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Kindred: se você pudesse voltar no passado, para onde iria?

“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”

Em suma, em Kindred uma mulher negra — Dana — volta no tempo para uma plantation, onde vivem seus ancestrais — um homem branco e uma mulher escravizada. É a partir dela, visto que a narrativa é em primeira pessoa, que vamos saber o desenrolar da história. No passado, ela se passa em Baltimore, onde se localiza a plantation, umas das primeiras colônias norte-americanas, e onde há um porto no qual chegavam vários navios negreiros.

A rainha da ficção científica, Octavia Butler (1947-2006), presenciou a Guerra Fria, a fase do neoliberalismo e acompanhou a virada do século XX para o século XXI. Há alguns temas recorrentes em suas obras que aparecem em Kindred. A primeira delas é a crítica à hierarquia: ela é uma autora que vai olhar para essa estrutura hierárquica e desdobrar isso de várias formas. Como uma autora de ficção científica, ela vai usar o gênero narrativo, que é descrito pelo criador de Twilight Zone, como “o improvável tornado possível”, para funcionar como um mote de discussão. Também é muito forte em sua obra o parasitismo, a ideia de que existe uma criadora sugadora, mas que nesse caso não se trata de um alien ou vampiro, mas sim de um dono de escravos, um senhor de engenho que suga, que explora. Além disso, Butler sempre vai construir personagens que corporificam essa imagem, essa mudança, personagens muito fortes que trazem a reflexão de mudança.

Kindred

O caráter imaginativo da ficção científica é para criar figuras, nomes, personagens, e para imaginar outras possibilidades de vida, outros mundos, estando dentro do movimento Afrofuturismo. Como o racismo estrutural é uma pauta muito importante para ela em Kindred, quem sobrevive a essa opressão sistêmica vai ser o herói, visto que ele sofre duras penas emocionais, físicas, sociais, políticas, econômicas, e sobrevive para contar sua história.

“— Como se a gente fosse burro para precisá de um desconhecido para fazê a gente pensá em liberdade” (p.119)

Remetendo-se à ficção científica, o reconhecimento e a identificação são dominadas por homens, principalmente homens brancos. Podemos citar alguns clássicos como 1984, Nós, Admirável Mundo Novo, Blade Runner e Cama de Gato. Por isso é tão importante e significativo analisar e colocar à vista as produções literárias de mulheres negras, visto que a relação que elas sofrem é de dupla opressão: gênero e raça, limitando suas publicações e acesso a determinados espaços. Não apenas a falta de reconhecimento na escrita, também se verifica a falta de representatividade, de personagens negros, no gênero narrativo em questão, podendo se observar nos exemplos citados anteriormente, onde todos os personagens são brancos e héteros.

“— Bobagem! — disse ela — Preto escrevendo livro!” (p.233)

De acordo com Kimberlé Crenshaw (2002):

 “Uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, do dinâmicos ativos ou constituindo aspectos desempoderamento.”

Ou seja, a experiência da mulher negra deve ser compreendida pela interação de questões além de racial. Pensando em Kindred, não faria sentido realizar uma leitura apenas a partir do feminista, mas sim interseccional, ajustando o método de leitura para a obra, considerando gênero, raça, classe, habilidade, orientação sexual e nacionalidade. Interseccionalidade é cruzar assuntos que se atravessam. Aqui, pensar interseccionalidade como um método é pensar em todas as questões que estão relacionadas à opressão.

“Todas as lutas são, essencialmente, lutas por poder.”

Um outro ponto da obra, que se trata mais de uma particularidade, é o título, que não foi traduzido: Kindred (kinship, next of kin) — parentesco, laço familiar, se relacionar por ter as mesmas opiniões, sentimentos e interesses.

Transpondo para a obra, há esse laço que amarra Dana com o antepassado branco escravocrata, e ela está presa a ele. É possível se desvencilhar disso? Até que ponto o relacionamento familiar vai além de ter sentimento, interesses, opiniões, mas também de coisas muito profundas, muito arraigadas, de posse, de propriedade, de árvore genealógica, de direitos, todas essas questões estruturais? O debate mais profundo aqui é que ela existe e está na linha do tempo do presente por conta desse homem branco escravocrata, desse sistema de escravidão.

“Preta médica — disse ela, com desdém — Pensa que sabe muito. Preta que lê. Preta branca! Por que não achô que era melhó me deixá morrê?” (p. 257)

Dana, a personagem principal do romance de Butler, ocupa um entre-lugar na narrativa. No século XIX, por conhecer a medicina, falar como os brancos, “se vestir como homem” por usar calças, além de não obedecer calada às ordens da família Weylin.

No fim das contas, o passado funciona muito bem para o homem hétero cristão, mas para quem não se insere nessas caixinhas, no máximo voltar para o dia anterior ou algumas horas antes.


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4 comentários

  1. Por mais que eu tenha curiosidade em ter visto a construção das Pirâmides do Egito, eu sempre penso que minha condição de mulher poderia muito bem ser uma sentença de morte. E não é “apenas” a questão da misoginia, mas também doenças, outra mentalidade, outras formas de se expressar. Muitas coisas entregariam que não fazemos parte daquele tempo. No fim, somos frutos não apenas do nosso meio, mas também do nosso tempo.

    1. Penso exatamente como você: que somos frutos do meio e do tempo em que vivemos. Por bastante tempo eu quis morar na URSS (inclusive meu nome surgiu de um filme dessa época), mas Stálin dizendo que “A questão histórica da mulher foi resolvida” é uma grande mentira, tal como o Inominável dizer que a COVID é apenas uma gripezinha. A igualdade das mulheres para com os homens não havia sido alcançada. As mulheres soviéticas não estavam libertadas e mesmo os objetivos do Estado soviético para com as mulheres não haviam sido completados: as mulheres ainda não tinham igualdade salarial total; eram ainda presença minoritária na política; no próprio PC, elas estavam em menor número e, na direção do Partido, os dados mostravam-se ainda mais desequilibrados. E o mais engraçado de tudo: a questão das mulheres havia se tornado tão importante, que não podia ficar mais sob a responsabilidade das próprias mulheres, devendo ficar, então, sob responsabilidade da direção, uma direção masculina. Aqui e hoje, eu sei que a pauta feminista não chegou nem perto de ser alcançada, mas viver em uma época em que eu seria totalmente alheia e iludida quanto à isso, seria um pouco complicado…

  2. Me deparei com o artigo um pouco antes de ter lido Bloodchild (Filhos de sangue) e não sabia muito sobre a autora. . Os mesmos elementos que foram citados no artigo – parasitismo, desdobramento da hierarquia e afrofuturismo – estão estão presentes em Bloodchild. Não vejo a hora de ler Kindred.

    1. Pra mim foi uma leitura de completa imersão. A Octavia Butler detalha tão bem o passado, que por alguns minutos de leitura eu consegui sentir todo horror que seria viver naquela época. Super indico (mesmo sendo mega suspeita kkkk) à ler Kindred.

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