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Nossa Parte de Noite: o horror lovecraftiano sob uma lente sul-americana

Quando falamos de horror, é quase impossível não lembrar da obra de H. P. Lovecraft. O autor estadunidense é conhecido pelas suas criaturas, deuses ancestrais e uma atmosfera pessimista que compuseram e moldaram seu horror cósmico. No entanto, sua contribuição para a literatura não foi de todo positiva: Lovecraft levou para suas histórias o profundo racismo que cultivava em si.

Em contrapartida, sua obra é extremamente problemática, e, atualmente, novos autores — inclusive aqueles que pertenciam aos grupos que Lovecraft desprezava — passaram a se apropriar de seus recursos narrativos para criar suas próprias narrativas. Esse é o caso da argentina Mariana Enríquez, autora de Nossa Parte de Noite. Em seu livro, Enríquez constrói um romance muito bem costurado em que encontramos e tememos a Escuridão, uma entidade capaz de cortar e matar, mas também de falar e trocar favores.

O contato com a Escuridão é realizado por meio de um médium, que a invoca em cerimônias organizadas pela Ordem — uma espécie de sociedade secreta de origem britânica. Nesses ritos, os Iniciados se encantam pela Escuridão — que normalmente os come ou arranca pedaços de seus corpos —, enquanto a Ordem anota o que a entidade está dizendo — ou parece estar dizendo. Durante a cerimônia, Juan, o médium que durou mais tempo nas mãos da Ordem, está metamorfoseado em um animal com garras. Mais tarde, quando a Escuridão vai embora, Juan usa essas garras para ferir — e, ao mesmo tempo, honrar — algumas pessoas e, logo em seguida, curá-las, retirando a dor por completo. O que fica em quem foi marcado é a cicatriz, além de um laço poderoso com o médium.

A maior dor sofrida por quem compareceu à cerimônia é sentida pelo próprio Juan, que fica exausto e tem seu quadro de saúde piorado cada vez que precisa invocar a Escuridão. À ele foram cedidos alguns “privilégios”, como o número máximo de um ritual por ano. Apesar de Juan ser casado com Rosário, que pertence a uma das famílias fundadoras da Ordem, esses privilégios são cedidos muito mais porque a organização precisa do médium vivo, do que por qualquer sentimento afetuoso nutrido a ele.

Em outros momentos, contudo, a Ordem não manteve essa mesma mentalidade, realizando rituais diariamente a ponto de manter vivos por pouco tempo os médiuns que, com dificuldade, encontravam. Levando em conta a raridade de pessoas iguais à Juan, o trabalho que tinham para encontrá-las e a dependência deles para a realizar as cerimônias, a Ordem opta por seguir um caminho (um pouco) menos doloroso com Juan. Ainda assim, ele não deixa de ser visto e se ver como um escravo.

Para quê a Escuridão é invocada?

A necessidade de invocação da Escuridão serve apenas às necessidades dos membros da Ordem. Apesar de já serem ricos e poderosos, inclusive no campo político — estando envolvidos com os militares que tomaram o poder na Argentina —, os membros dessa organização desejam mais: manter suas consciências vivas. Para isso, escutam a cada ano as instruções dadas pela Escuridão e dão a ela o que ela pede.

Além dos rituais anuais, os membros da Ordem também fazem alguns trabalhos mais simples, sem ser necessária a intermediação de Juan. Para que a Escuridão dê a eles o que pedem (pedidos que envolvem mais poder ou dinheiro), são necessárias algumas oferendas. É aí que conhecemos as maiores crueldades de Mercedes — mãe de Rosário e uma das líderes da Ordem. Ela sequestra crianças do interior da Argentina e as mantêm enjauladas em um túnel no terreno de sua mansão, as tratando como animais selvagens.

A descrição da situação dessas crianças é capaz de causar náuseas e arrepios em quem as lê e são mais uma das provas dentro da obra de que a personagem de Mercedes, além de muita sede de poder, tem em si um prazer avassalador e macabro em torturar. Apesar de, aparentemente, ser o membro da Ordem mais cruel, ela não deixa de representar o quão longe a organização pode ir para conseguir o que deseja.

Uma das desculpas dadas pela personagem — embora nem mesmo ela acredite — para manter as crianças naquela situação é porque a Escuridão precisa daqueles sacrifícios. Juan e Rosário, no entanto, sabem que a justificativa é infundada. A outra razão para o sequestro daquelas crianças seria porque a Ordem em breve precisará de um novo médium: Juan tem uma condição cardíaca delicada e todos sabem que os médiuns não vivem por muito tempo. Além disso, Mercedes e Florence — a outra líder da organização secreta — não têm certeza se Gaspar, filho de Juan e Rosário, terá o mesmo dom de seu pai. Por isso, elas estão sempre procurando (ou, em outras palavras, sequestrando e torturando crianças) para ver se encontram um futuro substituto para Juan.

Reencontro com Adela e sua casa: revisitando As Coisas que Perdemos no Fogo 

Ao entrarmos na segunda parte do romance, acompanhamos a história do ponto de vista de Gaspar na sua pré-adolescência. A partir dele, conhecemos seus três amigos: Pablo, Vicki e Adela. Para quem leu As Coisas que Perdemos no Fogo, livro de contos da mesma autora, o terceiro nome não deve soar estranho. No decorrer das páginas, descobrimos que essa terceira amiga também não tem um braço (criando histórias para justificar a falta do membro) e é obcecada por uma casa abandonada no bairro. Com isso, temos a certeza de estarmos reencontrando a personagem do conto “A Casa de Adela”.

Mais adiante, quando o grupo de amigos finalmente adentra a casa que Adela tanto fala, percebemos que não estamos apenas diante da mesma personagem, mas também da mesma casa. Para quem não leu o outro livro de Mariana Enríquez, a casa abandonada por fora tem um tamanho e aparência, mas por dentro é completamente diferente e muito maior. No interior dela se encontram livros de anatomia e uma sala com incontáveis partes humanas separadas em prateleiras metodicamente organizadas. No romance, vemos a casa enganando o quarteto e se transformando em um labirinto até conseguir o que queria.

O fim de Adela em Nossa Parte de Noite não é diferente do relatado no conto: perdemos Adela para sempre ou a casa a ganha. A diferença é que no romance conseguimos entender o que atraía a menina para dentro da casa. E, mesmo já temendo um fim para ela semelhante ao de “A Casa de Adela”, ficamos torcendo por um rumo diferente.

Portas para um Outro Lugar

Além do cenário londrino e — muito — LSD, a terceira parte da obra traz ao leitor algumas explicações para elementos até então incompreendidos. A jornada que acompanhamos é a de Rosário ainda em sua juventude, quando saiu de Buenos Aires para fazer faculdade na Inglaterra. Lá, a jovem foi acolhida por Esteban, filho de Florence, e ambos se identificam como herdeiros da Ordem, ao mesmo tempo em que vão contra os horrores realizados pelas suas famílias.

Além disso, é lá que Rosário consegue se aproximar, por meio de Esteban, de outros filhos de membros da Ordem. Mais tarde, Juan também parte para o país britânico por conta de uma cirurgia. Rosário consegue convencer Florence de deixá-lo ficar por mais tempo, e o médium  se junta ao grupo de jovens. Em uma aventura do grupo, acabam alugando uma casa para passar alguns dias. Nela, uma porta para um dos quartos acaba se transformando em uma passagem para um local escuro, que mais adiante será chamada pelos personagens como o Outro Lugar.

Vamos adentrando e descobrindo esse espaço junto com os personagens. Nesse novo local descoberto, o ar é rarefeito e o espaço é preenchido por ossos. Lá, o médium pode fazer pedidos e dar oferendas. Em determinado ponto, também é possível sentir um odor similar ao de um hálito quente. Assim, a experiência é comparada a de estar dentro de uma boca. Provavelmente a da própria Escuridão, que está sempre com fome. A sensação constante de ter alguém observando os visitantes também é relatada mais de uma vez.

Apesar desse local ter aparecido para os personagens primeiramente em Londres, mais tarde também será encontrado em Buenos Aires e Corrientes. Muitos anos depois de seu pai e sua mãe o terem descoberto na capital britânica, Gaspar o adentrará na Argentina e, em Corrientes, finalmente o apresentará para os outros membros da Ordem.

Para além de Lovecraft: as diferentes referências utilizadas por Enríquez

Fora a inspiração em Lovecraft, Mariana conta nesse vídeo também ter se baseado na tradição ocultista britânica para criar o universo do livro. Uma das justificativas dada pela autora para essa escolha foi que no ocultismo britânico existia, na medida do possível, um certo equilíbrio de poder entre homens e mulheres, ainda que isso se datasse entre os séculos XIX e XX. Isso é levado para a obra com Florence e Mercedes sendo as grandes líderes da Ordem, enquanto seus maridos e outros homens da família ficam em segundo plano.

Alguns elementos tratados em Nossa Parte de Noite conversam com os difundidos pelo famoso ocultista inglês Aleister Crowley. O britânico realizava rituais sexuais, inclusive com práticas homossexuais, e pregava o amor livre. Por um tempo, fez parte da Ordem Hermética da Aurora Dourada, uma sociedade secreta que, dentre algumas práticas, realizava a magia cerimonial. Para além desses fatores, Crowley também fazia o uso de cartas de tarô (tendo sido difundidas em diversas culturas e não usadas somente no ocultismo britânico). Todos esses elementos citados foram levados com maestria para o romance pela autora.

Mariana, no entanto, não se limitou a reunir somente referências externas, uma vez, para compor sua obra, também se valeu do São Morte, santo guaraní bastante popular na Argentina, representado por um cadáver e uma foice. Os personagens argentinos montam templos e salas para o santo. Rosário, quando visita o Outro Lugar pela primeira vez, teve certeza de que aquele local tinha relação com o santo e com os ossos guaranis, que estavam tentando buscar Juan.

Nesse sentido, percebemos que Enríquez fez uma costura muito rica para criar o universo de sua obra. Ao misturar distintas culturas e referências do horror, a autora também representou como um país latino americano pode ser marcado por diferentes influências.

Diálogos com a realidade e os horrores de cada época

A criação desse universo, contudo, não foi feita descolada da realidade. Ditadura militar (medo, desaparecidos, exilados, crianças sequestradas, corrupção, resistência) e trabalhadores da fábrica de erva mate em situação análoga à escravidão (enquanto os donos do negócio, Mercedes e Alfonso, viviam em sua espaçosa mansão) fizeram parte da dura história argentina e entram em cena no romance de Enríquez.

Por meio de novos personagens, abusos policiais e violências contra a resistência militante voltam a aparecer na narrativa. Fora isso, temos também o caos causado pelos apagões e problemas com energia, além do vírus HIV se espalhando e matando rapidamente.

A exploração do sul pelo norte global também não parece ser uma escolha da autora por acaso. A Ordem, uma organização rica e europeia, conhece a Escuridão em uma viagem à Nigéria, na África. De lá levam esses conhecimentos e uma jovem nigeriana médium para a Inglaterra. Com ela e com os próximos médiuns, realizam cerimônias, até os matarem com a intensidade e frequência dos rituais. Julgam esse um caminho necessário e se consideram merecedores de todo conhecimento e poder que estão adquirindo, embora não os teriam caso não houvessem ido à África ou não explorassem os médiuns, escravizando-os.

O final

Na última parte do livro, Gaspar passa sua juventude morando com o tio, irmão de Juan, e precisa lidar com o trauma de ter perdido Adela dentro da casa. Acompanhamos suas primeiras experiências, sua amizade sendo reatada com os amigos de infância, questões políticas sendo abordadas, e conhecemos um centro cultural importante para a história como cenário.

Essa parte, devo admitir, foi um pouco mais prolixa do que eu gostaria. A minha impressão foi de que poderíamos ter conhecido melhor Tali, a meia-irmã de Rosário. Apesar disso, o final do livro compensa.

Nossa Parte de Noite é um olhar para as atrocidades humanas em prol do benefício próprio e o quão longe vamos para conseguir o que queremos. Mesmo que sem qualquer glamourização ou criação de heróis e heroínas, a resistência e a luta aparecem como respostas às crueldades narradas. Esse é um processo permeado por dor e raiva, cabendo à quem sente tentar destruir o sistema de crueldade, ou ser destruído por ele.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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