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A perda da inocência e o surgimento da força de Nancy Wheeler

Na marca de quatro temporadas e na expectativa da quinta e última, não há dúvidas da força que Stranger Things tem ao conquistar fãs pelo mundo todo. Seja pela infinidade de referências aos anos 80, pelas narrativas em pequenos núcleos, por monstros que surgem a cada temporada ou pelo carisma dos personagens, uma coisa é fato: a série é a queridinha do público.

Atenção: este texto contém spoilers!

Diante do sucesso, questionamos qual desses pontos foi o mais potente e o responsável por trazer o espectador de volta a Hawkins — e, ao meu ver, o desenvolvimento dos personagens é a resposta. Desde o núcleo das crianças, que vimos crescer nas telas, o will they won’t they de Joyce (Winona Ryder) e Hopper (David Harbour), Robin (Maya Hawke) e Steve (Joe Keery) colegas de trabalho e babás do grupo, Nancy (Natalia Dyer) e Jonathan (Charlie Heaton) contra tudo e todos, personagens novos que nunca sabemos se chegarão vivos ao fim da temporada, todos se conectam conosco em níveis diferentes e, por algum deles, decidimos continuar assistindo.

Quando falamos de desenvolvimento de personagem em Stranger Things, logo pensamos em Steve Harrington, afinal, ele começou como um garoto popular babaca e agora temos uma mãe solteira com seis filhos — e que belíssimo desenvolvimento. Porém, ao assistir a série, meus olhos se voltaram para outra personagem, Nancy Wheeler. Podemos pensar que esses dois personagens crescem em intensidades semelhantes, cada um para encontrar o seu caminho. Nancy começa a série como uma menina tímida, que vê para o seu futuro ser uma boa esposa e boa mãe, e se transforma em uma mulher que está decidida a proteger o seu grupo atirando bolas de fogo na cabeça de Vecna (Jamie Campbell Bower) sem pensar duas vezes. Em quatro temporadas, três aspectos de Nancy se destacam: não entrar em estereótipos, sua lealdade e os relacionamentos que a cercam.

Nancy Wheeler

Na primeira temporada somos apresentados a uma menina de cabelos muito bem penteados, abraçada em seus livros e acompanhada de sua amiga, Barb (Shannon Purser) —  até aqui, elas são o exemplo de boas moças. À noite, ela janta com a família, não pode falar palavrão em casa e depois vai para o quarto estudar. Seu grande segredo — e transgressão — é ficar com o menino popular, Steve. Nancy é o claro retrato das boas mocinhas virgens dos filmes de horror — gênero em que a série se afoga de referências. Além de se manter com o corpo retraído em todas as cenas, suas expressões faciais são calmas, tímidas, marcadas pelo olhar baixo e o sorriso de canto, discreto. Sua imagem nos lembra até Rory Gilmore (Alexis Bledel), logo no início de Gilmore Girls.

Nancy está banhada pela inocência e, em um primeiro momento, pensamos que assim ela ficará pelo resto da série. O jogo logo muda durante a pequena festa na casa de Steve em que ela bebe, manda a amiga embora e transa com o ficante. Duas transgressões acontecem, em montagem paralela: a perda da virgindade; a captura e morte de Barb. No gênero de horror, a questão de virgindade e promiscuidade é o que determina se personagens femininas terminarão a narrativa vivas. Pela norma, Nancy morreria, Barb seria resgatada e seguiria sua vida pura em paz. A primeira subversão da série acontece aqui, mesmo que não deixe Nancy tão ilesa assim — afinal, é a partir da perda da amiga que a personagem começa a lutar contra os monstros do Mundo Invertido.

A culpa é catalisadora da busca incessante para descobrir o que aconteceu com Barb, uma vez que, se não tivesse mandado a amiga embora para ficar com Steve, talvez ela ainda estivesse viva, e é o que a faz ter os primeiros movimentos decididos por si mesma: se afastar de Steve, buscar apoio em Jonathan, ir até a região onde o desaparecimento aconteceu, entrar no Mundo Invertido, por mais que ela não soubesse o que era, e preparar a armadilha na casa dos Byers. Tudo isso é fruto daquilo que ela está buscando e é só o começo da trajetória da Nancy que sempre está no fronte das batalhas.

Com isso, ela corre o risco de parar no outro extremo dos estereótipos das personagens femininas: a mulher forte que não precisa de ninguém, se isola de todos — e até de si mesma — e que se sente atrapalhada quando está com o outro. Todos os momentos de tensão em que ela precisa estar pronta para lutar, ela está do lado dos seus amigos: Jonathan e Steve estão com ela na luta contra o Demogorgon; quando Eleven (Millie Bobby Brown) volta para Hawkins sem que ninguém saiba, ela se junta a Steve e Hopper para proteger o grupo; e quando Robin se junta ao núcleo, elas e Steve estão prontos para enfrentar Vecna juntos.

Nancy Wheeler

Não cair em nenhum dos estereótipos é o que traz a sua lealdade como peça central da personagem. A maior parte das suas ações são para fazer justiça pelo o que aconteceu com Barb, mas Nancy também é movida por um pouco de culpa, vide sua briga com Steve em uma festa, na segunda temporada, que os levam ao fim do relacionamento e a busca por expor o que o Departamento de Energia dos Estados Unidos estava fazendo em Hawkins.

Sua jornada na segunda temporada a aproxima de Jonathan e da carreira de jornalista que ela começa a seguir ainda como estagiária no The Hawkins Post e, depois, no jornal da escola. Se, até o momento na série, vemos a fidelidade que dedica à amiga, agora, nos momentos em que é ridicularizada no ambiente machista da redação, a busca por entender o que está acontecendo na cidade é para ser leal a si mesma.

Na terceira temporada, Nancy precisa provar para si mesma que é capaz de encontrar as respostas e enfrentar os segredos que assombram a cidade. Isso acontece tanto quando enfrenta Jonathan e mostra que eles têm relações diferentes dentro do ambiente de trabalho, quanto em uma das poucas cenas com sua mãe. Depois de ser demitida, brigar com Jonathan e voltar para casa, Karen (Cara Buono) a chama para conversar e as duas têm um dos momentos mais sensíveis da série, em que conversam sobre o medo de estarem erradas, porque todos já assumem que estão. Com isso, a mãe a encoraja a ir atrás da história, descobrir o que está acontecendo e mostrar que ela está certa — fica até implícito que, em algum momento do passado, a mãe desejou mais do que a vida que tinha, sendo uma boa esposa e boa mãe, e que ela deseja mais do que isso para a filha.

Nancy Wheeler

Nancy busca pelas pistas que tem e descobre o que está acontecendo com Billy (Dacre Montgomery) e outros moradores da cidade, descobre sobre o Dominador de Mentes, prepara o grupo para a batalha e mostra a Jonathan que estava certa.

“— Eu estava completamente, totalmente, embaraçosamente errado. Não deixe isso te subir a cabeça.
— Não vou. Só espero que nunca mais duvide de mim.”

Na quarta temporada, a morte de Fred Benson (Logan Riley Bruner), que acontece quando eles se separam durante a investigação sobre a morte de Chrissy Cunningham (Grace Van Dien), a leva a buscar por mais informações sobre Victor Creel (Robert Englund), guiando o grupo para a casa de Vecna e todo desenrolar da temporada. Sua busca é movida, novamente, pela culpa de deixar o amigo de lado e o desejo de fazer justiça. Mais tarde, quando Vecna entra na mente de Nancy e resgata a culpa em relação a Barb, isso funciona como combustível para seguir em frente com o plano. Podemos ver os desdobramentos da série como consequências das buscas de Nancy, fazendo uma personagem essencial tanto no intelecto, quanto na força física, afastando-a de qualquer indício da típica “donzela em perigo”.

Outro ponto que move a série são os relacionamentos entre os personagens: amizades de longa data que se desgastam, amizades inesperadas, fraternidade e, claro, romances. Com a perda da amiga, a primeira temporada se estabelece no triângulo Steve-Nancy-Jonathan e, podemos arriscar, é um dos triângulos menos tóxicos recentes na televisão. Steve é um babaca que logo é deixado por Nancy, que se alia a Jonathan pelo simples fato dele acreditar que algo de fato aconteceu com Barb. O triângulo se resolve após Steve se arrepender de quebrar a câmera de Jonathan, brigar com o garoto, se afastar dos amigos que chamaram Nancy de vadia, decidir ir a casa dos Byers para se desculpar — sem saber que Nancy estava lá — e assim, os três tem a cena épica contra o Demogorgon.

Muitos não gostam que Nancy termine a temporada nos braços de Steve e, logo na segunda temporada, vemos o quanto ela também não está satisfeita. Namorar com Steve é fingir que nada aconteceu, que ela ainda é a menina inocente de um ano atrás, mas tudo isso, como ela deixa bem claro, é besteira. Todos tivemos o coração partido com a cena do banheiro, mas esse é mais um momento em que os movimentos da personagem são frutos do próprio desejo — de amadurecer, de resolver os problemas ao seu redor e de lidar com a culpa.

Ao se aproximar de Jonathan, a garota tem a chance de se descobrir fora daquilo que era esperado por parte dela. O garoto não é o ideal dos pais, na escola não faz parte do seu grupo social e é o único que entende o que ela passou — o fator decisivo de trauma compartilhado, como diz Murray (Brett Gelman). O romance que começa tímido ganha força na terceira temporada e passa a decair na quarta. Aquilo que os unia no começo não é mais forte o suficiente para mantê-los e ambos precisam entender o que querem a partir dali.

Apesar da culpa que a persegue desde o início, podemos ver a quarta temporada como a que Nancy se sente mais vulnerável, seja pelo desconhecido em relação a Vecna ou pela ausência de Jonathan. Nesse momento, ela se apoia naquilo que lhe dá conforto — Steve — ao mesmo tempo que se abre para o desconhecido — e Robin.

Nancy Wheeler

Robin também é uma personagem feminina que foge do que esperamos em um primeiro momento, e com quem não sabíamos como seria a interação, visto que são tão diferentes e tão semelhantes ao mesmo tempo. Robin não vai para o fronte de batalha, mas estimula intelectualmente Nancy, apoiando-a em suas buscas e encorajando-a. Determinada a fazer amizade, deixa claro que não rola nada entre ela e Steve, mesmo que isso não seja um fator que afaste Nancy dela. As duas personagens existem a partir de si mesmas e sua relação gira ao redor delas, sem recorrer a um homem para uni-las — na verdade, Steve queria ir para a biblioteca com Nancy e é Robin que o dispensa e acompanha a garota. A amizade delas é tão natural que acontece em seu próprio tempo, sem forçar intimidades, respeitando os limites de cada uma, ao mesmo tempo que é o elo forte para enfrentar Vecna.

Nancy Wheeler passa por grandes mudanças que a fazem crescer ao longo das quatro temporadas da série, deixando de ser a menina inocente dos primeiros episódios para uma jovem mulher que decide os caminhos que vai tomar. Suas decisões são essenciais para o desenrolar da narrativa e, provavelmente, os personagens já teriam morrido na primeira temporada se não fosse por sua busca pela verdade, lealdade e coragem. Sua força não a afasta do grupo, ao contrário, une o intelecto e o físico, conectando os pontos confusos do Mundo Invertido e se preparando para a batalha.

A quarta temporada encerra com um final bem aberto para o que acontecerá com a cidade e para cada um dos personagens. Nancy e Jonathan estão evitando os problemas do relacionamento, ao mesmo tempo que a personagem tem uma nova intimidade com Steve e a amizade com Robin. Provavelmente, ainda veremos Nancy rastrear a extensão do Mundo Invertido em Hawkins, decifrando os próximos passos de Vecna e pronta para lutar. Nancy ainda tem muito espaço para crescer na última temporada e estaremos aqui para acompanhar.