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Priscilla, luz e sombra de um astro

Em setembro de 2022, escrevi para o Valkírias sobre Elvis, a biografia de Baz Luhrmann sobre a vida do Rei do Rock. No filme, vislumbramos a luz que o astro projetava no mundo com seu talento e sua paixão pela música, pelos palcos e até mesmo pela fama. No texto, disse que, apesar de mostrar a sombra que tanta luz emanava, o foco do diretor ainda assim foi explicar o fenômeno de popularidade e humanizar o artista, sem deixar de trazer a nós, que não vivemos na mesma época que o cantor, uma experiência musical que homenageasse e ao mesmo tempo reproduzisse, dentro das limitações cinematográficas, a carreira meteórica da jovem estrela.

Muitas controvérsias que cercaram a vida de Elvis foram suavizadas, já que o roteiro joga luz sobre a história de amor entre o jovem e a música ao longo de sua vida adulta, até culminar em sua morte precoce e decadente. Entre as polêmicas não discutidas estava seu relacionamento com Priscilla, uma garota de 14 anos que Elvis conheceu quando tinha 24 anos. O que chama atenção em Priscilla, filme dirigido por Sofia Coppola é exatamente a proposta de trazer luz a esta parte da história que tem contornos sombrios por si só e acabou permanecendo obscura na produção de 2022.

Luz e sombra

Priscilla

Priscilla também é um filme que se propõe a colocar um dos maiores nomes da cultura popular mundial como coadjuvante da história de sua companheira, com quem se casou de fato apenas no momento em que ela completou 21 anos. A filmografia de Coppola é recheada de protagonistas femininas entediadas com as condições confortáveis de suas vidas, e este não é um filme que foge do padrão da diretora. A julgar pelo contato que tenho com a obra da indicada ao Oscar 2004 de Melhor Direção por Encontros e Desencontros, era de se prever que a biografia traria o tema da libertação ou ao menos da mitigação do tédio, mas Sofia trouxe um ponto ainda mais interessante para a construção de sua personagem principal: a autonomia e a ação de uma ainda menina que poderia simplesmente ter sido retratada como mera vítima de abusos. Essa complexidade torna o longa de 2023 um dos melhores da diretora e um ótimo complemento à experiência de êxtase que Elvis provoca em seus espectadores.

A cinebiografia de Priscilla inverte os holofotes, fazendo com que a personagem-título deixe de ser uma sombra do marido — já que muitas vezes ela era entendida como apenas uma bonequinha com quem Elvis brincava de família perfeita. E Elvis, o astro com luz própria, acaba sendo uma sombra sobre a esposa.

Escuridão

Conhecemos Priscilla, interpretada por Cailee Spaeny na Alemanha, onde viveu com os pais no final dos anos 50. A garota, que ainda cursava o ensino fundamental, era filha de um militar do exército estadunidense e conheceu Elvis enquanto este servia ao exército, após a morte precoce de sua mãe. Apesar da interrupção da carreira musical, o astro — interpretado muito mais soturnamente por Jacob Elordi no filme — seguia sendo um nome conhecido também na base militar. O rapaz buscava companhia em festas que dava em sua casa e acabou encontrando a menina e, com o tempo, acabou convencendo sua família a permitir sua presença nas reuniões.

Priscilla

Adaptado do livro de autoria da própria Priscilla, que também assina o roteiro junto a Sandra Harmon e Sofia Coppola, o texto expõe as particularidades dos fatos já bastante públicos sobre o relacionamento dos jovens ícones. E é com uma série de detalhes que mergulhamos na privacidade de um relacionamento público que se constrói no limite entre a moralidade e o sonho.

No primeiro ato do filme, Sofia Coppola causa um grande e proposital incômodo com cenas que mostram como era normalizada a relação com tanta diferença de idade, hoje sem dúvidas vista como um abuso ou pedofilia — por mais que não houvesse relação sexual nos anos iniciais do romance. Aos poucos, e com a sutileza que só as maiores barbaridades necessitam para que aconteçam, a maior parte dos personagens vai aceitando e justificando o interesse de um homem de 24 anos por uma criança.

Por outro lado, o filme não deixa de mostrar também a garota como agente de suas escolhas — ainda que equivocadas, já que uma criança ainda está em formação de suas opiniões, visões e escolhas do mundo. Priscilla não se deixa encantar por ser boba, mas sim porque a situação era realmente a realização do sonho de qualquer garota da época. Nos primeiros momentos, como em toda situação que desanda para o abuso, Elvis se mostra um rapaz sensível, ainda vivendo seu luto e encontrando na vivacidade de Priscilla uma companhia que o consola. Apesar do enorme desconforto pela própria ideia do relacionamento com uma criança, o filme reforça algo que Priscilla sempre disse sobre sua relação: por muitos anos, não houve nenhum relacionamento sexual com a menina, o que é o mínimo de decência que permite que Elvis seja compreendido como alguém que também é bastante abalado emocionalmente. Controverso e complexo, ele também aparece como alguém que tinha um carinho genuíno pela garota e se ela entra em um relacionamento complicado é por sua vontade própria e não porque foi uma simples e indefesa vítima.

Priscilla

Se o futuro marido da garota se mostra um homem minimamente respeitoso no início da relação, os sinais de como o romance poderia se tornar tóxico também já estavam presentes ali. O namorado buscava formas sutis de manipular a menina para cumprir com suas expectativas e desejos de performance de feminilidade. Se a Priscilla de Elvis aparece como uma amiga e suporte do astro, no filme de Coppola, a protagonista é alvo constante da tentativa de Elvis de ter um único domínio e escolha em sua vida, já que não consegue tomar plenamente nenhuma decisão sobre sua carreira, dominada pelo empresário abusivo que gerenciava cada decisão criativa do músico. Assim, o meio do filme mostra aos poucos o lugar onde Priscilla se prende com o passar do tempo. Ao lado do Rei do Rock, ela vive em uma gaiola de ouro: tem tudo que uma garota pode sonhar e os holofotes sobre si, mostrando sua importância e exoticidade, mas não pode voar.

Luminosidade

Como é típico dos filmes da cineasta, o tédio se materializa aos poucos entre o casal. O jovem astro demonstra que o abuso não é necessariamente ligado ao sexo, mas ao poder de ver-se como quem toma decisões na vida da outra pessoa e de mostrar-se com uma família perfeita. Por ser muito jovem e também por estar apaixonada, vivendo em encanto em Graceland — a mítica propriedade de Elvis —, Priscilla cede a algumas das persuasões do namorado, principalmente em relação à aparência e alguns comportamentos. É interessante ver como Priscilla tem suas asas cortadas aos poucos, mas ainda se debate contra as grades de sua gaiola de ouro.

Ainda concluindo o ensino médio, a jovem passa a se destacar por sua relação com a estética, parcialmente moldada pelos desejos de Elvis, mas também bastante influenciada por seu próprio gosto. O filme nos guia para entender como o universo da moda não foi, para a garota, uma mera futilidade ou distração. Sua autonomia, às vezes conquistada pela teimosia, fez com que o estilo se tornasse uma forma de experimentar seus primeiros movimentos até que pudesse alçar seu voo próprio.

Priscilla

A busca de uma vida que não girasse ao redor do marido em meio a um ambiente onde o centro de tudo precisa sempre ser ele passa a ser uma urgência a partir do momento em que os traços perigosos da estrela da música começam a aumentar e afetar não só o próprio Elvis, mas também o relacionamento com Priscilla, que também se torna a mãe de sua filha, Lisa Marie Presley.

O ambiente sufocante e solitário vai se tornando insuportável para a mulher, até o momento do divórcio que é retratado como um momento de libertação e início de uma nova vida que gira ao redor apenas de si mesma e da filha. Agora, a luz não está mais sobre o marido, e sim sobre a protagonista.

Brilho e breu

Priscilla Beaulieu busca ser ela mesma e livrar-se do papel enfadonho de Priscilla Presley, aquela que é apenas a esposa do ícone do rock. Não é fácil assumir a si mesma como protagonista da própria vida, mas a Priscilla que acompanhamos o faz desde sempre nas possibilidades que tem e precisa salvar a si mesma, quase em um conto de fadas reverso em que a mocinha dispensa o herói e se torna a própria salvadora.

Se Elvis é um retrato luminoso da fama, Priscilla é um canto escuro da imagem que precisa, no entanto, existir para que um retrato seja visível. O palco e os bastidores precisam ser observados para o entendimento total do fenômeno Presley, que jamais seria o mesmo se Priscilla não estivesse lá. O filme de Sofia Coppola é um momento de exposição de uma verdade incômoda, mas que não deixa de ser parte de quem o rei do rock foi. O longa é uma parte da vida dele que precisa ser contada para que possamos lançar um olhar justo ao homem com seus defeitos e qualidades. E, às vezes, essa justiça só acontece quando se inverte a direção das luzes e podemos ver o que estava na sombra, ou seja, quando a coadjuvante se torna protagonista de sua própria historia.