em situação de cárcere, 63% delas respondendo por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Em termos mundiais, os números são parecidos: 60% da população feminina responde por crimes dessa natureza.

Não entrarei no mérito sobre drogas e como elas são tratadas no Brasil. Esse não é o mote do texto, embora todos estejamos cansados de saber que é uma questão problemática em diversas instâncias, incluindo a superlotação carcerária. O que nos interessa, no momento, é o afastamento das crianças de suas mães pelo crime de tráfico de drogas — em muitos casos, porque essas mulheres já cresceram em um contexto sem perspectivas e não sabem fazer outra coisa para ganhar dinheiro e garantir o sustento familiar. Uma mãe sem apoio, sem base, que vê o filho com fome, mas consegue dinheiro pelo tráfico, vai ser obrigada a ficar longe da criança porque cometeu um crime para alimentá-la? Sim. Ao menos, é o que acontece no Brasil hoje.

É esse o caso de Vitória (nome substituído para preservar a identidade da entrevistada), por exemplo, que tem quatro filhos e é uma das mulheres retratadas no livro. Ela sofre por estar longe deles. Tem uma filha, inclusive, que praticamente não sabe sobre sua existência, já que o pai e a família decidiram criá-la longe “desse assunto”. Vitória diz ficar tranquila, prefere que a filha não saiba, mas fico imaginando o vazio. Vitória foi presa por tráfico de drogas e contou que o fez porque era o que sabia fazer para dar o que comer aos filhos além do fubá. Ao encarar como principal consequência de seu crime estar distante dele, ela conclui que era melhor eles continuarem comendo apenas fubá, mas tendo a mãe em casa, ao seu lado.

Não sou da área do direito, nunca estudei a fundo sobre o Código Penal, mas me aproximei das pessoas que vivem a situação carcerária na pele e me dispus a ouvir seus depoimentos de forma humana e sem preconceitos — e garanto que essa oportunidade faz com que quem vive tenha suas opiniões anteriores balançadas. A velha teoria que diz que a distância que estamos das situações muda nossos sentimentos sobre elas faz muito sentido. Quando só imaginamos, é fácil ser severo e preconceituoso, e dizer cheio de certeza que quem “faz merda tem que apodrecer na cadeia mesmo”. Quando chegamos perto e vemos que essas pessoas são apenas seres humanos, cheios de bagagem e justificativas — que podem convir ou não, mas isso não tem nada a ver conosco — tudo balança.

Estamos em maio, mês das mães, período em que começam a pipocar comerciais emocionantes na televisão e notícias romantizadas enaltecendo essas mulheres que são capazes de tudo pelos filhos. Mãe — o ser humano que, veja só, é só um ser humano, mas foi alçado ao time dos super-heróis por pura conveniência do patriarcado. Elas são maravilhosas, mulheres-maravilha; indestrutíveis, capazes de fazer um milhão de coisas ao mesmo tempo. Mas se são as mães que precisam dar conta de tudo, se são elas as únicas responsáveis pelos filhos, o que acontece quando elas são afastadas? É a pergunta de um milhão de dólares e não vou conseguir respondê-la até o final do texto. Não sei o que acontece quando elas são afastadas, mas sei um pouco sobre como é para elas estar afastadas de seus filhos e acho que posso dizer que sei, também, por tudo que ouvi, que talvez essa situação pudesse ser conduzida de forma um pouco menos arbitrária, menos traumática para todos.

Entre o romantismo em torno da maternidade e do Dia das Mães e o lado puramente comercial da data, parece que sempre falta uma brecha para a reflexão. Em um primeiro momento, parece cansativo problematizar demais. E, acreditem, é. Mas é necessário. Uma amiga costuma dizer que pessoas de “humanas” existem para isso e que acorda pensando todos os dias em qual paradigma irá quebrar durante o dia. Não é nossa culpa que sejam tantos, mas é nossa responsabilidade tentar incansavelmente colocar essas questões sob os holofotes.

A vontade é abrir todas as portas, gritas que mães devem estar perto de seus filhos. Adriana chegou a ter esse direito concedido por determinado tempo, porque tem dinheiro, tem influência e bons advogados — coisa que as mães menos privilegiadas que entrevistamos para a composição do livro, e cujo perfil se aproxima da situação da maioria dos brasileiros, não tinham. No fim das contas, acho que esse texto poderia render uma monografia inteira: é preciso haver discussões sobre a questão do gênero no tráfico de drogas, o papel da mulher na sociedade, a romantização da maternidade, o direito penal, a política de drogas no Brasil, os problemas da meritocracia e dos privilégios e outros tantos assuntos envolvidos na mesma situação.

Como essa não é a proposta do texto, apresentei apenas alguns fatos e opiniões para propor uma reflexão. Para que, nesse mês das mães, paremos para pensar: no papel delas e sobre quem não pode cumprir esse papel (mesmo que ele não seja justo), pensar que existem muito mais facetas da maternidade do que lembramos em um primeiro momento e que todas merecem igualdade de direitos e atenção em todos os 365 dias do ano, ao invés de homenagens e flores em um único domingo do mês.

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1 comentário

  1. Analu, como faço para ter acesso ao seu trabalho “Contando os dias”? Muito me interessou. Grata.

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