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Corvos, Segredos e Circo: a segunda temporada de Desventuras em Série

“Sinto que estamos sentados nesse banco há meses”, diz Violet Baudelaire (Malina Weissman) ao lado de seus irmãos, Klaus (Louis Hynes) e Sunny (Presley Smith), na Escola Preparatória Prufrock, local onde foram parar depois de todos os infortúnios que os acometeram na primeira temporada da série: da perda dos seus pais em um terrível incêndio até a assustadora estadia na casa do vilão Conde Olaf (Neil Patrick Harris) e a perseguição subsequente dele na casa dos tutores seguintes dos Baudelaire. Como uma sacada inteligente, a fala da primogênita Baudelaire não só transmite a sensação dos personagens dentro do contexto da série como se refere à espera de meses que tivemos de aguentar para continuar acompanhando suas desventuras cada vez piores no decorrer dos eventos. Lemony Snicket (Patrick Warburton) bem que avisou.

Atenção: este texto contém spoilers!

Em continuidade ao padrão da primeira temporada, o roteiro dos episódios do segundo ano de Desventuras em Série trabalha com a adaptação de cinco livros — Inferno no Colégio Interno, O Elevador Ersatz, A Cidade Sinistra dos Corvos, O Hospital Hostil e O Espetáculo Carnívoro — reservando o espaço de dois episódios para cada um. No entanto, esses livros centrais à série começam a apresentar mudanças graduais ao desenvolvimento até então previsível da trama que vimos até agora. Para começar, no quinto volume de Desventuras em Série, os irmãos Baudelaire não são postos aos cuidados de um tutor legal como nos volumes anteriores; com o fracasso das prévias experiências, eles são matriculados na Escola Preparatória Prufrock numa tentativa de serem instruídos e ao mesmo tempo protegidos das garras do Conde Olaf pelas paredes de uma instituição. Por ironia ou adequação ao tom, a história prefere abordar os aspectos negativos do ambiente escolar, incluindo a ditadura dos funcionários superiores na figura do vice-diretor Nero (Roger Bart) e o bullying dos alunos que é especialmente forte na atitude da mimada Carmelita Spats (Kitana Turnbull) que vive chamando os órfãos da escola de bisbórrias (“cake-sniffers”, em inglês) enquanto os demais colegas fazem coro. Até para os agentes da sociedade secreta, e o próprio Conde Olaf, que são ex-alunos, a escola não traz boas lembranças.

“Memento Mori: Lembra-te que morrerás.”

O tom da série torna-se gradualmente mais obscuro à medida que a trama vai evoluindo. E uma evidência bastante clara para isso, além do cenário em tons cinzentos e frios, caracterizados pela pouca luz e elementos mortos, é o próprio lema da escola: Memento Mori, que significa “Lembra-te que morrerás”. A razão pela qual uma instituição de ensino resolveu adotar uma constatação tão fria — embora verdadeira — como lema é uma incógnita, mas a verdade é que, apesar disso, a morte sempre esteve presente em Desventuras em Série que, afinal de contas, só teve sua trama posta em movimento porque os irmãos perderam seus pais em um incêndio; e essa mesma trama continua em movimento graças a perda de um tutor após o outro. Qualquer fagulha de esperança que surge na vida dos órfãos, seja pelo encontro com pessoas que podem ajudá-los — como Larry, o garçom (Patrick Breen), e os trigêmeos Quagmire, Isadora (Avi Lake) e Duncan (Dylan Kingwell) (Quigley, o terceiro trigêmeo, também interpretado por Kingwell, faleceu no incêndio) —, acaba sendo frustrada pela perseguição incessante do Conde, que sempre torna a encontrá-los com seus disfarces. Dessa vez, fantasiado de professor de educação física, treinador Genghis, ele pretende encurralar os órfãos exaurindo-os fisicamente, de forma que eles falhem no desempenho escolar e sejam expulsos de Prufrock direto para suas mãos.

Desventuras em Série

Desnecessário dizer que, assim que os Baudelaire percebem que não estão a salvo, suas tentativas de avisar os adultos são, mais uma vez, frustradas, e esse padrão que se repete poderia desgastar a continuação logo no começo dela, não fosse pela particularidade de cada livro que continua prendendo a atenção do leitor e espectador. A adaptação segue com seus roteiros inteligentes, que faz críticas sutis às modas da sociedade contemporânea e referências à cultura popular. Olaf, como treinador (“coach”) da escola, tem um jeito debochado de falar, o tempo todo contando histórias de pessoas que vieram a ele buscando dicas de sucesso e como ele mudou as suas vidas. Trata-se de uma sátira à trend de coaches de negócios e estilo de vida, pessoas que têm uma história de sucesso e passam a oferecer workshops de como melhorar o estilo de vida de outras pessoas para que elas possam fazer o mesmo. São esses pequenos paralelos com a sociedade contemporânea que nos prendem à lembrança de que a produção assistida é fictícia e tem aspectos surreais porém ainda é sagaz na abordagem da mensagem que corre nas entrelinhas.

O lado positivo no capítulo no colégio interno, além da proximidade empática com os trigêmeos Quagmire, é o apoio encontrado na bibliotecária Olivia Caliban (Sara Rue), uma personagem que destoa da atmosfera insegura da escola. Com seu cabelo ruivo preso num coque e o óculos de gatinho que compõem o estereótipo da bibliotecária, na primeira aparição de Olivia ela discute com o diretor Nero a respeito da possibilidade de a biblioteca ficar aberta por mais de dez minutos, o que reforça a característica marcante de Desventuras em Série de que sempre se pode confiar em alguém que tenha apreço aos livros. Sem querer, Olivia acaba no meio do desencontro entre os agentes da sociedade secreta e os órfãos, e guiada por uma citação muito nobre, por assim dizer, ela acaba se envolvendo com a sociedade e integrando o grupo de figuras femininas fortes ao lado de Jacquelyn, a secretária do Sr. Poe.

“Em um mundo muito frequentemente governado por corrupção e arrogância, pode ser difícil manter-se fiel aos próprios princípios filosóficos e literários.”

Com as reviravoltas no colégio — que termina com o Conde Olaf desistindo temporariamente dos Baudelaire por ter conseguido sequestrar os Quagmire —, os três irmãos seguem para a casa dos sextos tutores, Jerome Squalor (Tony Hale) e sua esposa Esmé (Lucy Punch), socialite que está sempre acompanhando as últimas modas, adotando o que é “in” e descartando o que é “out” com a velocidade de quem desliga um interruptor. Na trama de O Elevador Ersatz, a maior preocupação dos Baudelaire acaba não sendo tanto o risco que eles próprios correm por já terem caído no radar do Conde — agora disfarçado de Gunther, um leiloeiro falsamente estrangeiro — quanto é o resgate dos amigos e investigação de uma pista que os Quagmire deixaram para trás em suas pesquisas: a sigla CSC (VDF, em inglês). A luneta que Klaus encontrou nos destroços da mansão dos Baudelaire acaba apontando para um mistério ainda maior a cada parada. Por meio de fotografias, Violet, Klaus e Sunny descobrem que aquelas pessoas que nunca tinham visto antes pareciam ter uma relação bem próxima com seus pais, mas a ausência do por quê de eles nunca terem se encontrado perturba a mente dos irmãos que tiveram suas vidas viradas de cabeça para baixo por causa disso. Está tudo indicado nos olhos que eles continuam encontrando no meio do caminho.

A essa altura da série, a incompetência dos tutores não é mais uma surpresa, e sim um padrão. A diferença, dessa vez, é que a traição de Esmé vem junto com a revelação de que ela é obcecada por um açucareiro que lhe fora roubado pela mãe dos Baudelaire. O conteúdo desse açucareiro, a localização dele e o motivo pelo qual ele foi roubado, é um mistério de crescente curiosidade e pouca resolução — há quem disponha de tempo para juntar as pistas e buscar a resposta como numa partida de Scotland Yard — o próprio Daniel Handler, o autor por trás de Lemony Snicket, disse em entrevista que recebe um e-mail por ano de fãs que conseguiram resolver o mistério do açucareiro. De qualquer forma, a mais nova integrante da trupe do Conde Olaf parece ter motivos tão fortes quanto o vilão principal para querer vingança, e o lado antagônico da trama ganha uma vilã de destaque, ainda que sua personalidade seja fútil e insuportável. O ponto é que a inserção de informações que possam explicar a origem dos incêndios e do ódio do Conde e Esmé deixa os Baudelaire muito mais próximos da complexidade do moralismo. Eles sentem as consequências das omissões de seus pais a cada fuga, e embora acreditem na bondade deles e de todos os tutores por quem passaram, não deixa de ser essencial a busca por esclarecimentos.

Ao que o começo da primeira temporada pode parecer monótona, talvez infantil para alguns, a paciência é recompensada no meio da segunda temporada, a partir de A Cidade Sinistra dos Corvos, quando os Baudelaire são levados para uma cidade erma para serem criados por todos os cidadãos que lá habitam, e inesperadamente, um assassinato cometido ali inverte o jogo e põe os três irmãos na posição de caça, e não mais de caçadores (de justiça), não bastasse a preocupação em resgatar os trigêmeos Quagmire. Nesse ponto da história, a ironia dramática que sempre permeou a série se faz cada vez mais forte, e a questão da relatividade moral é colocada em pauta cada vez que os adultos — que nunca acreditaram nas denúncias dos irmãos, e mesmo tendo errado uma, duas, quatro, seis vezes nunca aprendem a lição — passam a acreditar nas falsas acusações que fazem contra os Baudelaire e se colocam contra eles, reforçando a caçada. Em posição de defesa, Violet, Klaus e Sunny passam a violar algumas regras, enganar e cometer outras transgressões, indo contra seus próprios valores com muita relutância e peso na consciência, mas crentes que aquilo precisa ser feito se eles quiserem alcançar a resposta que tanto procuram e se livrar de todo aquele sofrimento que os persegue. As escolhas que fazem são particularmente difíceis quando eles precisam sacrificar a própria pele para deixar que os amigos tenham a chance de escapar, quando a pessoa para quem mentem é gentil e acredita na bondade e na amizade deles, quando precisam confiar em uma pessoa em um momento crucial para se salvar de feras carnívoras.

Desventuras em Série

A Cidade Sinistra dos Corvos, O Hospital Hostil e O Espetáculo Carnívoro proporciona muitas reviravoltas na trama dos Baudelaire e altera momentos absurdos — já viram um bebê pilotar um caminhão de bombeiros? — com piadas hipertextuais sobre transmissões de serviço de streaming, que, por sua vez, são lembretes de que aquela trama não tem conexão nenhuma com a realidade, apesar de a temática estar sempre pinicando os cantos da nossa consciência sobre as nossas atitudes ou a dos outros que podem ser questionadas da mesma maneira. É tão incômodo quanto fascinante ver como uma determinada ação pode ter uma consequência totalmente diferente se mudar o prisma pela qual nós a enxergamos. Desventuras em Série reforça seu mérito por parecer inocente e voltado para o público infantil, quando, na verdade, contém elementos que só os olhos de um adulto mais experiente no que há de bom e ruim nesse mundo podem identificar. E, com certeza, a série vai parecer mais macabra para um adulto do que para uma criança que ainda não tem uma noção mais ampla de ameaça.

Ao mesmo tempo, entre os acertos da série está a evidência das irmãs de cada trio fraterno de órfãos: mais do que na primeira temporada, as habilidades mecânicas de Violet foram importantíssimas para fazê-los ganhar tempo em momentos cruciais da trama, e elas são encaradas com a naturalidade que demonstra que nunca houve um empecilho para meninas assumirem essas funções, se este for seu interesse; do outro lado, Isadora demonstra ser a mais contida entre os trigêmeos Quagmire diante de situações de dificuldade, o que auxilia quando, na posição em que estão, eles precisam pensar em uma maneira de ajudar os Baudelaire a encontrá-los. Ainda assim, o maior pecado da segunda temporada de Desventuras em Série é a falta de diversidade no elenco nos novos dez episódios. Entre rostos novos e antigos, apenas o Sr. Poe, interpretado por K. Todd Freeman, tem uma participação maior na série. E, além dele, há Eleanora (Cleo King), do Sr. Poe e editora d’O Pundonor Diário, e Hal (David Alan Grier), funcionário do Hospital Hemlich que ajuda os Baudelaire. O desfalque não passa despercebido quando novas adições são feitas a cada capítulo e poderiam ser adaptadas de acordo para a série; não há justificativas aparentes para não terem incluído pessoas de outras etnias e grupos sociais nem mesmo em papéis menores. A primeira temporada deu a impressão de que Desventuras em Série ao menos tentaria manter-se atualizada com a expectativa do público de um elenco mais heterogêneo, e é decepcionante perceber que essas expectativas não foram atendidas, como a escala dos papéis que atores negros ocuparam não tivessem sequer intenções sinceras desde o início, ainda mais se tratando de uma história que não define capacidade dos personagens por gênero e cor, mas por suas características mais profundas.

Fora isso, um último defeito que pode-não-ser-defeito é o excesso de informações metalinguísticas inseridas em cada episódio. Ao passo que, no livro, o hábito de o autor utilizar uma palavra e explicar seu significado em contexto — “uma palavra que aqui significa…” — é bastante produtiva para construção de vocabulário de leitores jovens (ou reforço para os leitores adultos), no formato mais dinâmico da série as explicações podem acabar ficando cansativas, pois o visual da série é carregado de uma atmosfera sóbria e detalhes que ultrapassam um pouco aqueles que aparecem nos livros e também mostram o que está acontecendo longe da trajetória dos Baudelaire. São detalhes que podem ser relevados — mas não sem alguma reivindicação, como no caso da representatividade — para poder desfrutar do melhor que a série pode oferecer. Ainda que menos difundida, Desventuras em Série é uma das referências mais fortes que temos na literatura infantojuvenil atual e tê-la adaptada com tanta fidedignidade no serviço de streaming que não impõe restrições de censura é um ganho imenso como entretenimento e objeto de análise adicional para os fãs mais envolvidos com a solução dos mistérios que nunca foi entregue. A segunda temporada foi boa o suficiente para nos deixar crentes que a terceira — e última — vai nos entregar um desfecho que vai valer toda a jornada.

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