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As Boas Maneiras e os dispositivos sociais que tentam nos cercear

É comum encontrarmos pessoas que têm um profundo desprezo pelo cinema nacional, que acreditam que temos uma única temática ou que a produção brasileira acabou junto com Glauber Rocha — afirmações que parecem resumir o principal problema da produção cinematográfica nacional: a qualidade.

As Boas Maneiras é um filme que mostra como nosso olhar foi treinado para enxergar somente o que está diante de nós. Não conseguimos avistar os caminhos que se abrem nas brechas deixadas pela estrada principal. Juliana Rojas e Marco Dutra, diretores do filme, fazem cair por terra os mitos sobre o cinema brasileiro. Yes, we have directors (sim, nós temos diretores, em tradução livre) e eles estão fazendo horror da melhor qualidade — horror, inclusive, com viés social. A dupla de diretores responsáveis já levou, inclusive, seus filmes ao Festival de Cannes, e As Boas Maneiras venceu a categoria de Melhor Filme de outro importante festival: o Festival do Rio, no ano passado.

É cinema brasileiro para ninguém colocar defeito.

Atenção: este texto contém spoilers!

Para quem cresceu durante a década de 1990, é possível se lembrar de um livro infantil chamado Etiqueta na Prática para Crianças. Nele, a autora, Célia Ribeiro, elenca uma série de regras básicas de etiqueta que crianças educadas deveriam seguir, como as mágicas palavras “por favor” e “obrigada”. Ao adentrarmos a vida adulta, os dispositivos ensinados no livro, assim como aqueles transmitidos pelos nossos pais, precisam ser cumpridos. Convenções sociais devem ser seguidas. E se você quebra ou questiona essas regras, deve estar preparado para as consequências.

É o que acontece com Ana (Marjorie Estiano), personagem principal de As Boas Maneiras. Natural de uma família abastada do interior de Minas Gerais, Ana seguia a cartilha ditada pela sociedade, até o dia que acaba engravidando em uma festa, de um sujeito desconhecido. Por não ter se dado ao respeito, Ana é excluída do círculo familiar. À deriva, ela acaba tendo que partir para São Paulo, onde decide ter seu filho mesmo sem o apoio da família.

É nesse contexto que conhecemos Clara (Isabél Zuaa), uma enfermeira que é contratada como empregada para cuidar do bebê que está prestes a nascer, mas, mais do que isso, Ana também procura alguém em quem se apoiar e aplacar a solidão causada pelo isolamento social. Clara, por sua vez, também é isolada socialmente, pois é negra e periférica, e essas condições se cruzam com a da patroa, uma mulher extremamente rica. Não é à toa que as duas terminem por desenvolver um relacionamento amoroso durante o filme, uma vez que ambas reconhecem-se na solidão causada por diferentes maneiras de exclusão social.

As Boas Maneiras é um filme em que párias lutam para sobreviver em uma sociedade machista e racista. O horror, por sua vez, é construído a partir do medo bastante palpável para nós, mulheres: o do controle sobre nossos corpos e desejos. A partir do momento em que Ana decide ter o filho, para muitos “maldito”, fruto de uma noite de sexo casual, é como se uma maldição recaísse sobre ela. Assim, ela enfrenta uma gravidez cheia de percalços, e também de sonambulismo, conforme descobrimos mais tarde. Ana acorda no meio da madrugada e assalta a geladeira. Em uma noite, Clara descobre que Ana mata animais para se alimentar do sangue deles.

Nesse aspecto, o filme assemelha-se a O Bebê de Rosemary, clássico do horror de 1968, dirigido por Roman Polanski. O maior desespero de Rosemary (Mia Farrow) é perder o controle sobre o próprio corpo, o que ocorre quando membros de uma seita satânica apoderam-se dela para fazer com que carregue no ventre o filho do demônio. Ana, por sua vez, carrega o filho por vontade própria, mas sua transgressão custa, literalmente, a sua vida. É um ponto de virada bastante interessante do filme, pois é nessa hora que descobrimos que o bebê é um lobo e não humano — escolha que pode ser lida como uma alegoria para como uma criança sem uma família tradicional é tratada: uma aberração.

Joel (Miguel Lobo) também cresce às margens da sociedade. Enquanto seus colegas comem carne, ele é obrigado a comer apenas vegetais, sem qualquer explicação. Ele tem amigos, mas é impedido de sair à noite para ficar no “quartinho”, lugar que Clara encontra para reprimir a verdadeira criatura na qual a criança se transforma durante a lua cheia. Aos dez anos, o garoto está na idade em que quer se sentir pertencente a algum lugar ou a alguém. Assim como suas mães, ao tentar pertencer a um lugar que teoricamente não é o seu, Joel sofre as consequências.

O horror vem carregado de significado, e também de muita reflexão social, um traço que se delineia desde o primeiro longa-metragem da dupla, Trabalhar Cansa, de 2011. Com um título bastante curioso para um filme de terror, a proposta é criar em cima de duas velhas conhecidas por muitos de nós: a classe média brasileira e as relações de trabalho. No filme, os diretores centralizam a história de Helena (Helena Albergaria), que realiza o sonho de ter um supermercado ao mesmo tempo em que seu marido, Otávio (Marat Descartes), perde o emprego depois de muitos anos trabalhando na mesma empresa. A dupla constrói um clima de tensão dentro do símbolo máximo do capitalismo — no caso o supermercado —, lugar onde coisas estranhas acontecem. Há algo na parede mofada do lugar? Por que um cachorro late incessantemente em frente ao estabelecimento?

Quando Otávio é despedido, as relações de poder invertem-se. É Helena quem traz a comida e o sustento para dentro de casa. O supermercado lhe dá o gosto de ser a dona de um meio de produção, uma grande capitalista a quem é permitido pisar nos próprios funcionários. O horror surge em seus pequenos atos, como despedir um funcionário acusado sem provas de desfalcar o estoque do supermercado. Mais uma vez, ele aparece quando Helena se recusa a assinar a carteira de sua empregada. Helena é a classe média que certamente teria ido às ruas, em 2013, bater panelas.

Otávio, por sua vez, vive o horror da precarização das relações de trabalho. Em uma das cenas mais emblemáticas do filme, ele é chamado para uma entrevista de emprego e lá descobre que terá de fazer uma dinâmica em grupo com um balão na cara. Mesmo com sua longa experiência, ele precisa sujeitar-se às lógicas do mercado de trabalho, até quase pagar para ter um emprego. Em tempos de reforma trabalhista e da retirada de direitos dos cidadãos brasileiros, um filme como Trabalhar Cansa nunca foi tão atual.

Trabalhar Cansa foi responsável por levar Juliana Rojas e Marco Dutra ao Festival de Cannes, tendo sido selecionado para a categoria Un Certain Regard, Um Certo Olhar, em português. Mas seu trabalho mais recente mantém o mesmo padrão de qualidade alcançado anteriormente. As Boas Maneiras é um filme de horror brasileiro que não perde para grandes produções estrangeiras, como Corra! e Raw. Em um gênero por vezes tão desprezado pela maioria das pessoas, visto como nada mais do que matança e sangue, é maravilhoso que o terror seja o responsável por oferecer reflexões tão importantes quanto atuais. Estamos alçando voos muito altos; há muito tempo Central do Brasil deixou de ser o único filme brasileiro digno de apreciação. Por que ainda insistimos em exaltar uma suposta falta de qualidade em nossas produções? Quais seriam as boas maneiras que regem a ideia de que o cinema brasileiro é uma porcaria?

3 comentários

  1. Misturar crítica social com terror não me parece uma boa idéia,porque quem é fã de um nem sempre gosta do outro.Na próxima vez é melhor o diretor optar por uma coisa só,ao invés de ficar fazendo misturas esdrúxulas.

    1. pelo visto não entendeu nada do que o filme passou (se é que assistiu) e muito menos leu o texto. É olhar além do terror, por isso o filme é um marco. Coisas esdrúxulas é só pra quem não tem capacidade de enxergar nada além do que os olhos veem. Filmaço com crítica social. O terror é extremamente secundário. Deve tá costumado com filminhos globos, comédias idiotas né? Assim realmente dica difícil.

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