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Stefani Coração de Diamante: a vulnerabilidade de Lady Gaga

“I might not be flawless but you know I got a diamond heart” [“Eu posso não ser perfeita, mas você sabe, eu tenho um coração de diamante”] diz o refrão da primeira faixa de Joanne, álbum mais recente de Lady Gaga, lançado ano passado. Embora pareça uma declaração simples — afinal, poucas pessoas além de Beyoncé podem se dizer infalíveis sem gaguejar —, essa confissão de humanidade surpreende quando olhamos para quem está falando. Minha sequência favorita de Five Foot Two, mais recente documentário sobre a cantora, é uma montagem de vários momentos que mostram Gaga tentando entrar ou sair do carro rodeada por uma horda de fãs, usando seus figurinos marcantes, óculos escuros, perucas absurdas — lembro que, quando ela surgiu, em 2009, sua figura era tão imponente, impenetrável e desconcertante que eu tinha dificuldades até de assimilar como era seu rosto de verdade — intercalada com a filmagem de Gaga encontrando fãs ano passado, pouco antes do lançamento do disco: de short jeans, camiseta branca e delineador borrado, a cantora dá autógrafos e tira fotos com todos, mas seu olhar é vazio. Dá pra ver bem o seu rosto, e ele mostra que ela está perto de ter um ataque de pânico.

Diferente de seus trabalhos anteriores, Joanne foi apresentado ao público como um álbum que mostraria o lado humano de Gaga — batizado em homenagem à sua tia, Joanne, cujo nome ela compartilha, que morreu de forma trágica aos 19 anos — que antes ficava escondido por trás de sua (ou melhor, suas) persona artística. Deste modo, Five Foot Two, produzido por Lady Gaga e dirigido por Chris Moukarbel, é uma peça complementar importante, na qual acompanhamos Gaga durante a gravação do disco, nos primeiros dias de seu lançamento e durante os preparativos de sua apresentação no intervalo do Super Bowl, em fevereiro deste ano. Sou obrigada a concordar com Amanda Petrusich, da New Yorker, quando ela fala a respeito da dissonância entre a narrativa de Gaga para Joanne e o que ele de fato é: depois de quase um ano desde seu lançamento, a ruptura do álbum com o resto de sua discografia não parece tão radical assim — temática e liricamente — com exceção de algumas faixas. Mesmo a mudança estética (saem os figurinos escalafobéticos, entram os shorts rasgados e as camisetas brancas) não deixa de ser calculada — principalmente quando vemos isso ser debatido de forma quase caricata com Gaga na beira da piscina, teatralmente tirando a parte de cima do biquíni, enquanto decide com a equipe sobre qual será o visual de Joanne. 

O documentário, no entanto, parece ser o real ato confessional que a artista havia prometido desde o início. Five Foot Two abre e fecha com um shot do início de sua apresentação no Super Bowl sem, no entanto, mostrar cenas da apresentação oficial. Com exceção de algumas performances, ao longo do filme não vemos nenhum momento da artista que apareceria normalmente na frente das câmeras; é como se ele fosse sobre o que acontece antes e depois que os holofotes são desligados. Nesses intervalos, Lady Gaga está constantemente sendo maquiada e penteada, ao mesmo tempo em que recebe massagens para aliviar as dores da fibromialgia. Na maior parte do tempo ela está chorando ou prestes a cair no choro. A fibromialgia é uma doença cujo principal sintoma é uma dor global, que se manifesta nos músculos e nas articulações, e surge principalmente como efeito colateral da depressão e/ou ansiedade, afetando a população feminina de forma substancialmente maior, o que não parece uma coincidência.

Chega a ser incômodo assistir alguns momentos, como na cena em que ela está no meio de um procedimento médico, tomando injeções para a dor, detalhando a extensa lista de remédios que toma todos os dias, ao mesmo tempo em que alguém faz sua maquiagem para uma entrevista e ela desabafa sobre ter o álbum vazado na internet dias antes do lançamento. É um momento íntimo, vulnerável e degradante e a vontade é de desviar o olhar, como se estivéssemos assistindo a algo que não deveríamos, direto de uma câmera escondida.

É como se fosse 2007 de novo, o grande ano dos escândalos de celebridade, em que Britney Spears foi a pessoa mais fotografada do mundo e teve um colapso público narrados nas capas dos tabloides que a acompanharam em seus piores momentos. Em menor escala, Lindsay Lohan, Paris Hilton e Amy Winehouse passaram por processos parecidos. Mas aqui não é um paparazzi intruso que está registrando tudo como um abutre (em 2009, Lady Gaga já cantava sobre eles), mas sim a própria artista que convidou as câmeras para entrar e permitiu que ficassem. Isso faz toda a diferença.

Essa vulnerabilidade incômoda que Five Foot Two alcança revela uma mulher no meio de uma luta entre seu trabalho como artista, que a coloca numa posição quase divina, carregada de expectativas difíceis de se administrar quando se é apenas humano, e sua vida real, como uma pessoa que sente dores constantes, físicas e psicológicas; está vivendo o melhor momento de sua carreira; sofre por amor e lida com perdas em meio a uma rotina excruciante de trabalho. Um trabalho, aliás, que deriva justamente desses conflitos, que talvez os intensifiquem uma vez que para canalizá-los e transformá-los em arte é preciso que Stefani Germanotta fique em carne viva para que Lady Gaga se construa.

A verdade é que não há uma divisão clara entre uma e outra, e talvez esse seja o ponto mais importante. Five Foot Two não é a primeira obra que se faz a respeito de um grande artista no intuito de humanizá-lo a partir de uma suposta dicotomia entre pessoa e persona artística. Num esforço de resgatar artistas da nossa predatória cultura de celebridades, construímos narrativas que tentam revelar a pessoa por trás da fachada, embaixo do figurino, como se fosse possível alternar entre esses dois universos de forma tão concreta, principalmente quando se é uma estrela da magnitude de Lady Gaga. O que o documentário sugere, e talvez de forma até involuntária, é que essas duas identidades são indissociáveis, existindo de forma concomitante e se retroalimentando mutuamente, algo intensificado, também numa via de mão dupla, quando se lida com um transtorno psicológico.

“Eu só quero escrever músicas e fazer as pessoas felizes. E sair em turnês e ter uma família. E nunca consigo fazer tudo certo ao mesmo tempo. Eu estou sempre numa gravação e recebo notícias incríveis, e minha vida amorosa fica péssima. (…) Sei que queremos evoluir. Estou tentando evoluir. Não posso evoluir até o ponto em que viro Lady Gaga de novo. Porque se for assim, por que gravar esse álbum? Penso que será um dia triste quando me apresentar no Super Bowl. Estou empolgada com isso, mas não posso deixar de reparar que, quando vendi 10 milhões de álbuns, eu perdi o Matt. Vendo 30 milhões, perco o Luc. Entendeu? Consegui o filme, perdi o Taylor. É um carrossel. Essa é a terceira vez que alguém parte meu coração dessa forma. Passo todas as noites sozinha, Brandon. Todas essas pessoas vão embora. Certo? Elas vão embora. E eu ficarei sozinha. Passo o dia inteiro com todos me tocando e falando comigo para o silêncio absoluto.”

Há poucas semanas, Marina Diamandis, do Marina and the Diamonds, anunciou que faria um hiato de tempo indeterminado em sua carreira. No texto que publicou em seu recém-inaugurado blog, Marina explica que sentiu necessidade de parar ao perceber que não sabia mais quem era a pessoa por trás de sua persona artística. Depois de dez anos de carreira, tendo vivido toda sua vida adulta até agora em cima do palco usando maiôs de lamê em cores neon, ela atingiu um ponto em que não sabia mais quem era quando estava em casa assistindo televisão, e portanto tiraria um tempo fora dos palcos para descobrir. Cada artista possui a sua forma de lidar com esse conflito, e isso se complica ainda mais quando se tem o alcance, por exemplo, de Beyoncé. “Beyoncé é vista, mas não ouvida”, diz o título de uma matéria do New York Times que revela como nos últimos anos Beyoncé conseguiu se tornar completamente inacessível ao mesmo tempo em que se transformou na maior artista dos últimos tempos. O controle que ela tem de sua imagem é tão poderoso que é blindado até mesmo da indústria de fofocas. Não importa o que se diga por aí a respeito de seu casamento ou da famigerada briga no elevador (não é insano que mesmo depois de três anos ninguém saiba realmente o que aconteceu além das versões elaboradas artisticamente pelos envolvidos?), é difícil acreditar em qualquer coisa que se diga a respeito de Beyoncé que não tenha sido dito por ela diretamente. E mesmo quando a revelação parte dela, a realidade vem editada e milimetricamente calculada, inclusive esteticamente — vide o editorial feito para revelar sua mais recente gravidez.

Em Life is But a Dream, documentário sobre sua carreira feito para a HBO em 2013, pouco antes do lançamento de Beyoncé, a cantora fala a respeito do trauma que viveu ao sofrer um aborto. Há emoção e verdade ali, da mesma forma como há nas letras de Lemonade, mas a forma como tudo se apresenta ao público é feita com absoluto controle. Isso não significa que ela foi capaz de separar suas identidades, apenas que escolheu mostrar apenas uma — e só o esforço de fazê-lo constantemente, para tudo que acontece em sua vida, já é um indicador que ela nunca deixa realmente de ser Beyoncé. Com Taylor Swift acontece algo parecido, com a diferença de ela escolheu jogar o jogo da mídia, se apropriando do que é dito a seu respeito e destruindo sua própria mitologia por dentro — ao mesmo tempo em que constrói uma nova. Sempre atacada por escrever sobre sua vida pessoal, ela precisou enterrar sua reputação anterior para ter algum controle sobre sua carreira e sua imagem — pena que nem todos percebem isso. A era Reputation, que mal chegou, mostra a radicalização dessa disputa, que cresce na medida em que a carreira de Taylor avança rumo à dominação mundial.

Tanto Taylor Swift como Beyoncé são criticadas por essa impenetrabilidade, acusadas de não serem autênticas. No entanto, quando olhamos para a questão com um viés de gênero, percebemos que o que elas fazem nada mais é do que reivindicar o controle e o poder sobre suas vidas e suas narrativas pessoais — que, mesmo complicadas e bastante públicas, continuam sendo delas antes de qualquer coisa. Esse privilégio sempre foi negado de forma ostensiva a artistas femininas, de Marilyn Monroe a Winona Ryder, Britney Spears e Amy Winehouse. As quatro tiveram suas carreiras eclipsadas por seus fantasmas pessoais, e ainda que todas transcendam seus próprios mitos trágicos, num legado que vai além de histórias sobre transtornos psicológicos, abuso de álcool e drogas, overdose e suicídio, nenhuma delas teve a oportunidade de assumir o controle efetivo sobre suas imagens. Britney Spears até tentou, através do documentário Britney for the Record, em que ela dá a sua versão de tudo que aconteceu em 2007. Embora seja carregado de um esforço sincero em abrir o jogo e negar a posição de vítima, o filme não teve impacto para além da base de fãs da cantora e se mostrou inócuo diante de uma queda tão escandalosamente assistida.

Lady Gaga se mostra consciente desses mecanismos da fama e revela no documentário que em 80% do tempo artistas mulheres estão sujeitas a produtores e outros homens da indústria com poder o suficiente para fazer o que quiserem delas. Sua forma de lutar contra essa estrutura era subverter do jeito mais insano as expectativas que se construíam ao seu redor, principalmente no início da carreira, quando ela se mostrava quase tão impenetrável quanto Beyoncé. Assim, o legado de The Fame e seus sucessores está na forma como eles são um importante comentário sobre o mundo pop e o star system, mas também uma armadura de defesa de sua artista tentando se estabelecer e encontrar sua voz tendo visto tantas mulheres parecidas com ela sucumbirem.

No atual momento de sua carreira, no entanto, Gaga possui controle o suficiente de sua imagem para poder se despir. Ela mesmo fala que esse movimento só foi possível agora porque antes nem o público, nem ela, estavam prontos. Apesar de parecer tão fragilizada em diversos momentos, Five Foot Two é cheio de afirmações poderosas da artista, que disse ter chegado aos 30 anos mais segura e confiante do que nunca a respeito de quem é (e cada vez com menos paciência para bobagens de homens). O sofrimento que vemos não é contraditório, tampouco um lapso de fraqueza, mas sim parte do que é ser humano, principalmente um ser humano que lida com uma doença, e a maneira honesta como ela expõe essas nuances pode ser lidas como uma reafirmação de sua confiança acima de qualquer coisa, pois é preciso muita força e coragem para externar essas dores. Isso não faz de Gaga melhor ou pior que as outras artistas citadas aqui, uma vez que o mais importante é que elas tenham o poder de exercer a escolha de como querem se apresentar e qual a melhor forma de elaborar seus sentimentos e questões de maneira pública.

Five Foot Two mostra uma artista descobrindo que a disputa entre Stefani Germanotta e Lady Gaga sobre o domínio de si talvez nunca tenha fim, e sua resposta a isso é se jogar intensamente. A metáfora do coração de diamante em “Diamond Heart” não é aleatória: diamantes são duros e é preciso lapidá-los para que vejamos seu brilho, um processo que pode ser violento, pois significa retirar camadas, esculpi-las e moldá-las. É por isso que não importa muito se Joanne soa realmente tão confessional ou visceral como ele promete, porque ao longo do documentário temos a chance de ver o quão visceralmente ela se entrega à sua arte e o quão pessoal e intenso foi todo o processo que a trouxe até esse momento. É real para ela, e é isso que vale. Seu brilho continua inquestionável.

5 comentários

  1. SIMPLESMENTE MARAVILHOSO ESSE TEXTO!!! Foi exatamente o que pensei quando assisti o documentário: não é porque a Lady Gaga se mostra frágil em diversos momentos que Five Foot Two é contraditório. Somos todos complexos demais para termos uma única personalidade.

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