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A melancolia de Ethel Cain em Preacher’s Daughter

A voz de Hayden Silas Anhedönia exala melancolia e sua persona pop, Ethel Cain, é o catalisador de todas as suas dores e experiências de vida. Nascida na comunidade batista de Perry, no interior da Flórida, Estados Unidos, filha de um pastor e a mais velha de quatro irmãos, a artista iniciou seus estudos em piano clássico aos oito anos de idade tendo como influência Karen Carpenter e Steve Miller Band, além de uma variedade de músicas natalinas. A atmosfera que presenciou em tão tenra idade, envolvida na igreja onde seu pai realizava os cultos, viria a marcar todo o seu trabalho e seu incrível álbum Preacher’s Daughter (“A Filha do Pastor”, em bom português).

Nascer e crescer em uma comunidade tão restrita e religiosa como a da pequena Perry marcou a artista profundamente ainda que tenha dito, em entrevista para a Pitchfork, que sua infância foi simples, divertindo-se ao lado dos irmãos mesmo que, na maior parte do tempo, se sentisse um pouco deslocada em todo aquele ambiente de orações e retidão. Isso porque Hayden era uma criança queer que logo cresceu para se tornar uma adolescente tentando entender seu lugar dentro de uma comunidade conservadora e religiosa. Aos dezoito anos de idade, Hayden deixou Perry para viver de sua música e se encontrar; aos vinte, anunciou ser uma mulher trans e, aos vinte e quatro, lançou Preacher’s Daughter por meio de sua já citada persona musical, Ethel Cain.

Para a artista, Ethel Cain nasceu como o ponto de interseção de suas experiências enquanto crescia em uma comunidade muito religiosa do sul dos Estados Unidos e seus sonhos de liberdade do outro lado do país. A estética adotada por Hayden para Ethel é a do gótico do sul dos Estados Unidos, marcada por grande melancolia e filmes de terror. Apesar da pouca idade, as experiências contadas pela artista em seu trabalho permeiam momentos de dor e tristeza que parecem pertencer a uma vida muito mais longa. Ao se assumir para a família e os demais membros da igreja a que pertencia, primeiro como gay e depois como mulher trans, Hayden sofreu o ostracismo que só os que não se encaixam na heteronormatividade são capazes de conhecer. Somando a isso o fato da não caber na comunidade extremamente religiosa em que nasceu, a ruptura entre ela e suas origens não é tão difícil de compreender.

Criar Ethel Cain foi a maneira que Hayden encontrou para, de alguma forma, reivindicar suas origens, negadas por sua comunidade, e tomar as rédeas de sua própria narrativa, fazendo as pazes consigo mesma, além de surgir como um caminho para abraçar a sua feminilidade. Toda a estética de Ethel Cain é repleta do imaginário religioso com que cresceu, além da melancolia que estampa em suas trágicas poesias transformadas em música. Em suas canções estão as figuras quase míticas das meninas que cresceram ouvindo o melhor do “sonho americano” apenas para descobrir, na sequência, que são somente meninas de lugar nenhum, presas em um sistema que não as possibilita viver em seus próprios termos, assim como Hayden. Incorporar uma líder de culto em sua personalidade artística faz sentido diante de toda a sua trajetória e a narrativa presente em Preacher’s Daughter nos explica os motivos, ainda que em seus trabalhos anteriores, Golden Age (2019) e Inbred (2021), além do Carpet Bed EP (2019), a artista já tenha começado a esclarecer as questões que ela mesma se impunha.

Preacher’s Daughter abre com “Family Tree”, uma canção quase assombrada e repleta do já citado imaginário religioso que rodeou Ethel enquanto crescia. Os versos falam das “cruzes por todo seu corpo” (“These crosses all over my body/ Remind me of who I used to be”), uma alusão às tatuagens que a fazem lembrar da pessoa que foi em Perry e simbologias que evocam batismo e matrimônio. Muitas das canções de Ethel exploram suas experiências pessoais e lidam com temas delicados como abuso, violência, pobreza e até mesmo incesto. Na sequência, em “American Teenager”, Ethel destrincha todas as coisas que os adolescentes estadunidenses são ensinados a ser, mas nunca têm a oportunidade de se tornar. A letra da canção mergulha no imaginário que conhecemos tão bem da adolescência dos Estados Unidos devido aos filmes e seriados que consumimos com tanto afinco, e lá está os vislumbres de um campo de futebol americano e o high school.

Mas reduzir “American Teenager” apenas a seu imaginário é faltar com a mensagem de Ethel. Para a Pitchfork, ela comenta que a canção nasceu do falso sentimento ensinado aos jovens de que tudo é possível e que, se não for, você pelo menos deve morrer tentando. Os versos nasceram da frustração de Ethel com relação a tudo o que é esperado do “american teenager”, mas que nem todos serão. “A House in Nebraska”, a terceira das treze canções de Preacher’s Daughter, talvez seja uma das mais doloridas ao falar de coisas que poderiam ter sido, reproduzindo uma cena real, como um filme, enquanto Ethel canta.

“These dirt roads are empty
The ones we paved ourselves
Your mama calls me sometimes
To see if I’m doing well
And I lie to her
And say that I’m doing fine
When really I’d kill myself
To hold you one more time
And it hurts to miss you
But it’s worse to know
That I’m the reason
You won’t come home”

“Essas estradas de terra estão vazias
As mesmas que pavimentamos
Sua mãe me liga às vezes
Para ver se estou bem
E eu minto para ela
E digo que estou bem
Quando na realidade eu me mataria
Para te abraçar mais uma vez
E sentir sua falta machuca
Mas é pior saber
Que eu sou a razão
Pela qual você não volta pra casa”

No decorrer do álbum o que acompanhamos é uma crescente de sentimentos, dores, frustrações e, é claro, melancolia. Em alguns momentos Ethel Cain soa como se Florence Welch e Lana Del Rey tivessem dado vida a uma bruxa mística do sul gótico dos Estados Unidos que canta sobre uma vida difícil, ainda que tão no começo, ideais deslocados do que os seus pares esperavam e uma juventude desprivilegiada e perdida no “american dream” sem saber se conseguirá alcançar algum desses sonhos prometidos. Somado a isso ainda está o final desse mesmo sonho americano como conhecemos — e como foi tão difundido pelo mundo todo, tornando-se o sonho, também, de milhares de pessoas que migram para os Estados Unidos em busca dessa utopia —, a sexualidade reprimida pelo zelo de uma comunidade extremamente religiosa e a tempestividade de uma jovem mulher que tem muito o que pensar e refletir.

Preacher’s Daughter é uma obra longa, idealizada, em um primeiro momento, para ser acompanhada de um filme, e é a narrativa de tudo o que reflete na vida de Ethel Cain. Ela, uma heroína trágica, deixa sua pequena comunidade religiosa ao lado de um jovem nômade e misterioso para viajar pelos Estados Unidos apenas para descobrir que o príncipe não estava montado em um cavalo branco para salvá-la, mas para destruí-la. Afinal, Ethel está cantando do céu ou do inferno?

Toda a narrativa e imaginário embutido em Preacher’s Daughter nos faz navegar pela mística de um período em que hinos de igreja se mesclam com os sonhos destruídos de toda uma geração, frustrados pela aventura do sonho estadunidense. É curioso prestar atenção em Preacher’s Daughter sendo de uma realidade completamente diferente, atentando a detalhes e narrativas como se lesse um livro — e, acredito, é aí que reside a magia de Ethel Cain.

Ethel Cain recolhe todas as peças e partes da garota americana e a reconstrói à sua maneira, usando dos arquétipos tão difundidos pela cultura pop dos Estados Unidos e criando algo que é intrinsecamente seu. Aqui, para Ethel Cain, não há nada do glamour do sonho americano, e tudo parece a ponto de se partir em mil pedaços — e não há ninguém para salvá-la. Seu álbum é sombrio e melancólico, evocando imagens de solidão, tristeza e abatimento em cores sépia, mostrando que o idealizado nem sempre é factível.

“I’m still praying for that house in Nebraska
By the highway, out on the edge of town
Dancing with the windows open
I can’t let go when something’s broken
It’s all I know and it’s all I want now”

“E eu ainda rezo para aquela casa em Nebraska
Perto da rodovia, lá no final da cidade
Dançando com as janelas abertas
E eu não consigo superar quando algo está quebrado
É tudo que eu sei e tudo que quero saber”