Categorias: LITERATURA

Troféu Valkirias de Melhores do Ano: Literatura

“Para viver contamos histórias a nós mesmos.” É com essa frase que Joan Didion abre O Álbum Branco, livro de ensaios escrito por ela e publicado pela primeira vez em 1979. Para os amantes de literatura, a frase não é apenas uma ótima citação, mas uma que nos diz respeito de forma quase literal: vivemos das histórias que contamos e, sobretudo, daquelas que nos são contadas, dos mundos mágicos que conhecemos e das aventuras que vivemos ao passar de cada página, com o iniciar de cada nova leitura.

Pensar como teríamos vivido sem essas histórias é considerar que talvez não estivéssemos aqui hoje. Como pareceu regra nos últimos anos, a literatura foi um refúgio, o lugar para onde podíamos escapar quando a vida real parecia cada vez mais saída de uma distopia assustadora. Mas mesmo eles foram ameaçados nesse tempo, tornando nossos medos uma realidade: do aumento dos preços que os tornaram cada vez mais inacessíveis (devido, sobretudo, à inflação e o aumento do preço dos insumos de produção) à possibilidade de tributação, a literatura esteve sob constante ameaça em nosso país. Que esse ano, o Troféu Valkirias de Melhores do Ano: Literatura seja um lembrete de quão importante é a literatura na formação de pessoas, na resistência e seu papel como luz em meio a tempos sombrios.

Anatomia de Um Quase Corpo, Yara Fer

Por Anna Carolina Ribeiro

O primeiro romance da poeta Yara Fers é uma prosa poética com bastante cuidado quanto à estética e à linguagem, mas sobretudo com delicadeza em mostrar a vida que existe e resiste no chão concreto e em meio às articulações metálicas de uma fábrica. Concorrente ao prêmio Kindle, o livro conta a história de Bárbara, uma operária que tem o braço devorado por uma das máquinas que opera e a partir daí tem que reaprender a viver com aquela nova ausência.

A narração segue um fluxo de consciência inconstante, como as fases de aceitação da perda — no caso, perda de uma parte que era importante não só para o trabalho, mas também para todas as atividades da vida — inclusive as que mais amava. A protagonista reflete sobre sua relação com as demandas do capitalismo impostas pelo trabalho alienado, as relações sociais entre patrões e empregados e também mostra como é possível encontrar vida mesmo vivendo dentro de um corpo que abusa dos outros organismos que o alimentam — a própria fábrica. A autora nos mostra como a arte é importante para a sobrevivência quando o trabalho acaba nos sendo imposto como centro da vida. A música — e até a escrita, já que a narradora conta sua história em um diário para fins terapêuticos — cria elos entre os personagens: a namorada e as amizades da fábrica se conectam musicalmente. De forma bela, sublime, delicada e realista, a trama também oferece saídas humanas e construídas com o afeto para um drama que afeta a todas as pessoas que trabalham: é possível ser mais do que uma peça no corpo-máquina do capitalismo? Se a realidade parece não oferecer resposta satisfatória e possível, o livro nos dá esperança para a mobilização. Existem muitas saídas que se podem realizar, desde que haja união. E Bárbara testemunha e participa de uma dessas soluções, deixando leitores com os corações cheios de possibilidades. Compre! 

Antes que o Café Esfrie, de Toshikazu Kawaguchi

Por Beatriz Romanello

Antes que o Café Esfrie não é mais uma história de viagem no tempo de pessoas arrependidas. Afinal, aqui não temos uma viagem do tempo qualquer — existem regras e a mais significativa é que nada que é feito no passado mudará o presente ou futuro. Com isso, resta apenas encarar que o que passou, passou, mas o que podemos fazer com o que ainda está a nossa frente? Quatro histórias que se conectam e nos emocionam, nos mostram a fragilidade e singularidade de estar vivo. Compre! 

As Bruxas de Bass Rock, Evie Wyld

Por Thay

Em um livro que entrelaça três gerações, Evie Wyld nos leva por uma história repleta das dores e violências sofridas por mulheres na Ilha de Bass Rock. Toda a narrativa de As Bruxas de Bass Rock é construída com base em uma intrincada trama de assombrações, reais e imaginadas, misoginia e masculinidade tóxica, e como a sociedade opera de maneira coletiva para quebrar os espíritos das mulheres, sejam elas reais ou do universo da ficção. É dessa maneira que acompanhamos os pontos de vista de Sarah, Ruth e Viviane, mulheres tão diferentes entre si, mas que compartilham a violência diária que o ser mulher as proporciona.

A estrutura do romance de Evie Wyld se revela a cada capítulo onde as narrativas dessas três mulheres vão e voltam no tempo, nos mostrando, pouco a pouco, a dor que as une. O livro é brutal em sua narrativa e Evie Wyld não nos poupa da dureza da realidade, imprimindo em suas páginas cada nuance possível da violência e misoginia presentes em nossa sociedade, explorando com primor a mente disfuncional dos homens de sua trama, pintados em cores tão frias e cruas que causam arrepios mesmo que eles, em específico, sejam ficcionais — mas sabemos bem que a realidade não é tão diferente assim. Compre! 

Para saber mais: As Bruxas de Bass Rock: dor e misogina que atravessa gerações

Até os Ossos, Camille De Angelis

Por Ana Luíza

Dois jovens canibais em uma road trip. Essa parece a maneira mais fácil de definir Até os Ossos, livro de Camille De Angelis recentemente foi adaptado para o cinema por Luca Guadagnino. É também uma definição que não faz jus à obra, cuja complexidade é muito maior do que pode se supor a partir de um olhar tão simplório. De Angelis traça personagens muito humanos, sem jamais esquecer o que os fazem tão solitários, e constrói suas relações a partir de diálogos, da troca de experiências e da vivência conjunta.

Vencedor do Alex Award de 2016, Até os Ossos se desenrola em um romance de formação ora incômodo, ora esquisito, mas sempre especial. Há doçura em suas páginas, mas há também muito sofrimento, gerado pela certeza de que algumas coisas simplesmente são inescapáveis. O desfecho não poderia ser nada além de surpreendente. Compre! 

Árvore Inexplicável, Carol Chiovatto

Por Thay

Árvore Inexplicável, terceiro livro de Carol Chiovatto, o primeiro publicado pela Editora Suma, é tudo o que você pode esperar de uma das mais novas vozes da fantasia urbana e ficção científica nacional. Na trama acompanhamos a jornada de Diana, uma universitária que poderia facilmente ser eu, você ou sua melhor amiga, tentando navegar uma pandemia enquanto é envolvida em uma trama muito maior e mais estranha do que ela poderia imaginar. Em Árvore Inexplicável estão presentes todos os elementos que aprendemos a amar na escrita de Carol em seus livros anteriores — Porém Bruxa e  Senciente Nível 5 unidos — em um universo inteiramente novo, ainda que familiar.

É muito divertido acompanhar os personagens caminhando por cenários que conhecemos, andando (e fugindo) por uma São Paulo que é tão real que pulsa em meio às páginas, fazendo com que a trama de Árvore Inexplicável cresça em senso de urgência e tensão a cada capítulo. Os personagens, tão intrinsecamente brasileiros, são um show a parte, nos fazendo amá-los e odiá-los em igual intensidade. A escrita de Carol Chiovatto nos transporta para a sua trama como se fizéssemos parte da narrativa e isso é qualidade para poucos. Compre!

Para saber mais: Árvore Inexplicável, de Carol Chiovatto

Blanche em Apuros, Barbara Neely

Por Thay

Se você é fã de histórias de detetives e protagonistas astutas, Blanche em Apuros, de Barbara Neely, é o livro perfeito para você. Na trama acompanhamos a jornada de Blanche White, uma faxineira que batalha diariamente para manter a si mesma e os dois filhos da irmã falecida, que está cansada de aguentar os caprichos das madames brancas para quem precisa trabalhar. Como uma mulher gorda, preta e de quarenta anos, Blanche acostumou-se a ser praticamente invisível aos olhos de seus patrões, e é exatamente essa aparente invisibilidade que a transforma em uma perspicaz observadora das vidas dos ricos e intocáveis. Com observações mordazes e um humor sarcástico, Blanche acaba se metendo em apuros, mas é justamente sua maneira de encarar o mundo que a protegerá de situações muito complicadas.

Blanche em Apuros é o primeiro livro de Barbara Neely publicado no Brasil, chegando pela DarkSide Books em edição para lá de caprichada, bem a altura de seu escrita. Com uma narrativa deliciosa que reúne as investigações por conta própria de Blanche além de críticas sociais diretas, Neely constrói uma trama que é impossível de deixar de ler. Em 2020, pouco antes de falecer aos 78 anos de idade, Barbara Neely recebeu a honraria máxima do Mystery Writers of America, prêmio já concedido a escritores como Agatha Christie e Stephen King. A escritora era ativista, deu aulas para detentos e combateu a violência contra as mulheres, o que transborda para as páginas de seu livro e, é claro, para sua protagonista. Compre!

Book Lovers, Emily Henry

Por Amanda Karolyne

Depois dos livros Beach Read (Leitura de Verão) e People We Met On Vacation (De Férias com Você), Emily Henry atacou mais uma vez e, esse ano, fez tudo pelo romance. Os livros de Emily apresentam personagens com quem nos identificamos e são sempre mocinhas de personalidades diferentes que, com todos os clichês do gênero, são tão reais que seus defeitos e qualidades acabam refletindo em quem está lendo. Em Book Lovers, que será traduzido como Loucos Por Livros no Brasil, Emily se inspirou nas personagens tidas como vilãs dos filmes de romance. As loiras tingidas, workaholics, frias, que nunca choram e mal tem tempo para sentimentos. Nora, a protagonista, me lembrou muito Amanda, a personagem de Cameron Diaz, em O Amor Não Tira Férias, acusada pelo ex de não chorar e não se importar.

Com um mocinho apaixonante, essencial para a trama amorosa, Book Lovers nos apresenta personagens que tem traumas de infância, são muito ligados à família, e o principal, amam tanto os livros que trabalham na industria livreira. O universo que Emily constrói é muito aconchegante e autêntico. Depois de me apaixonar e me identificar com a romântica January de Beach Read e a aventureira Poppy de People We Met On Vacation, me vi em Nora, a filha mais velha em Book Lovers. Depois de mais um livro avassalador de Emily Henry, fui direto para a terapia! Tenho certeza que Happy Place, o próximo livro de Emily Henry desse universo tipico de comédia romântica, será um dos favoritos de 2023. Compre!

Estou Feliz que Minha Mãe Morreu, de Jennette McCurdy

Por Ana Azevedo

Autobiografia da ex-atriz foi lançada em no meio do ano em inglês e sua tradução chegou por aqui em novembro de 2022. O futuro é de esperança para Jennette McCurdy, mas antes ela nos conta com detalhes sobre seu passado sombrio que ela manteve escondido enquanto nos fazia rir com os episódios de iCarly. Lembro que ano passado escrevi nos Melhores do Ano sobre o podcast da Jennette, o Empty Inside, onde ela já falava bastante sobre a tumultuosa relação com a mãe já falecida. O título conseguiu o que queria — chamou a atenção dos leitores e da crítica e foi sucesso entre o os dois. O título e a história são impactantes, mas o jeito que McCurdy escreve também não é de se deixar de lado. Jennette consegue criar momentos de humor nos mais complicados relatos de sua vida. E que vida!  A ex-Sam de iCarly conduz sua história com um humor dark e millennial entre abusos da mãe, uma batalha contra um transtorno alimentar e sua relação distorcida com a fama. Compre!

Interseção, Vanessa Reis

Por Debora Theobald 

Interseção, de Vanessa Reis, é uma comédia romântica com uma história que prende pelos clichês que toda romântica ama, pelo desenvolvimento incrível do casal principal, a ótima construção dos conflitos da personagem principal, além da escrita impecável, orgânica, cheia de referências incríveis, piadas que fazem rir alto, ao mesmo tempo que transita para reflexões profundas e que mexem naquele cantinho do coração onde escondemos as coisas que não queremos admitir. Além de tudo isso, o fato de Vanessa conseguir criar de forma precisa e natural uma ambientação realmente brasileira, tanto na fala dos personagens, como na descrição dos lugares, torna a leitura ainda mais gostosa e fluída.

A história de Catarina e JPS, dois colegas de trabalho que se odeiam e precisam realizar um projeto juntos, é um refúgio para mim quando quero me divertir ou quando quero algumas palavras que alentem meu coração e me lembrem que com esforço mútuo, dedicação, comunicação e, claro, amor, é possível construir um relacionamento que nos faz feliz. Compre!

Para saber mais: Interseção: uma comédia romântica à brasileira

Prazeres Violentos, Chloe Gong

Por Thay

Prazeres Violentos, de Chloe Gong, foi uma das maiores surpresas de 2022 na minha lista de livros lidos. Minha curiosidade com a obra crescia a cada comentário que lia a respeito, antes mesmo do lançamento no Brasil pela Alta Novel, então fiquei muito contente — e aliviada — com o fato de ter amado a trama de Juliette Cai e Roma Montagov para além do hype do BookTok. Livremente inspirada em Romey e Julieta, de William Shakespeare, a trama de Prazeres Violentos toma emprestada alguns dos elementos mais marcantes da obra do bardo inglês e as transporta para a Xangai de 1926 com todas as suas cores e opulência, mas também com o crime e o pavor causado por uma criatura que espreita do Rio Huangpu.

A escrita de Chloe Gong é deliciosa e fazia muito tempo que eu não lia um enemies to lovers cheio de slow burn e cenas de ação na medida certa. Com seus protagonistas a autora constrói uma narrativa que cresce de intensidade na medida em que descobrimos os mistérios dessa Xangai que é tão rica e fascinante quanto perigosa. Embora Juliette e Roma sejam perfeitos, também há destaque para os personagens secundários na trama de Prazeres Violentos, e aqui fica meu amor incondicional por Kathellen, prima de Juliette e uma mulher trans, e de Benedikt e Marshall, primo e amigo de Roma. Compre!

Para saber mais: Prazeres Violentos: Romeu e Julieta na Xangai dos anos 1920

Procurando Jane, de Heather Marshall

Por Ana Luíza

Primeiro livro da canadense Heather Marshall, Procurando Jane conta a história de mulheres que, em três linhas distintas de tempo, se veem entrelaçadas pela maternidade, “por querer ser mãe e não querer ser mãe e todas as áreas cinzas entre os dois extremos”, nas palavras da autora, e os meios que encontram para ajudar umas às outras em um país onde o aborto não era legalizado (por mais arriscadas que eles pudessem ser). Embora seja uma história de ficção, Marshall utiliza vários elementos reais em seu livro, como as redes de aborto clandestino, e as casas de amparo maternal — que, apesar do nome, não ofereciam qualquer amparo às mães que buscavam ajuda, muitas das quais sofreram abusos e maus tratos e tiveram seus bebês doados sem autorização após o nascimento.

O Canadá legalizou o aborto em 1988, mas passados 34 anos, a discussão sobre o assunto ainda não acabou: este ano, os Estados Unidos revogaram a lei que, desde 1973, estabelecia o direito ao aborto no país, enquanto milhares de países pelo mundo, incluindo o Brasil, são palco de manifestações contra o direito de escolha. Também em 2022, a ex-ministra Damares Alves foi a senadora mais votada no Distrito Federal, a mesma pessoa que incitou seguidores contra uma menina de dez anos que teve seu aborto autorizado judicialmente após ser vítima de um estupro. É preciso falar sobre o aborto. Procurando Jane é um bom começo. Compre!

Quando as Árvores Morrem, Tatiana Lazzarotto

Por Anna Carolina Ribeiro

Ainda que o luto que Tatiana Lazzarotto retrata em seu livro de estreia, publicado pela editora Claraboia, seja bem específico, quem não perdeu um pai inesperadamente pode também se identificar com a jornada de sentimentos que vive quem perde alguém amado. No romance biográfico contemplado pelo ProAC, acompanhamos a notícia de falecimento, e a partir dela, os desdobramentos práticos e emocionais da família enlutada.

A proposta de autoficção em Quando as árvores morrem é amarrar fatos de uma vivência real — afinal, Tatiana de fato perdeu seu pai — com uma narrativa bonita, delicada em muitos pontos e propositalmente crua em outros, como a dor da saudade. As memórias não acompanham apenas o processo de luto de quem fica ou a ausência do pai, mas acaba sendo uma celebração da vida do homem que dedicou sua vida a manter a família feliz apesar de todas as dificuldades e ainda encontrava tempo para, durante anos, ser o papai noel da cidade de Província, onde morou até o fim da vida. As metáforas sobre o luto, a vida, a perda e o seguir em frente se fazem a partir da imagem de árvores — personagens e recursos narrativos importantes para a história de amor e dor contada por este novo nome da literatura independente, que veio para transformar a saudade em algo tocante: celebração literária. Compre!

Sete Anos de Escuridão, You-jeong Jeong

Por Thay

Sete Anos de Escuridão é o mais recente thriller escrito por You-jeong Jeong, autora de O Bom Filho e uma das mais célebres escritoras da Coreia do Sul. Publicado por aqui pela editora Todavia, Sete Anos de Escuridão é mais um trabalho de You-jeong Jeong capaz de despertar no leitor emoções contraditórias durante as mais de 400 páginas de sua trama. É fácil se compadecer de Sowon, um jovem obrigado a se tornar um nômade, sem apoio sequer dos parentes após o encarceramento de seu pai, mas também sentir pena de Hyonsu, um homem acorrentado a uma série de más decisões.

A narrativa de You-jeong Jeong não a transformou em uma das melhores escritoras de thriller da Coreia do Sul por acaso e em Sete Anos de Escuridão ela coloca todo o seu talento a serviço de uma trama repleta de reviravoltas, personagens intrigantes e muitas camadas de mistério. É impossível deixar o livro de lado antes de chegar em seu desfecho enquanto a autora nos faz questionar durante todo o percurso o que é certo e errado, nos colocando ora no lugar de um personagem em busca de vingança, ora no lugar da vítima presa no lugar errado e na hora errada. You-jeong Jeong nos manipula como peças de xadrez e o resultado é um livro incrível, impossível de desconsiderar em uma lista de melhores do ano. Compre!

Para saber mais: Sete Anos de Escuridão: somos as escolhas que fazemos