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The Flight Attendant: o trauma como catalisador para o surrealismo

Depois de 13 anos vivendo Penny na sitcom The Big Bang Theory, Kaley Cuoco passou a dublar Harley Quinn na nova animação da anti-heroína e, portanto, se tornou o rosto — e, nesse caso, a voz — de mais uma personagem marcante da cultura pop. Se sua protagonista na sua primeira série sempre foi meio unidimensional e não teve o melhor dos desenvolvimentos, com Harley ela teve a oportunidade de explorar uma figura mais complexa e ambígua do que anteriormente. Sendo por causa do roteiro do seu primeiro grande papel ou pelo fato de que ela empresta apenas sua voz para o segundo, a atriz raramente teve oportunidade de mostrar o quanto poderia se destacar. Com The Flight Attendant, no entanto, esse status foi radicalmente mudado.

Atenção: este texto contém spoilers

Uma das apostas da HBO Max, streaming que chega ao Brasil em meados de junho, a série acompanha Cassie Bowden (Cuoco) uma aeromoça que tem uma vida que, quando não chega a ser glamorosa, é no mínimo agitada. Logo no começo do primeiro episódio, ela é convidada para sair por Alex (Michiel Huisman), que está no seu voo até Bangkok. Mesmo sabendo que vai contra as regras da companhia em que trabalha sair com um dos seus passageiros, Cassie não é exatamente uma pessoa que atrela as mesmas com vigor. Apesar de ter um trabalho e uma vida razoavelmente funcional, logo fica claro que ela é, na verdade, alcoólatra e que muitas das suas ações impulsivas são ditadas por esse fator. De qualquer forma, ela aceita sair com Alex e os próximos momentos do capítulo são uma bela sequência onde ambos parecem estar se divertindo como nunca, esbanjando dinheiro e paixão. Até o momento em que Cassie acorda e encontra Alex morto ao seu lado.

The Flight Attendant

A série inteira é contada pelo ponto de vista de Cassie, que após ficar completamente bêbada não consegue lembrar de absolutamente nada do que aconteceu na noite anterior. Seu problema com bebidas faz com que ela se torne uma personagem com um ponto de vista não muito confiável e uma narradora instável. Apesar de logo no início deixar claro que não tem o impulso de matar e muito menos o motivo para tê-lo feito, o objetivo principal do roteiro é explorar exatamente até que ponto o ser humano, levado ao limite, consegue fazer para se proteger. E o quanto ele consegue esconder suas decisões e traumas de si mesmo. E Cassie é, acima de tudo, excelente em camuflar os próprios sentimentos e problemas.

Ao acordar e não saber direito o que aconteceu, o próprio público também não tem qualquer resposta ou dicas do que aconteceu. Cassie questiona se foi ela que o assassinou, assim como nós. Ainda que com dúvidas e prestes a entrar em colapso, a protagonista decide reconstruir os seus passos e tentar entender o que aconteceu naquela noite. E para isso ela conta com a ajuda do próprio Alex. Toda vez que ela chega perto de algo traumático que aconteceu naquela noite, ou até mesmo quando é questionada sobre sua infância, é sugada para um plano surrealista, um limbo entre a vida e a morte, onde Alex é seu companheiro detetive e tenta ajudá-la na hora de reconstruir não apenas os seus passos, mas também oferecer um pouco de perspectiva na sua própria vida: quem ele era, o que ele gostava de ler, fazer, qual era sua profissão e quem eram seus pais.

The Flight Attendant é uma série extremamente dinâmica. Criada por Ryan Jennifer e Steve Yockey e baseada no thriller homônimo de Chris Bohjalian, existem pitadas de uma trama noir embutidos na narrativa, que tem uma trilha sonora marcante e incisiva de jazz e constantemente constrói uma fotografia que remete às produções mais assíduas de investigações, com frames rápidos e frenéticos de Cassie. O humor e o drama andam lado a lado constantemente e o timing e a química entre os atores faz com que tudo isso funcione de forma orgânica e natural, criando um entretenimento que é ao mesmo tempo fácil e divertido de assistir — mesmo que seja sangrento e, eventualmente, passe a tratar de assuntos complicados. Mas o mais interessante da produção em si é o fato de que Cassie é uma protagonista fora do comum dentro do seu próprio escopo.

The Flight Attendant

Cassie não cai simplesmente no mistério da morte de Alex e passa a resolvê-lo porque se sente motivada a fazer o que é certo, montando todas as pistas que encontra de forma brilhante e metódica, como na maioria das produções onde uma pessoa comum esbarra em um mistério. Aqui é justamente o oposto. Quando a protagonista decide investigar o que aconteceu por conta própria é apenas porque ela está com medo do que vem a seguir. Medo das consequências e do que ela pode ou não ter feito. Assim como todo o resto da vida de Cassie, sua investigação é basicamente uma  bagunça e ela deixa um rastro de caos e confusão em seu encalço.

A morte de Alex é parte considerável da trama, mas o mais interessante de acompanhar é a forma como a protagonista acaba tendo que enfrentar seus próprios demônios para conseguir resolver o que está na sua frente. Quanto mais ela bebe, surta e vai parar no limbo junto com Alex, mais ela tem que olhar para o seu passado e entender o que aconteceu com o seu pai e seu irmão na época. Esse último, seu irmão Davey (vivido por T.R. Knight, o George O’Malley de Grey’s Anatomy), e a própria Cassie tem um relacionamento complicado. Ainda pequeno, Davey era maltratado e subjugado pelo pai alcoólatra, que ao mesmo tempo levava Cassie, ainda criança, para beber com ele. Em vez de fazer alguma coisa para parar as ofensas do pai em relação a Davey, Cassie, com uma carência que precisava ser suprida e satisfeita com a atenção total de um dos pais, sempre acatava as maldades do pai e bebia com ele constantemente — um hábito que com certeza influenciou na forma como ela mesma lida com a bebida nos seus dias como adulta. É enquanto eles estão bebendo juntos no carro, que Cassie presencia seu pai se envolver em um acidente de carro e morrer.

O conflito que nasceu quando eles ainda eram pequenos, evolui e se torna algo mais complicado de se lidar. Mágoa, culpa e afastamento são apenas alguns dos sintomas que existem na dinâmica, enquanto Cassie parece suprimir essas lembranças e faz com que Davey se mantenha sempre em alerta com a irmã, sempre com um pé atrás. Mas a questão ali é que o verdadeiro culpado da história foi, e sempre será, o pai de ambos. A manipulação que ele exercia sobre os filhos eram bem diferentes entre si, mas ainda sim era prejudicial e acabou levando Cassie em um caminho quase sem volta. Ela é, afinal, uma mulher alcoólatra, que tem dificuldade para enfrentar seus sentimentos e com uma forte tendência a deixar de lado tudo aquilo que entra em conflito com a bolha que criou para si mesma. A presença de Alex ao seu lado, ainda que não passe de uma forma de escape e uma fuga para quando ela não consegue lidar com a vida real, faz com que ela tenha que sair da sua zona de conforto e algo genuíno (e meio esquisito) nasce da relação, enquanto ela tenta descobrir o aconteceu com ele naquele quarto de hotel, e ele tenta fazê-la enfrentar de uma vez por toda os problemas da sua infância.

The Flight Attendant

Existe quase a mesma quantidade de culpa no sistema de Cassie quanto se tem álcool. Apesar de estar constantemente ignorando suas motivações e o que está por trás da sua bebedeira e negação, a protagonista, de forma quase inconsciente, guarda todas as suas más decisões em si, para depois usá-las como desculpa e se afundar ainda mais no seu ciclo de abuso pessoal. Apesar do roteiro ter total consciência de que a protagonista é um poço de más escolhas, que acabam mais de uma vez prejudicando as pessoas ao seu redor, ele entende também que Cassie é uma vítima, e sua jornada é mais do que apenas entender seus sentimentos: é também sobre perdoar a si mesma, não apenas pela forma como ela tratou os outros, como também pela morte do pai, do qual ela sempre se culpou. Por sorte, Davey, apesar de ainda ter mágoa em relação à irmã, entende que foi negligenciada perante o pai, e parece disposto a consertar as coisas, seguir em frente.

“Crianças crescem e viram adultos capazes de fazer suas próprias escolhas, seus próprios erros. Imagina que triste se todos eles tivessem que repetir os nossos erros? Ninguém tem o espaço para carregar os erros alheios.” 

Anteriormente no texto, mencionei que a série é fácil e divertida de assistir, misturando elementos dramáticos com cômicos em quase todos os episódios. Apesar de isso ser real, não quer dizer que o roteiro em si faça piadas com o alcoolismo de Cassie. Sua bebedeira e sua doença não são pretexto para comédia, sendo que os momentos engraçados vêm do absurdo das situações em si, e não o contrário. É importante ressaltar, nesse caso, a atuação da própria Cuoco. Além de interpretar a protagonista, a atriz faz parte do time de produção, e entrega um desempenho genuíno ao mostrar uma mulher que se perde no próprio destino. Seu timing cômico é maravilhoso, como ela já tinha provado antes, mas seus momentos dramáticos são igualmente impactantes e válidos, criando um peso emocional sério para as cenas que as requerem.

Apesar de nunca ter lido o livro, sei que muitas coisas saíram diferentes na adaptação. Uma delas é o fato de que, na história original, Cassie resolve parar de beber porque acaba grávida. O que aqui não é o caso. Durante toda a primeira temporada, os escritores contam a história dessa mulher que precisa recuperar o amor próprio para conseguir seguir em frente. E nada mais justo do que ela conseguir fazer isso sozinha, ao invés de ter sua decisão apoiada pela maternidade. No final, parece uma decisão pertinente e que bate perfeitamente com o que foi apresentado ao longo dos oito episódios da série.

Apesar do drama de Cassie ser o centro de toda a narrativa, as outras personagens femininas também são dignas de atenção e todas são construídas com suas complexidades e defeitos. A amiga advogada de Cassie, Annie (Zosia Mamet), passa por uma pequena revolução dentro da série. Apesar de ser diferente e muito mais responsável do que Cassie em todos os aspectos, sua lealdade à amiga acaba custando certos preços na sua vida, como sua carreira. Ao mesmo tempo, ela aprende mais sobre seus sentimentos afetivos na vida amorosa. Apesar da personagem ainda não ter todo o desenvolvimento que merece, sua amizade com Cassie e seus altos e baixos são interessante de acompanhar, assim como seu conflito como advogada; Miranda, vivida por Michelle Gomez, também é destaque, e vive uma assassina que, de certa forma, acaba se apegando a Cassie e ajudando-a com o mistério da morte de Alex; e, por fim, até mesmo a detetive Kim (Merle Dandridge), que aparece pouco dentro do escopo da história, tem seus momentos interessantes e manda um outro colega homem ficar quieto e prestar mais atenção.

The Flight Attendant

Nenhuma das personagens coadjuvantes, no entanto, é tão interessante quanto Megan. Depois de fazer a detetive Renee Montoya em Aves de Rapina, a atriz Rosie Perez vive uma aeromoça pacata e esquecida pelos colegas de trabalho e pela própria família. Procurando se sentir viva, Megan acaba sendo recrutada pelo governo da Coreia do Norte para fazer espionagem. A trama é uma das coisas mais absurdas da série e corre em paralelo de forma sútil com tudo que acontece com Cassie. Mas, de certa forma, as escolhas de Megan também não nasceram do trauma de ser esquecida, subestimada e negligenciada pelas pessoas ao seu redor?

Recentemente, o novo filme da Mulher-Maravilha introduziu uma história parecida. No caso, a vilã, a Mulher-Leopardo (Kristen Wiig), se sente muito como Megan e, quando recebe alguns dos poderes de Diana, se torna ambiciosa demais e sedenta pelo poder de ser reconhecida. O longa inteiro é um desastre, mas um dos maiores problemas com certeza é a forma como essa trama foi tratada: um clichê mal feito que desfavorece não apenas a personagem em si, mas a própria protagonista. Quando vi a trama de Megan sendo construída, pensei imediatamente no desastre do filme. Mas tudo que foi feito de errado em Mulher-Maravilha, os roteiristas de The Flight Attendant conseguiram acertar no caso de Megan, que é uma personagem construída de forma tímida, sua solidão sendo explorada aos poucos e também as consequências da mesma. Como resultado, Perez entrega uma personagem que é mais complexa do que uma vilã caricata e de quebra ainda deixa pontas para serem amarradas na segunda temporada — que provavelmente abordará sua trajetória com a calma que merece.

Uma segunda temporada já foi confirmada e provavelmente vai mesmo seguir com a narrativa de Megan, explorando um pouco mais sua traição e suas consequências, assim como pretende estudar a recém sobriedade de Cassie, e como ela lida com isso. Em uma série como The Flight Attendant, ninguém é o que realmente parece ser. Todos os personagens têm suas motivações e cada uma das tramas, por mais insignificantes que pareçam na hora, têm um espaço considerável no resultado final. Veja, por exemplo, o fato de que Shane (Griffin Matthews), o amigo de Cassie, é, no final, um agente da CIA infiltrado, sendo que a narrativa dá pequenas dicas disso ao longo dos episódios. Com isso, a experiência de ver a série é como andar em uma montanha-russa: você nunca sabe exatamente o que vai acontecer, mas fica ansioso para descobrir. Os personagens são interessantes e toda viagem para dentro do subconsciente de Cassie é surrealista e divertido, mesmo que sua jornada em si seja dolorosa de acompanhar.

2 comentários

  1. Li a resenha meio que pulando pois baixei alguns livros, HQs, e estou revendo House of Cards.
    Sua resenha, de verdade, instigou minha vontade; muito bem feita e clara, honesta e interessante.
    E, sendo sincero, vc é bonita.
    Obrigado, um abraço, e parabéns!

    (Vou indicar o site para conhecidas(os), e colocá-lo na minha página no Face.)

    1. “Li a resenha meio que pulando pois baixei alguns livros, HQs, e estou revendo House of Cards”, por isso não irei assistir esta série agora.

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