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A anti-amizade em Yellowjackets, Jovens Bruxas, Possuída e Garota Infernal

Em 2017, a HBO lançou Big Little Lies. Centralizada no suspense em torno de mulheres de uma comunidade rica, a série se constrói — e constrói os laços entre as suas protagonistas — através de idas e vindas temporais. Embora ela nunca esconda que o crime apresentado no primeiro episódio é o que une o grupo de amigas, Big Little Lies intriga porque queremos saber como as coisas chegaram àquele ponto. Especialmente como o vínculo entre as mulheres se tornou o que é em condições tão desfavoráveis. Porque mesmo que algo obscuro seja o elemento de ligação entre as personagens, a amizade feminina é retratada como um espaço de acolhimento, que garante que elas não precisam esconder a sua verdadeira natureza independente dos traumas que carregam.

Em geral, quando as relações desse tipo são objetos de interesse do cinema e da TV, elas são abordadas por esse prisma. Desse modo, é um choque quando somos expostos a programas como Yellowjackets, nos quais as personagens passaram por um trauma juntas, mas são péssimas amigas umas para as outras porque estão envolvidas com questões individuais. Portanto, embora elas também concordem sobre manter em segredo o que aconteceu durante os 19 meses que passaram perdidas após um acidente de avião, elas não estão pensando em proteger-se coletivamente, mas sim em esconder algo que poderia interferir diretamente nas suas realidades do presente. A palavra de ordem continua sendo o instinto de sobrevivência muito mais do que a empatia.

Anti-amizade

O mais fascinante em Yellowjackets é como a brutalidade consegue ultrapassar aquela que vemos em histórias masculinas com um ponto de partida similar. Mas quando o projeto foi anunciado, muitas pessoas se mostraram céticas, visto que faz parte do senso comum a ideia de que mulheres dialogam quando são submetidas a adversidades, de modo que seria impossível reproduzir atos de violência que fossem verdadeiramente impactantes. Entretanto, a showrunner Ashley Lyle estava determinada a dissipar essas críticas construindo uma história que, talvez, seja sobre anti-amizade. O que faz todo sentido quando pensamos a respeito da forma como as mulheres são educadas para rivalizar e ver umas as outras como antagonistas.

O esforço da indústria para desconstruir essa questão é louvável e está presente em produções de 2022, como Pretty Little Liars: Original Sin. Porém, ele não elimina anos de construção social. A rivalidade feminina ensina as mulheres a se compararem umas com as outras de forma que a competição é a única resposta. Isso está ligado à cultura machista na qual estamos inseridos e à forma como ela exige que as mulheres sejam sempre as suas melhores versões para serem levadas a sério. Ainda que essas questões estejam muito ligadas a ambientes de trabalho, é bastante fácil observa-las em outros contextos. Em Yellowjackets, por exemplo, as protagonistas fazem parte de um time de futebol e estão acostumadas a ser vistas como especiais e talentosas. Então, quando um elemento atrapalha o grupo, algumas não têm problemas em prejudicá-lo fisicamente para garantir que continuarão sendo campeãs.

Apesar da violência presente nesse tipo de comportamento, não existe nada em Yellowjackets que seja mais brutal do que a amizade entre Shauna (Sophie Nélisse) e Jackie (Ella Purnell). Ainda na adolescência, as duas são construídas com base em estereótipos: enquanto Shauna é estudiosa e observadora, Jackie é a abelha rainha da escola e a capitã do time. O esperto na série está no fato de que ela não faz o caminho comum e opta por contar a história do ponto de vista da Shauna, algo que acontece em vários outros produtos do mesmo nicho. Na verdade, Shauna é tão perniciosa quanto Jackie e a relação estabelecida entre elas é uma anti-amizade, um contrato entre influenciador e influenciado no qual ambas as partes conhecem bem os termos e aceitam o seu papel — mas não sem o devido ressentimento e as ocasionais traições, o que faz com que seja impossível torcer por qualquer uma das duas quando elas rivalizam diretamente.

O que possibilita a criação de um laço tão nocivo sem que Yellowjackets acabe caindo na misoginia e retratando mulheres como invejosas, é o elemento de horror presente na série. Ele está em todos os detalhes do roteiro, de modo que as alusões ritualísticas acabam sendo o menos assustador. O que realmente causa medo está ligado ao que a série mostra quando mergulha no interior das suas personagens e na forma como elas estão dispostas a qualquer coisa para sobreviver e para fazer aquela nova sociedade funcionar. Afinal, as regras se inverteram consideravelmente e toda a popularidade de Jackie passou a ser inútil. Enquanto isso, Shauna consegue se destacar por ser boa nas tarefas que ajudariam a manter as garotas vivas.

Anti-amizade

É importante pontuar que ainda que Yellowjackets dê um passo adiante no tratamento da anti-amizade, este recurso não é algo novo em produções centralizadas em grupos femininos, especialmente no cinema de horror. Ainda em 1996, o filme Jovens Bruxas fez um trabalho eficiente em ilustrar como os vínculos entre jovens mulheres podem ser um lugar que na mesma medida em que empoderam, geram conflitos ligados à necessidade de estabelecer dominância. Sarah (Robin Tunney) é a última a entrar no coven composto por Nancy (Fairuza Balk), Bonnie (Neve Campbell) e Rochelle (Rachel True). Na verdade, apesar de ser uma bruxa natural, ela não tem ideia de que coisas como as inundações do seu quarto foram geradas por alguma espécie de poder que ela carrega. Ainda fragilizada após uma tentativa de suicídio e um rumor maldoso espalhado na escola, Sarah acaba encontrando nas amigas um lugar seguro e passa a confiar que a magia usada por elas será usada em prol de todas, sem consequências mais graves para o futuro. Entretanto, assim que os interesses da “nova abelha rainha” se chocam com os de Nancy, que ocupava o posto até então, o conflito se torna inevitável.

E se torna inevitável também que o laço comece a ruir. Embora Bonnie e Rochelle ocupem muito mais uma posição de seguidoras, elas acabam tomando o lado de Nancy por medo de perder o que conquistaram através da magia. Então, as três passam a intimidar Sarah e a fazer com que ela duvide da sua sanidade para que ela seja incapaz de reverter tudo o que as quatro fizeram enquanto coven. Assim, em Jovens Bruxas a amizade entre as garotas serve para torná-las mais confiantes e capazes de realizar os próprios desejos, mas não é o suficiente para que os afetos sejam mantidos quando as vontades entram em conflitos porque a própria ideia de rivalidade feminina está ligada à percepção das demais mulheres enquanto uma ameaça. Portanto, resta somente a destruição de uma para que a outra possa triunfar.

Essas questões também podem ser observadas em Possuída. Ginger (Katharine Isabelle) e Bee (Emily Perkins) são duas irmãs que vivem no subúrbio e são vistas como párias pelo restante das pessoas ao seu redor. Isso se deve à sua obsessão pela morte, algo que compartilham devido à sua vontade de escapar do tédio de um local que tem pouco para oferecer a elas. Em uma determinada noite, as duas saem escondidas de casa para assustar uma garota da escola, mas Ginger acaba sendo mordida por um lobisomem, o que dá início a uma mudança no seu comportamento. Se antes as irmãs evitavam ser vistas como objetos de desejo pelos garotos, agora, Ginger se torna consciente dos seus atributos físicos e passa a querer ser notada. Isso acaba criando uma distância entre ela e a tímida Bee, que acaba ficando meio desnorteada. Isso acontece porque o relacionamento entre elas nunca foi de duas iguais, mas sim de influenciador e influenciado, de modo que Bee apenas seguia as ideias da irmã sem muitos questionamentos — inclusive quanto o assunto era a maneira que cada uma tiraria a própria vida quando a hora de tomar essa atitude chegasse.

Conforme Ginger se torna cada vez mais empoderada — e mais violenta — Bee é quem precisa conter os danos causados pela fúria animalesca da irmã. Então, ainda que ela seja menos notada do que nos primeiros momentos do filme, ela não desiste até encontrar uma cura, o que serve para mostrar que mesmo quando poderia ter relativa autonomia por estar afastada da irmã, Bee ainda orbita ao redor dela porque a dominância foi estabelecida com tanto sucesso que ela sequer saberia o que fazer consigo mesma caso esse laço fosse quebrado. Algo similar acontece em uma produção lançada uma década depois, Garota Infernal, que nos apresenta a Jennifer (Megan Fox) e Needy (Amanda Seyfried), duas amigas de infância.

Anti-amizade

Enquanto Jennifer é a líder de torcida desejada por todos os garotos da escola, Needy é uma nerd. Isso é estabelecido pela própria personagem, que é quem narra o filme e diz, ainda nas primeiras cenas, que ninguém consegue compreender porque uma “gata como Jennifer” se associaria a alguém como ela. Needy também é quem nos guia através de todos os acontecimentos que culminaram na sua prisão em um sanatório. E desde os primeiros momentos de Garota Infernal sabemos que foi a amizade com Jennifer que fez com que ela chegasse àquele ponto. É interessante destacar que a todo o momento Needy é avisada por Chip (Johnny Simmons) que ela orbita ao redor da amiga e está constantemente fazendo coisas que não gostaria somente para agradá-la, mas Needy ignora esses alertas por acreditar que o laço entre as duas é genuíno. Inclusive, existem especulações sobre a suposta bissexualidade das personagens, algo que serviria para manter Needy ainda mais encantada e refém de Jennifer.

Assim, uma das coisas mais acertadas em Garota Infernal é a sua frase de abertura: “o inferno é uma garota adolescente”. Se pensarmos na ideia de inferno como um espaço no qual as pessoas sofrem com penas eternas pelo seu comportamento, a frase passa a se aplicar a todos os vínculos comentados. De alguma forma, todas as personagens pagaram pelas suas anti-amizades. O mais óbvio é falar a respeito de Needy, que passa a ser percebida como uma criminosa perigosa após o confronto final com Jennifer. Porém, o mesmo se aplica a Nancy, que perde o embate para Sarah e acaba internada em uma instituição psiquiátrica; e a Bee, que precisa fazer a única coisa que não gostaria para parar Ginger e o seu rastro de destruição.

Dessa forma, a visão que o cinema de horror tem da amizade feminina é menos acolhedora e mais pautada por uma dinâmica que as próprias mulheres se apressam em negar. Talvez na vida adulta seja mais fácil se distanciar dessa competitividade e perceber as amizades femininas de uma forma menos danosa, mas durante a adolescência esses vínculos podem ser bastante destrutivos porque algumas noções, como a sororidade, ainda estão sendo construídas. Além disso, essa é uma fase da vida marcada pela autoafirmação e pela necessidade de encontrar o seu lugar no mundo, de modo que a vilania das garotas adolescentes encontra respaldo na própria ideia de que elas precisam desde já aprender a estabelecer limites e a se impor para não ser engolidas pelo mundo ao redor. Embora exista espaço no horror para produtos que caminham na contramão — como Jovens Bruxas: Nova Irmandade —, deixar de discutir uma determinada temática não faz com que ela desapareça e, infelizmente, as anti-amizades estão em todo lugar. Basta uma análise rápida do seu círculo social para perceber que, em algum nível, você alimenta uma.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!