Categorias: LITERATURA

As investigações e registros de Thaís Campolina

O Dicionário Oxford explica que a palavra investigar é um verbo transitivo direto que significa “seguir os vestígios, as pistas de”. O dicionário ainda registra que o verbo é sinônimo de “fazer diligências para descobrir (algo); inquirir, indagar”, e também, “procurar metódica e conscientemente descobrir (algo), através de exame e observação minuciosos; pesquisar”. Eu Investigo Qualquer Coisa Sem Registro, de Thaís Campolina, é um livro de poesias que se propõe a, de fato, investigar — em todos os sentidos que a palavra pode sugerir — o que passa despercebido no cotidiano. Na capa, vemos a imagem de janelas, portas e sacadas como numa fotografia e, sobre ela, rabiscos sugerindo anotações resultantes de um olhar minucioso, como os registros de uma investigação.

O livro, publicado pela Crivo Editorial e também disponível em versão audiobook, é dividido em quatro partes. Cada uma das quatro divisões traz poemas que carregam em si considerações sobre o cenário, as testemunhas, a autoria, o tempo e as ações que podem ficar sem registro no dia a dia. O compromisso da poeta se mostra na epígrafe de Helena Zelic “duzentos milhões de museus da desimportância”. Abrir Eu Investigo Qualquer Coisa Sem Registro é como entrar em um destes museus, que Thaís ergue com suas palavras para também registrar o que não é investigado. Registrar as desimportâncias não as tornam oficiais, portanto tudo o que a autora escreve nestas páginas remete ao sentido original da palavra em latim e torna cada divisão e poesia uma parte do “livro onde se anotam as atas”, ou seja, um registro.

Talvez, por se propor a registrar o cotidiano e investigar o não registrado, a linguagem tenha mais a função de simplificar, e acaba não parecendo elaborada, embora o seja de forma bem sutil. Com esta proposta, que torna a ideia de registro ainda mais forte, a poesia mostra o puro e simples cotidiano, descrito com as palavras que usamos para falar do que acontece e passa batido pela vida — mesmo que nem sempre seja algo para ignorarmos, como sugere uma das citações que abre o livro. Nas palavras de Aline Valek, se acostumar é não conseguir mais diferenciar as tragédias dos dias normais.

Eu Investigo Qualquer Coisa Sem Registro

A primeira parte do livro, denominada Cenário, traz poesias curtas, que exploram as particularidades de alguns ambientes distintos. Conterrâneos da autora podem encontrar vestígios de Minas Gerais em cada jogo de palavras e em cada paisagem enunciada nos poemas. Mesmo aqueles que não carregam a dor e a delícia de ser mineiros, podem se encontrar nos arredores das casas e vizinhanças fotografadas poeticamente — ora lembrando algo de rural, ora com um ritmo mais urbano e ora contendo elementos de ambos os locais.

Porém, muito além destes lugares, Thaís segue cumprindo sua proposta de olhar e escrever também sobre os não-lugares, as coisas sem registro que são retratadas em “Entre Territórios e Transilvânia”. Outro recurso para iluminar os cenários é usar também da primeira pessoa ou um eu-lírico não muito definido para que os lugares e objetos estudados poeticamente falem por si. “Bem Vindo ao Palacete”, “Downtown”, “Colchão Box” e “Filtro de Barro” são alguns destes poemas que fazem com que a fronteira entre os objetos do cenário e a humanidade sejam demarcadas com poesia — que não é uma fronteira rígida, e, na verdade, deixa passar para um lado e outro características dos dois lados: o humano e o material se misturam. Portanto, não é difícil se identificar com algumas das qualidades que os objetos ganham — bem humanas. A leitura pode se enriquecer quando questionamos: somos nós que vemos humanidade nos objetos ou nós somos mesmo um pouco colchão box, ou um edifício antigo de downtown?

Testemunhas, a segunda divisão do livro, direciona um olhar atento aos seres às margens desse cenário, que testemunham silenciosamente o que acontece. Os animais — especialmente os domésticos — recebem um olhar carinhoso e gentil, e mesmo aqueles que morrem — como o piolho de cobra de “Pequena Eva” — têm sua passagem pelo cenário registrada. Não só esses seres são testemunhas, mas são também testemunhados e, talvez, o próprio leitor esteja sendo convocado a ser uma dessas testemunhas, já que esta divisão é também a que mais se assemelha a uma sequência de causos — alguns bem mineiros, como marcados pelos elementos que representam o estado: vocabulários, locais, times. Alguns casos são divertidos, alguns inusitados e alguns intrigantes, e todos envolventes — como esse tipo de registro verbal costuma ser.

Mas além de um estudo do cotidiano, a investigação sugerida pelo título do livro, que parecia, até então, partir apenas do olhar curioso aos detalhes, se revela mais importante do que prometia ser. O caráter social e crítico da poesia de Thaís Campolina se mostra impactante e sutil, como tudo aquilo que fica sem registro oficial, mas que é visto e absorvido por quem vê os acontecimentos. “Beltrano” é o primeiro dos poemas com essa marca.

Essa sutileza impactante se mostra maior em seguida, na seção denominada Autoria, que coloca o eu-lírico no centro da ação. A investigação, aqui, parece ser de si mesma, usando da escrita para fazer o registro dessa coisa que não é qualquer — o eu —, mas que está ali, muitas vezes passando despercebida sem que alguém pare para observá-lo com atenção. A construção e o entendimento de si são pontos focais da maioria dos poemas, mas também é aqui que entram os textos que nos dão uma pista da relação do eu-lírico com sua escrita. Se torna nítida, ao longo dos poemas de Autoria, a imagem de uma autora se relacionando com sua escrita e com as demandas e pormenores do ato de escrever. Localizado no cenário, cercado de testemunhas, o eu-lírico se põe no centro da narrativa, se apresenta como protagonista para nos guiar a um entendimento maior de tudo, que vem na última divisão do livro.

Em “Tempo e Ação”, podemos ver um panorama amplo de como os elementos anteriores estão no momento histórico atual. O que nos foi introduzido sutilmente, agora se revela claramente de forma crítica, como um olhar atento, mas não misericordioso, que se volta para a realidade. É aqui, também, que se revelam alguns valores ocultos nas palavras: a poesia se mostra política — como tudo — e vai registrando os sentimentos diante do cotidiano, com uma visão que aponta e retalha o que for preciso para que haja uma transformação — ou ao menos a possibilidade dela — na sociedade. “Epílogo”, último poema do livro, conclui o backlash (nome do poema anterior, que significa também uma reação de rejeição) evocado na última divisão do livro: com gosto de sangue, mas também de legítima defesa.

Eu Investigo Qualquer Coisa Sem Registro é um exercício de observação e percepção para que não passem batido o eu, os fatos, os seres, os objetos e os locais ao redor da poesia. Só que olhar, aqui, não é algo passivo. Thaís Campolina guarda nestas páginas uma atenção às coisas pequenas e grandes que é capaz de transformar, se não o mundo, ao menos quem lê suas poesias.


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