“Life is sometimes amazingly fragile, but some lives are frighteningly strong” — Shin Kyung-sook, Please Look After Mom
A forma de escrita não usual do romance Please Look After Mom (2008), da sul-coreana Shin Kyung-sook, transmitida por meio de capítulos que alternam pontos de vista, já me tinha sido apresentada de maneira similar por A Vegetariana, de Han Kang. Ainda assim, o suspense de um enredo nada enigmático que, apesar disso, não parece ter solução nesta vida, também me incluiu, desta vez, como personagem entre os filhos perdidos de uma mãe desaparecida.
Essa intimidade visceral, como se dividíssemos a mesma coberta, amontoados numa noite fria em que o pai ainda não voltou para casa ou tivesse eu também um pote cheio de arroz à mesa rodeada de panchans — acompanhamentos ao prato principal, sempre presentes nas refeições coreanas — é forçada pelo uso da segunda pessoa no primeiro e no último capítulos.
Você é nossa irmão mais velha, Chi-hon, escrevendo um anúncio para encontrar Mamãe que, aos 69 anos, se perdeu na estação mais movimentada de Seul ao vir nos visitar para comemorar o aniversário dela — quando é mesmo? — junto ao aniversário do pai, para economizar tempo. Ele andou na frente e a deixou para trás, como fez por mais de 50 anos, mesmo que ela pedisse, por mais de 50 anos, para que ele andasse mais devagar e a acompanhasse.
“A Mãe sabe como fazer uma simples ligação”, comenta a nora. “Ela poderia ter ligado de um telefone público.” Mas a Mãe não era mais a antiga Mãe quando desapareceu.
Quando foi que Mamãe, que vivia na cozinha para nos alimentar e gelava a alma quando o pote de arroz começava a ficar vazio, se tornou uma estranha para nós? Quando descobrimos que ela não sabia ler? Quando percebemos que sequer sabíamos se ela gostava de estar na cozinha? Quando percebemos que ela estava doente e chegava a paralisar-se no meio da casa e das tarefas que fazia por conta da dor que partia ao meio a cabeça e a ponte do nariz? Por que obedecemos ao desejo dela de não a levar ao hospital, quando não obedecíamos nem um ao outro? E será que ela usava sandálias de plástico beges ou azuis quando saiu andando pela estação de Seul à procura de algo? Pelo que será que ela procurava?
Ainda assim, nunca deixamos de chamá-la Mamãe, durante todo o livro, quase como esperança de que, sendo Mamãe sempre forte e saudável, sem medo de nada, estará Mamãe sempre bem, independente de onde esteja.
“A palavra ‘Mamãe’ é familiar e esconde em si uma súplica: por favor, cuide de mim. Por favor, pare de gritar comigo e bater na minha cabeça; por favor, fique ao meu lado, esteja eu certa ou errada.”
Não é só Park So-nyo que sofre, desde quando se casou, antes da primeira menstruação, até quando desapareceu, aos 69 anos, com obrigações que o peso da palavra “mãe” imprime sobre mulheres coreanas de uma geração pós-guerra — “é algo que não se pode evitar” —, que viveram assombradas pelo medo de serem sequestradas e aterrorizadas pela possibilidade de que os próprios filhos sofressem também com as ausências que preencheram todas as vidas delas. A mãe de Mamãe — que trabalhava arduamente no campo como ela —, a irmã de Mamãe — que morreu sem nunca ter feito sequer um check-up médico em vida —, a cunhada de Mamãe — que, mesmo viúva em sem filhos, teve de ser mãe do irmão, por isso foi mais sogra de Mamãe do que cunhada. Todas elas são desenhadas por Kyung-sook nesse espectro angustiante e quase desesperador a que são designadas assim que se casam.
“Para você, a Mamãe sempre foi a Mamãe. Nunca passou pela sua cabeça que ela um dia deu o primeiro passo dela, ou que já teve três ou 12 ou 20 anos de idade. A Mamãe era a Mamãe. Ela nasceu Mamãe.”
Porque Chi-hon, mesmo aos trinta anos e com namorado, ainda não se casou? E por que Mamãe ficou tão triste quando a filha mais nova decidiu ter filhos?
Park So-nyo não foi para a escola, mas tinha pavor de pensar que o idolatrado primogênito Hyong-chol não pudesse cumprir a promessa que fez a ela de ser promotor, ou que a teimosa Chi-hon não pudesse fazer o ensino fundamental. Mesmo que Mamãe nunca tivesse aprendido a ler ou escrever, fez o possível para que uma das filhas se tornasse uma célebre escritora. “Ela é uma garota, tem que ter mais escolarização”, explicou ao irmão mais velho quando deixou Chi-hon em Seul aos cuidados dele para estudar. “Não posso deixar que ela viva como eu.”
Quando a filha mais nova decidiu ter filhos, são notáveis a decepção e o medo de Mamãe; medo de que a vida dela se repetisse na da filha de quem via tanto futuro — talvez até o futuro que quisesse hipoteticamente para si. Ela foi a única que Mamãe teve coragem de levar ela mesma ao primeiro dia de aula, pois ela mesma, pela primeira vez, pôde, com a própria mão, escrever o nome da criança — “as primeiras letras que eu escrevi”. Ainda assim, essa criança, que libertou a mãe do arrependimento e da culpa de não poder dar aos outros filhos o que pôde dar a ela, e por meio do qual Mamãe pôde finalmente viver experiências que nunca tinha vivido — “aprendi por meio de você que havia filmes e música neste mundo” —, voltou dos Estados Unidos com três outras crianças nos braços. “Eu não queria te ver vivendo daquele jeito, sendo que você teve uma boa educação e tinha um talento que outros invejavam”, confessa. Quase como uma súplica, era como se Mamãe gritasse por entre palavras sutis: por que você decidiu ser igual a mim quando teve a oportunidade de ser qualquer outra coisa? “Às vezes eu ficava com raiva da escolha que você fez”, porque eu — diria ela — não tive nenhuma outra opção.
Depois de tudo que Mamãe fez, porém, em vez de agradecimento, há silêncio. “Era difícil conversar com ela sobre a sua vida, que não tinha nada a ver com a dela.” Será que estamos sendo punidos com o sumiço dela? Por todas as vezes que não demos a mínima, por todas as promessas feitas e não cumpridas, pelos planos não feitos, os sonhos dela que não pudemos realizar, todo amor e carinho não correspondidos à altura inalcançável?
Várias pessoas ligaram no número do anúncio para informar que haviam visto uma senhor de sandálias de plástico azuis e olhos como de vaca vagando por lixeiras em vizinhanças em que os filhos haviam morado anos atrás. Será que é apenas a um animal que podem comparar uma mulher forte e dócil que viveu a vida inteira em função da prole? E não eram beges as sandálias de plástico que ela usava?
Shin Kyung-sook fecha a narrativa desesperada e angustiante dos três primeiros capítulos, na perspectiva de filhos e maridos perdidos, com a calma carta falada de uma mãe recém letrada que, desaparecida, finalmente busca por paz. “Será que esses acontecimentos se infiltraram numa página do passado e nos trouxeram todo o caminho até aqui?”, é uma citação que resume a enxurrada de pensamentos e perguntas que atingem o leitor, também filho e irmão, após a leitura do romance, que termina bem como começou. No epílogo, você, Chi-hon, deve atender ao pedido que o pai ousou pronunciar em voz alta, ecoando as súplicas silenciosas de todos nós e as transformando em oração a um ser superior: por favor, cuide da mamãe.
Ela conseguiu, afinal. Mamãe conseguiu libertar a todos nós da vida de sacrifícios que ela amaciou com pés feridos até o osso pelas sandálias de plástico para que pudéssemos caminhar tranquilos e descalços — inclusive a filha que ela achou, com raiva, que se tornaria como ela; os tempos mudaram, “se eu não consigo viver como a Mamãe, como ela pode ter querido viver daquele jeito?”.
Não fizemos o menor esforço para te entender durante todo esse tempo, Mamãe, mas você conseguiu mais uma vez fazer algo por nós, mesmo que tenhamos feito tão pouco por você: agora te entendemos.
“Ela tira as sandálias de plástico azuis dos meus pés e os coloca sobre o colo dela. Mamãe não sorri. Ela não chora. Será que Mamãe sabia? Que eu também precisei dela minha vida inteira?”
Lara Perpétuo é jornalista pela Universidade de Brasília, passou um semestre estudando jornalismo e literatura em Seul. Escrevendo, tenta alimentar uma vontade insaciável de entender coisas e culturas. YouTube | Instagram