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O protagonismo feminino na magia em A Roda do Tempo

A imagem das mulheres com poderes mágicos está presente em diversas culturas. Ao longo da história, essa imagem foi ressignificada e reinterpretada diversas vezes, e as mulheres feiticeiras deixaram de ser vistas e cultuadas a perseguidas, interrogadas e mortas. Na cultura pop, durante muito tempo, vimos a imagem das bruxas como mulheres malignas, que usavam seus poderes em benefício próprio, trapaceavam, enganavam e exageravam no delineador de olhos. As vilãs da Disney que crescemos assistindo são um exemplo perfeito de como a magia frequentemente parecia estar nas mãos erradas quando estas eram femininas.

Quanta diferença entre as mulheres que usavam a magia e os homens! Tão antiga quanto a imagem da bruxa má parece ser a imagem do mago sábio, detentor do conhecimento, de bons conselhos e do bom uso das palavras mágicas. Exemplos não faltam: pense em um homem velho, com uma barba longa e um chapéu pontudo e diversas histórias virão à sua mente.

Em A Roda do Tempo, série da Amazon Prime Video inspirada na série de livros escrita por Robert Jordan, que ainda conta com Brandon Sanderson como co-autor dos três romances finais, vemos uma imagem diferente das mulheres que detêm a magia: elas não são apresentadas como megeras malignas, mas como pessoas a serem respeitadas e reverenciadas, mesmo que a alguma distância. São temidas, sim, mas como são temidos os reis e imperadores — pelo seu poder sobre si mesmas e sobre os outros. Nesse universo, as mulheres são as protagonistas e a maior parte disso é devido à sua habilidade no controle da magia.

A Roda do Tempo

A habilidade feminina com a magia é expressada de várias maneiras. Algumas mulheres conseguem “ouvir o vento”, pressentir as energias dos locais onde estão por meio do farfalhar das folhas, dos ruídos do ar, dos sons das águas. Tecem previsões para o futuro e análises sobre o presente utilizando esse poder. Com seus longos cabelos trançados e rituais de iniciação, essa forma de lidar com a magia parece ser algo mais instintivo, mais próximo das habilidades intrínsecas ao ser de cada uma delas do que a conhecimentos adquiridos com treinamento e períodos de estudo. Para essas mulheres, a magia é usada no cotidiano, ajudando amigos e parentes feridos, fazendo previsões, cuidando de si e dos seus.

Muito diferentes são as mulheres que fazem parte da Aes Sedai, uma grande organização de mulheres temidas e, principalmente, respeitadas. Por meio da canalização do Poder Único, fonte da magia e de seus poderes, essas mulheres se organizam em grupos, cada um com um objetivo diferente em relação à manutenção do poder e do mundo. Todas elas fazem três juramentos: não matar, não forjar armas e não mentir. Para contornar este último em situações perigosas ou quando suas atividades demandam algum sigilo, as Aes Sedai utilizam todas as ferramentas retóricas à sua disposição, criando um discurso cheio de metáforas e figuras de linguagem, o que faz com que a verdade seja frequentemente manipulada.

O papel dos homens que vivem e se relacionam com essas mulheres é defendê-las, mas não como mocinhas frágeis e indefesas. A relação entre homens e mulheres em A Roda do Tempo se assemelha a de um cavaleiro e seu escudeiro: ambos são fortes, mas claramente alguém tem o papel principal. Este elo entre uma Aes Sedai e o seu escudeiro é muito forte e não pode ser desfeito, a não ser a custa de muito sofrimento. Muitos sentimentos estão envolvidos nisso: admiração, respeito, honra, amor (não necessariamente romântico). A vida destes homens é dedicada ao cuidado e à proteção dessas mulheres.

A Roda do Tempo

É especialmente relevante destacar o quanto a imagem de homens que dedicam suas vidas às mulheres pode causar estranheza. Num primeiro momento, a natureza dessa relação não é clara, pois séculos de cultura nos ensinaram que homens e mulheres, em uma narrativa como essa, devem ser um casal envolvidos romanticamente. A inversão de papéis historicamente atribuídos a cada um é um dos pontos que mais se destaca em A Roda do Tempo até agora.

Outro ponto interessante é que apenas as mulheres costumam utilizar a magia. Por meio de flashbacks ficamos sabendo que, no início dos tempos, num período muito anterior ao retratado na série, a magia era compartilhada por todos. Porém, em algum momento, os homens foram contaminados pelas forças obscuras daquele que é conhecido como O Tenebroso. A partir desse momento, os homens são forçados a abandonar o uso da magia para que não perdessem a sanidade. Nesse ponto, homens e mulheres deixam de ser iguais e de compartilhar o uso da magia.

Se a história da cultura no Ocidente e a repressão das mulheres nela teve origem na história de uma mulher que não soube se controlar e comeu do fruto proibido, aqui temos uma sociedade pautada justamente no contrário. Em A Roda do Tempo, os homens foram aqueles que não souberam utilizar os recursos mais preciosos disponíveis e, por isso, perderam o seu lugar e o seu poder na sociedade. Vemos, portanto, uma narrativa em que os papéis de gênero são frequentemente questionados e reinterpretados. Além disso, a magia nas mãos dessas mulheres tem como objetivo criar um mundo melhor e mais justo, muito distantes dos usos egoístas e em benefícios próprio que frequentemente são apresentados.


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