Categorias: LITERATURA

Misturas possíveis: público, privado e um Léxico Familiar

Se Léxico Familiar, livro da escritora italiana Natalia Ginzburg, publicado pela primeira vez em 1963 e traduzido para o português pela Companhia das Letras em 2018, precisasse ser resumido em uma única frase, a escolha perfeita seria a famigerada entrada de Franz Kafka em seu diário no dia 2 de agosto de 1914: “Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde.” Isso porque o livro, muito bem descrito no prefácio de Alejandro Zambra como uma “autobiografia familiar”, desafia e subverte qualquer divisão possível entre público e privado, denunciando a artificialidade dessa divisão e escancarando a realidade de que os grandes fatos históricos têm impacto direto na vida dos sujeitos, assim como tudo o que acontece na vida dos sujeitos só pode ser entendido a partir do seu contexto histórico e social.

Léxico Familiar segue a história da família Levi por aproximadamente 30 anos a partir das memórias de Natalia, a mais nova de cinco irmãos, nascida na Itália em 1916, em uma família de origem judaica. Sendo a narradora ainda muito nova durante a Primeira Guerra, a história começa algum tempo depois, a partir de onde ela se lembra, entremeada de costumes familiares e frases características que compõem um léxico à parte — o famigerado Léxico Familiar, que dá título ao livro. A obra é marcada por histórias dentro de histórias, com o tom informal de quem compartilha memórias próprias e alheias em um círculo familiar. Dessas histórias saem as frases marcantes e piadas internas que compõem o dialeto próprio daquela família, que não poderia ser entendido em sua totalidade por mais ninguém.

O início do livro possui uma estrutura muito característica e nem sempre linear, como a junção de memórias vívidas, mas muito restritas, que sobreviveram ao tempo. Com o avanço da história, entretanto, a estrutura do livro também muda; apesar de a sua não-linearidade característica ser mantida, à medida que as memórias vão se tornando mais complexas e completas, a obra se aproxima do ritmo de um romance, o que é natural considerando que a autora é originalmente uma romancista. Natalia garante, porém, que tudo o que ocupa as páginas do Léxico Familiar são memórias, e que todas as vezes que escorregou para os lados da imaginação e do romance, imediatamente se arrependeu e voltou atrás para desfazer o deslize. O que temos a oportunidade de acompanhar no volume é, dessa forma, supostamente um recorte tão fiel quanto possível da vida dessa família judia de convicções políticas socialistas durante a ascensão e queda do regime fascista na Itália.

“Meu pai sentava-se à mesa e punha-se a bater o copo, o garfo, o pão; e não sabíamos se estava implicando com Mussolini ou com Alberto, que ainda não tinha voltado.”

Personagens históricos entram e saem recorrentemente de cena, desfilando pelas páginas da obra como aquilo que foram em sua feição mais verdadeira, mas como ainda temos dificuldade de enxergá-los através da desumanização e da frieza das narrativas históricas: seres humanos. Em Léxico Familiar, muito mais do que os revolucionários e políticos que essas figuras foram, enxergamos finalmente as pessoas que existiam por trás dos mitos, pessoas com convicções e ideais e, possivelmente, não muito diferentes das pessoas com quem convivemos hoje, nessa nossa época também tão politicamente carregada. Essas pessoas, inclusive os próprios membros da família Levi, surgem e se mostram como os sujeitos confusos, cheios de contradições e, frequentemente, perdidos que todos somos. Todos os irmãos homens de Natalia, assim como seu pai, e até ela própria, por causa do primeiro marido — o ativista político Leone Ginzburg, que em 1944 morreu vítima de tortura enquanto estava detido — foram presos e/ou exilados em algum momento, fatos que são narrados de forma natural, em pé de igualdade com a informação de que o irmão Alberto não gostava de estudar e de o pai, Giuseppe, obrigar a família a passar as férias nas montanhas fazendo caminhadas todos os anos.

É dessa forma natural e casual que História e vida pessoal — mais uma vez, o público e o privado — se misturam. O livro denuncia que não existe divisão entre espaço público de controle estatal e espaço privado de liberdade (do homem), especialmente quando se fala em conjunturas políticas totalitárias. Nesse contexto, não existe espaço de liberdade possível, qualquer dissenso é perigoso e subversivo, aconteça ele entre quatro paredes ou não. Na mesma medida, o espaço do lar se torna espaço de articulação política, indo da simples discussão de ideias até a ação direta, como quando a família Levi esconde em sua casa Filippo Turati, antifascista fugitivo da justiça, em sua fuga para Paris, em 1926.

As contradições existentes na família também são mostradas de forma muito clara durante a obra. Começando pelas convicções socialistas que coexistem pacificamente com um modo de vida inegavelmente burguês, no qual a falta de dinheiro convive com a presença perene da figura da empregada fixa e da costureira diarista contratada que nunca deixam de fazer parte do cenário doméstico, e da recusa em enxergar a legitimidade das justificativas de Natalina, a empregada que, depois de anos trabalhando integralmente para a família, decide finalmente montar sua própria casa e trabalhar apenas como diarista. Por outro lado, temos também as convicções políticas antifascistas estrondosas, que convivem com um autoritarismo patriarcal sem nenhum nível de autocrítica do pai, que exige que tudo seja sempre feito à sua maneira e que todos se dobrem à sua autoridade, causando comoção a cada vez que um dos filhos se casa e ameaça fugir dos seu domínio.

“— Você tem medo dos comunistas — dizia-lhe Miranda — porque tem medo que lhe tirem a empregada.
— Claro, se Stálin vier tirar minha empregada, eu acabo com ele — dizia a minha mãe. — Como vou fazer sem empregada, eu, que não sirvo para fazer nada?”

As figuras de Giuseppe Levi, o pai, e de Lidia Tanzi, a mãe, em muitos aspectos formam um binômio perfeito. Ele sempre reclamando de tudo e de todos, ela sempre disposta a gostar de algo, sempre otimista e, mesmo no contexto histórico em que se encontram, constantemente alegre. Nascida ainda no século XIX, Lidia estudou durante muitos anos e começou a cursar medicina, até se casar e se dedicar completamente à vida de dona de casa e mãe que era esperada dela. Nesse aspecto, a família Levi seguia em grande parte os moldes tradicionais da divisão sexual do trabalho e dos papéis de gênero. Apesar disso, é possível considerar seu comportamento bastante avançado em algumas questões, como por exemplo na educação das meninas, que apesar de não ser vista como tão necessária quanto a dos meninos, era fornecida e encorajada.

A própria autora, em grande medida, aparece em Léxico Familiar mais como narradora do que como personagem proeminente. Apesar de tratar de sua própria vida em alguns momentos, Natalia surge principalmente em sua relação com os demais. Talvez porque não fosse justo falar a fundo de si mesma em contraste com os outros quando o poder de narrar estava todo em suas mãos, talvez porque soubesse que uma autonarrativa no contexto que se propõe a ser uma autobiografia da família seria um desvio no foco da história, ou, talvez ainda, porque são seus olhos que dão cor a tudo o que está sendo narrado — logo, sua invisibilidade é completamente ilusória. De qualquer forma, é impossível não criar uma relação com todos os personagens, com o contexto e com o léxico daquela família, que em algum lugar do caminho se torna tão querido para nós quanto nossos próprios léxicos familiares, evocando memórias queridas das nossas próprias histórias, mesmo que tenham acontecido em um espaço e um tempo tão distantes de nós.

Léxico Familiar

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


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