Nos últimos tempos — não totalmente por livre e espontânea vontade, mas porque assim é a vida no relacionamento hétero — eu assisti dezenas de horas de roteiros escritos por Aaron Sorkin. O bom (The West Wing, A Rede Social), o ruim (The West Wing, Molly’s Game) e todo o resto ali no meio (The West Wing, A Few Good Men). Ele era no início dessa jornada, e segue sendo, um roteirista que por vezes me encanta e move as coisas que me são mais caras e por vezes me enfurece a ponto de querer proibir todos os homens de um dia escrever uma personagem feminina de novo — e parece igualmente significativo que eu consiga viver esses dois extremos dentro de uma meia dúzia de episódios de The West Wing ou só passando da primeira para a segunda temporada de The Newsroom.
Me encantam os diálogos, a rapidez, a ironia, a sensibilidade marcadamente judaica e a crença de que inteligência é talvez o atributo mais importante para se fazer a diferença no mundo. Me enfurece a condescendência, a superioridade moral, o esquerdomachismo e a ingenuidade de achar que inteligência pode fazer a diferença no mundo. O fato de que ambos esses lados se combinam em um resultado satisfatório em Os Sete de Chicago é mérito menos do roteiro em si e mais da sabedoria com que ele escolhe seu tema: a militância de esquerda, tão encantadora e irritante quanto ele próprio.
O filme é seu segundo como diretor e acompanha o julgamento de sete líderes de organizações da sociedade civil após manifestações pelo fim da guerra do Vietnã acabarem em “tumultos”, como gosta de chamar a polícia. É uma obra elegante, constrita, clássica em sua linguagem (para o bem e para o mal) e que marca um amadurecimento vertiginoso de Sorkin como diretor. Sua primeira tentativa, Molly’s Game, fazia parecer que ele tinha acordado certa manhã de sonhos intranquilos e se visto metamorfoseado em um monstruoso Adam McKay depois de cinco noites de cocaína. O filme tenta ser todas as coisas e refletir na linguagem a velocidade com que falam os personagens de Sorkin e não é preciso dizer que não funciona, exatamente.
Aqui ele reserva as pirotecnias para o roteiro e para Sacha Baron-Cohen. As escolhas de direção e cinematografia são, com a notável exceção da cena em que a “grande revelação” acontece, transparentes, imperceptíveis. O tribunal é também a casa de Sorkin, seu cenário por excelência e o ambiente que torna mais plausível seus dois temas verdadeiros: disputas verbais entre homens inteligentes e conflitos entre a realidade e os princípios morais de seus personagens. Entre as coisas que eu admiro em Sorkin é ele ser meu tipo preferido de autor: o homem obcecado, aquele que em obra após obra revira as mesmas questões em busca de alguma resposta.
Sorkin quer saber qual é o limite moral de um homem, quando aquilo em que ele acredita pode ser deixado de lado por considerações práticas. Quando o idealismo político vira realpolitik. Em Os Sete de Chicago essa questão se condensa na disputa entre dois dos sete: Tom Hayden (Eddie Redmayne) e Abbie Hoffman (Sacha Baron-Cohen).
Hayden era o líder da organização Estudantes por uma Sociedade Democrática, um dos principais atores da Nova Esquerda americana. A organização era social democrata, anti hierárquica e se denominava um “exercício em democracia participativa”. Antes dos protestos contra a guerra do Vietnã, o SDS (sigla da organização em inglês) havia participado em protestos pacíficos pelo fim da segregação e os direitos civis dos negros no sul dos Estados Unidos. Depois de seus anos como ativista, Hayden se tornou político profissional (e, não menos importante, marido de Jane Fonda).
Abbie Hoffman, por outro lado, era o fundador do Partido Internacional da Juventude, uma organização revolucionária e radical de orientação anarquista. Hoffman em si era um marxista e defensor de resistências armadas, como as diversas guerrilhas de esquerda que surgiram na América Latina ao longo dos anos 1960 e 1970. Ele foi um ativista externo à política organizada por toda a vida, até sua morte por overdose no final dos anos 1980.
Hoffman é, em diversos sentidos, o marco zero desse filme. Entre suas táticas políticas estavam um uso estratégico da teatralidade como forma de subversão da lógica hierárquica e seus stand-ups servem como uma espécie de narração em off e quadro formal para o filme: a piada sem punchline, o riso que ao mesmo tempo diz o quão absurdamente engraçado tudo deveria ser e o quão sombrio é. Hoffman é um dos principais nomes da esquerda judaica e seu uso do humor responde a uma tradição centenária de judeus que usaram piadas tragicômicas como desarme para a opressão. Uma tradição da qual o mais notável membro contemporâneo é Sacha Baron-Cohen.
Muitos anos antes de Os Sete de Chicago ganhar seu diretor e roteirista, quando o projeto flutuava por Hollywood, Baron-Cohen já havia demonstrado interesse em interpretar Abbie Hoffman, que ele estudou em seu trabalho de graduação na Universidade de Cambridge. Baron-Cohen é, em sua política e estratégias, um herdeiro direto de Hoffman e sua presença no filme ao mesmo tempo é a espinha dorsal que o sustenta internamente e o dedo em riste que aponta para fora. Os Sete de Chicago chegou a Netflix com semanas de diferença de Fita de Cinema Subseguinte de Borat e é impossível não tomar os dois filmes como um conjunto.
Baron-Cohen e Hoffman são personagens que enxergam as instituições da política como inerentemente ridículas e corruptas, símbolos de um poder artificial atribuído pela hierarquia histórica e vantagem econômica. Hayden e também Sorkin (alguém que afinal escreveu cinco temporadas sobre a Casa Branca) são reverentes às instituições, homens que acreditam que elas podem ser boas se comandadas por homens inteligentes e íntegros. É, portanto, curioso, e talvez testemunho do magnetismo de Hoffman e seu ator, que Os Sete de Chicago pareça ser mais simpático a ele que ao reformista Hayden.
Os dois discordam sobre a utilidade do julgamento — Hayden teme por seu futuro, Hoffman, descrente de qualquer justiça, quer transformá-lo em palco — e mesmo de seu ativismo — Hayden quer acabar com a guerra, Hoffman no geral só quer colocar fogo nas coisas. No entanto, é Hoffman o idealista e a gravidade de uma história de superioridade moral atrai Sorkin mais que suas próprias opiniões políticas. Embora ele dê o grande gesto final, mais uma de suas marcas, a Hayden, a futilidade do ato (a guerra não acaba por causa desse julgamento) empurra a balança para o lado do revolucionário. Não há saída jogando pelas regras.
O compromisso feito por Tom Hayden também aponta o ponteiro para Hoffman: é precisamente a teatralidade que ele explora ao conduzir o protesto e o confronto com a política. Que a política seja um jogo de propaganda e não de ideais é sabido há muito tempo pelo diretor, mas aqui é a primeira vez em que essa escolha é encarada de frente, sem culpas ou torturas, sem desejo de que o mundo fosse outro.
Ao final, o protagonismo de Hoffman é a maior força de Os Sete de Chicago e também onde aparecem seus limites. Baron-Cohen (e Jeremy Strong como seu fiel escudeiro) rouba a cena de tal forma que fica o gosto do filme melhor que poderia ter sido se ele fosse mais co-autor, ou mesmo o autor por completo. A reverência de Sorkin às instituições vai bem em termos de linguagem, a estrutra contida do filme é sua melhor escolha (talvez por ser um contraste tão maravilhoso à anarquia de Baron-Cohen), mas limita suas reflexões e seu tema. A política de todos os personagens é movida um pouco menos para a esquerda, provavelmente para tornar a história palatável ao público americano, e um evento central na constituição da esquerda socialista e comunista dos anos 70 se torna uma parábola sobre a alma dos Estados Unidos. Não que essa não seja uma reflexão válida em um filme lançado pouco antes de uma eleição que poderia ter dado outra vitória Donald Trump e sem dúvida parece a Sorkin algo mais urgente que debates entre anarquismo e social-democracia.
O problema é que seu protagonista não declarado é maior que a forma pequena que lhe foi dada. Ao final, Os Sete de Chicago é um filme bem articulado, construído com eficiência e que demonstra amadurecimento do seu autor em relação aos seus limites, inclusive temáticos. É notável da parte de Sorkin introduzir a história de Bobby Seale, presidente do Partido dos Panteras Negras também acusado, e então deixá-la de lado. Muitos de seus erros do passado vêm de tentar aplicar seus julgamentos morais a experiências que ele não pode avaliar e aqui, de forma mais uma vez elegante, ele se retira e deixa essa história para ser narrada em outras obras, por exemplo o excelente Judas e o Messias Negro, de Shaka King.
Há outras histórias aqui, que fosse Sorkin um homem diferente, teriam mais ar. Mas ele não é. E Os Sete de Chicago é mais do que tudo um exercício de autoria, no sentido definido por Truffaut, e nisso ele é bem sucedido. Sorkin é mais do que um roteirista, ele é um autor e seu filme é só seu, formal e tematicamente. Encontrar esse tipo de coerência artística é mérito suficiente.
Os Sete de Chicago recebeu 6 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante (Sacha Baron Cohen), Melhor Roteiro Original, Melhor Canção Original (“Hear My Voice”), Melhor Fotografia e Melhor Montagem.