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O Telefone Preto, Verão de 84, Tempos Obscuros e It: A Coisa: o coming of age no cinema de horror

Em 1985, John Hughes lançou Clube dos Cinco (The Breakfast Club). No longa, cinco jovens estão presos em uma detenção de final de semana e se unem apesar das suas diferenças. Os personagens são explorados de acordo com o estereótipo que cumprem na “cadeia alimentar” do ensino médio: o Nerd, a Princesa, a Louca, o Atleta e o Pária. Assim, eles seguem uma hierarquia clara, segundo a qual não poderiam se conectar de forma alguma. Mas, depois desse tempo juntos, a sua humanidade acaba ultrapassando os rótulos e fazendo com que eles percebam que têm dúvidas e dilemas bastante similares. Logo, o cerne de Clube dos Cinco é uma experiência aleatória que os faz crescer enquanto indivíduos.

Convencionou-se a chamar os filmes que fazem esse tipo de caminho de coming of age, que em tradução literal significa “atingir a maioridade”. Ou seja, enfrentar momentos que contribuem para o encerramento da infância e da adolescência e a chegada da vida adulta. Nem sempre estes momentos precisam ser grandiosos e Clube dos Cinco ilustra essa questão com clareza, de modo que é um dos melhores exemplos do gênero ainda que 37 anos tenham se passado desde a sua estreia.

coming of age

É interessante destacar que quase sempre os coming of age têm enredos tão simples quanto o apresentado por Hughes. Isso acontece porque o que importa é o desenvolvimento psicológico dos personagens e o que eles aprendem no recorte que assistimos. É isso que leva o público à catarse. Entretanto, quando o coming of age se funde ao cinema de horror, os desdobramentos se tornam um pouco mais complexos porque o amadurecimento vem de lugares escuros. Mais dolorosos do que passar um final de semana confinado na escola.

O recente O Telefone Preto (The Black Phone, 2021) faz um trabalho interessante em ilustrar isso. O horror no filme de Scott Derrickson não vem somente d’O Sequestrador (Ethan Hawke). Ele está também em detalhes do cotidiano da região marcada pelos crimes e no comportamento das crianças locais. Inclusive, O Telefone Preto dá um passo adiante e coloca os seus protagonistas mirins como agentes da violência indo onde outros longas do mesmo estilo pensaram duas vezes antes de ir. Desde 1956, ano de lançamento de A Tara Maldita (The Bad Seed), existe uma relutância para mostrar crianças cometendo atos de vilania e recorre-se à insinuação para que o público tire as suas próprias conclusões. Mas Derrickson não se acovarda e filma brigas entre os personagens infantis, além de colocar Finney (Mason Thames) como o único responsável pelo seu amadurecimento na trama. Então, ainda que ele receba a ajuda das outras crianças sequestradas para conseguir se entender como capaz de sair do cativeiro, somente ele pode se retirar daquela situação e lidar com os desdobramentos do seu plano de fuga.

Além de O Telefone Preto, outro filme recente que fez um ótimo trabalho ao transportar o coming of age para o cinema de horror foi Verão de 84 (Summer of 84, 2018). Nele, um grupo de quatro garotos investiga um vizinho que eles acreditam ser um serial killer responsável por quinze mortes. À medida que a verdade se aproxima e eles conseguem coletar mais provas, a situação se torna mais perigosa. Percebendo isso, os garotos decidem recorrer aos adultos ao seu redor, que questionam os seus motivos e fazem com que eles se desculpem com o vizinho em questão, o que automaticamente os transforma em alvos. Essa ideia de que a juventude não é ouvida quando o mal toca somente crianças e adolescentes é algo bastante presente no horror, especialmente no slasher. Embora os propósitos deste subgênero tenham ligação direta com mecanismos de controle, em Verão de 84 isso não se repete. Na verdade, a descrença dos adultos serve para ilustrar que amadurecer pode ser solitário porque é um processo não assistido. Assim, por mais que os personagens tenham com quem contar, ao mesmo tempo, eles estão desamparados e as suas ideias não são consideradas válidas. Isso é algo que espelha como os sentimentos de jovens são tratados de forma leviana em muitos casos, abrindo espaço para que eles sofram as consequências desnecessárias da negligência e da falta de escuta.

Outro longa que segue um caminho similar é Tempos Obscuros (Super Dark Times, 2017). Zach (Owen Campbell) e Josh (Charlie Tahan) são melhores amigos durante toda a sua vida. Entretanto, depois de um acidente envolvendo Darryl (Max Talisman), eles precisam guardar um segredo sombrio, que vai colocá-los em uma espiral de paranoia e violência. Em paralelo, os garotos lidam com questões típicas de adolescentes, como o fato de que estão interessados na mesma garota. Então, quando as tensões causadas pelo acidente se somam a conflitos banais, o amadurecimento em Tempos Obscuros se torna exatamente o que o título promete e os personagens passam a percorrer um caminho cada vez mais acidentado, que só poderia culminar em um desfecho trágico e marcado pelo conflito direto.

coming of age

Embora O Telefone Preto, Verão de 84 e Tempos Obscuros sejam excelentes exemplos de coming of age no cinema de horror, eles deixam a mesma dúvida pairando no ar: o que acontece depois do amadurecimento? Responder a essa pergunta não é uma obrigação ou uma necessidade dos longas, mas ao mesmo tempo seria interessante conhecer um pouco sobre os desdobramentos das situações apresentadas. Afinal, os eventos traumáticos foram transformadores naquela fase da vida, mas quais foram as suas consequências no todo?

O serial killer de Verão de 84 promete a Davey (Graham Verchere) que eventualmente voltará para pegá-lo e afirma que o garoto passará o resto da sua vida em estado de alerta sem saber quando esse dia vai chegar. Em Tempos Obscuros, Josh vai preso pelos eventos ocorridos na casa de Megan (Adea Lennox), mas nós não sabemos como isso reverbera em Zach. Em um tom mais otimista, o pai alcoolista de O Telefone Preto parece determinado a se redimir com os filhos após Finney escapar das garras d’O Sequestrador. Será, então, que Davey se tornou um paranoico e Finney finalmente teve algum amparo? A ausência de respostas não repercute no produto final, mas deixa em suspenso o quão profunda foi a transformação vivida pelos personagens e quais foram as ramificações dos seus impactos. Afinal, como O Telefone Preto deixa claro, ainda que a ideia do crescimento esteja centralizada em um indivíduo, os eventos experienciados por ele podem tocar outras vidas, como é o caso do pai de Finnney, que parece disposto a abandonar o vício e se tornar uma pessoa mais apta a cuidar dele e de Gwendolyn (Madeleine McGraw).

Diante disso, seria impossível não mencionar It: A Coisa (It, 2017) e It: Capítulo 2 (It: Chapter Two, 2019). Os longas estabelecem essa relação de causa e efeito de forma eficiente e respondem o que acontece após o evento transformador, deixando claro se os personagens conseguiram quebrar o ciclo de trauma e abuso ou se alguma coisa persiste e os leva de volta àquele primeiro momento no qual foram crianças pouco protegidas. O mais óbvio quando se pensa essas questões é falar a respeito de Beverly (Sophia Lillis/Jessica Chastain) porque a violência no caso dela é mais tangível. Quando criança, a personagem sofria nas mãos de um pai abusivo. Ainda que as violências físicas nunca sejam explicitadas pelo roteiro de It: A Coisa, tem-se o suficiente para concluir a extensão da violência psicológica e presumir os danos. Então, ao vermos Beverly adulta e presa em um casamento no qual a violência doméstica é uma realidade, percebemos que ela não conseguiu romper o ciclo de abuso mesmo depois de viver o “grande evento transformador” do final do primeiro volume. E isso se torna ainda mais claro quando percebemos que o seu marido e o seu pai a tratam de forma bastante similar e resumem o seu valor à conduta sexual, o que contribui para mantê-la presa à ideia de que ela realmente não merece ser bem tratada — algo que somente desaparece quando ela está acompanhada dos demais Otários, em especial Ben (Jeremy Ray Taylor/Jay Ryan) e Bill (Jaeden Martell/James McAvoy).

A violência não está presente somente na história de Beverly e os demais Otários são marcados por alguma das suas faces. Nesse sentido, é preciso falar a respeito do bullying que Henry (Nicholas Hamilton/Teach Grant) pratica contra todos os membros do grupo. Enquanto Ben sofre pelo seu peso, Richie (Finn Wolfhard/Bill Hader) sofre pela sexualidade e Bill pela gagueira, muito associada à timidez e à culpa pelo sumiço de Georgie (Jackson Robert Scott). E, ainda que exista uma lacuna de 27 anos entre o primeiro encontro dos personagens com Pennywise (Bill Skarsgård) e o seu retorno a Derry para o segundo embate, o trauma permanece num âmbito maior do que o medo de enfrentar novamente um demônio que assume várias formas físicas. Isso pode ser visto especialmente em Bill, cuja gagueira retorna no minuto em que suas lembranças daquele verão se tornam mais fortes, demonstrando que ele ainda não encontrou uma forma de se perdoar pelo desaparecimento do irmão mais novo.

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À medida que o It: Capítulo 2 avança, o que percebemos é que, no fundo, os personagens ainda são as crianças que assistimos na primeira parte. Eles podem ter abandonado Derry e se esquecido temporariamente de tudo o que viveram, mas assim que estes eventos voltam à sua mente, eles estão vulneráveis e as portas se abrem para que eles revivam o trauma com a mesma intensidade. Eles estão de novo no ponto em que não têm força o suficiente para lutar contra um inimigo que se alimenta do medo e opta por sequestrar crianças exatamente pela facilidade de extrair delas essa emoção. Se eles mesmos são novamente crianças ao voltar para casa, como é possível romper o ciclo e se libertar do passado?

O cinema de horror não poderia oferecer uma resposta que fosse definitiva para isso — como nada poderia. Entretanto, a sua visão a respeito da superação é menos pessimista do que se poderia esperar e por mais clichê que possa parecer, a resposta é viver um dia de cada vez. Até que as memórias se desbotem novamente e seja possível não aceitar um casamento violento por não ter conhecido outro tipo de vínculo durante boa parte da vida.

O que faz com que It: A Coisa e It: Capítulo 2 ilustrem tão bem a forma como o cinema de horror lida com o processo de cura é o fato de que eles não tentam atribuir ao evento transformador mais importância do que ele teve. Lutar contra Pennywise e vencer os próprios medos pode ter sido o impulso que os personagens precisavam para deixar Derry e buscar os seus sonhos longe de uma cidade que parecia engolir qualquer perspectiva de futuro para pessoas como eles. Mas vencer o “palhaço dançarino” não é o suficiente para que eles consigam vencer as suas questões. Então, o que ter respostas sobre o que acontece depois do amadurecimento nos mostra é que a cura e a superação são processos internos e batalhas constantes, travadas com um inimigo silencioso e muito mais mortal do que qualquer demônio nas profundezas de uma cidade. Contudo, isso é uma possibilidade desde que os personagens não percam de vista quem são e consigam se perdoar pelo passado.

O coming of age no horror lida com violências sofridas por crianças e adolescentes de uma forma bastante realista, ainda que soe irônico dizer isso a respeito de um gênero que se vale do fantástico para provocar emoções. Essa dose de realidade vem justamente do fato de que não existem subterfúgios: para crescer deve-se transcender o trauma provocado pelo “grande evento transformador” e não entendê-lo como definidor da trajetória, mas sim como uma etapa dolorosa que precisou ser vencida.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!