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Tornar-se mãe, tornar-se pessoa: Elsa Gardner e a linha tênue entre as duas realidades

Embora Atypical seja uma série de 2017, a sua quarta e última temporada está marcada para ir ao ar apenas em 2021, o que nos dá tempo de folga para conversarmos sobre a construção de seu enredo e, mais do que isso, das suas personagens. Além de retratar a vida de Sam (Keir Gilchrist), um jovem de dezoito anos que está dentro do espectro autista, e de Casey (Brigette Lundy-Paine), a jovem que está tentando entender a sua sexualidade e o seu lugar no mundo, a série nos presenteia com incontáveis personagens secundários cujo desenvolvimento é, senão impecável, pelo menos extremamente bem feito. Uma dessas histórias é a de Elsa Gardner (Jennifer Jason Leigh), mãe de Sam e Casey e dona de uma das grandes tramas que movimentam o enredo da produção norte-americana.

Elsa poderia ser, como com frequência acontece em produções voltadas para o público jovem, apenas a mãe dos protagonistas — uma figura que aparece para proibir e repreender e que deve ser superada em nome de uma independência maior dos dois adolescentes. Entretanto, sua presença em Atypical, embora sempre voltada para o núcleo familiar, ganha dimensão quando passamos a descobrir, aos poucos, que a maternidade e a família ocuparam lugares centrais em sua vida porque ela precisou abdicar de uma série de outras funções sociais — seu emprego, seus hobbies etc. — para conseguir se tornar a mãe que eles demandam que ela seja.

Pintada como uma versão contemporânea da perfeita dona-de-casa dos anos 1950, durante os primeiros episódios da série, Elsa aparece sempre na cozinha, vista como alguém dedicada aos filhos e que cuida da casa porque gosta, não porque precisa. Sabemos, desde o começo, que Sam é um jovem autista buscando alcançar mais independência, que Casey é alguém com problemas de controle de raiva e que Doug, seu marido, está insatisfeito com o casamento que eles estão levando porque a prioridade de sua esposa não é um “tempo a dois”. Assumimos, portanto, que a sua história se reduzirá a isso. Não demora para que fique claro, entretanto, que esses são apenas os efeitos de uma existência mais complexa, marcada por um profundo apagamento de suas vontades, até que não reste em Elsa a compreensão de que ela é, ainda, qualquer outra coisa que não mãe e esposa.

Tornar-se “Mãe”: uma trajetória invisível

Sam é diagnosticado como autista quando ainda é uma criança pequena. Doug (Michael Rapaport), seu pai, não lida bem com a realidade do filho, sentindo-se incomodado com suas limitações e com o modo muito metódico com que ele precisa executar tarefas simples. Em dado momento, decide que precisa de um tempo longe de tudo aquilo — das consultas, das crises, da própria casa — e deixa sua esposa sozinha com a criança. É esse, acredito, o momento em que Elsa torna-se a Mãe, com M maiúsculo, que conheceremos na série anos mais tarde.

Para tomar conta de Sam, que precisa de atenção constante e cuidados especiais, Elsa precisa abdicar da sua vida pré-diagnóstico. Ela não pode mais trabalhar, não pode mais ir às aulas de dança, não pode mais priorizar sua vida amorosa, não pode mais construir algo que chama de seu. Embora cuidar do filho devesse ser um trabalho em conjunto — com seu marido se responsabilizando pela criança em determinados momentos para que ela pudesse continuar a ser pelo menos parte da pessoa que foi um dia —, Doug toma a decisão de ir embora durante oito meses, e, assim, resta a Elsa fazer tudo sozinha. Mesmo quando seu marido volta, já não é possível criar uma rotina em conjunto: primeiro porque foi preciso aprender a dedicar toda a sua vida a Sam; segundo porque já não é mais possível confiar que ele não irá embora outra vez, de repente.

Essa virada na vida de Elsa é significativa para as suas atitudes futuras, quando Sam já tem dezoito anos e Casey já é uma adolescente com muita raiva acumulada. Afinal, depois de passar tanto tempo sendo alguém cujo objetivo principal é garantir que seus filhos vivam da maneira mais segura e confortável possível, seria pedir demais que ela conseguisse enxergar em si mesma qualquer outra coisa que não o que a sua família fez questão de repetir que ela era: Mãe.

Elsa Gardner

Dessa forma, é possível enxergar a necessidade de independência de Sam e a rejeição declarada de Casey como mais do que situações comuns na vida de quem cria dois adolescentes. Para Elsa, a primeira representa um fim no maior e mais intenso trabalho da sua vida, um que a moldou enquanto mulher adulta e que ocupou todas as suas horas; um fim, portanto, dela mesma, da pessoa em quem ela se transformou. A segunda, por sua vez, representa uma aversão que ela mesma sente à pessoa que inevitavelmente teve de ser, e um bloqueio em assumir que talvez ela tenha abdicado mais do que o necessário. Além disso, Casey escancara as falhas que Elsa cometeu com sua filha mais nova — a sua ausência, sua defesa desmedida de tudo que o filho faz ou pensa que não é a mesma que ela dá à filha —, servindo como um grande lembrete de que, por mais que tenha tentado e por mais que tenha desistido das suas coisas e de sua personalidade, ainda assim ela não foi capaz de ser a mãe perfeita para ambos.

Tornar-se Mãe, sob o custo de deixar de ser uma Pessoa para que isso aconteça, cobra de Elsa, muitos anos depois, que ela olhe para si mesma e se pergunte: agora que não preciso mais ser a mãe que fui, quem eu sou? Exige, ainda, que ela imagine outras possibilidades de vida para si: uma em que ela não tenha desistido de quem é; uma em que ela ainda sinta prazer; uma em que seus filhos não tenham demandado todo o seu tempo e atenção, e apenas o seu, porque Doug não parece ter sofrido a mesma exaustão enquanto se tornava a pessoa favorita de Casey — a que consente, a que não se preocupa, a que não se envolve — e alguém de quem Sam não parece lembrar em momentos de crise intensa, ainda que eles tenham uma relação harmoniosa.

Sam e Casey: distâncias e aproximações

Enquanto Sam e Casey são dois jovens em um difícil processo de construção de suas identidades, Elsa está passando pelo processo inverso: é preciso que ela desconstrua tudo o que passou anos sendo e, a partir daí, olhe para si mesma e para a sua família de uma forma completamente diferente.

Sam sempre foi sua pessoa favorita. Com o diagnóstico e o abandono de Doug, era inevitável que eles se aproximassem e criassem um laço firme, não só porque Sam passou anos sendo efetivamente dependente da mãe, mas porque essa dependência cria em Elsa um senso de validação que ela não obtém mais em nenhuma outra área de sua vida. Desse modo, enquanto a sua existência foi suficiente para que o filho se sentisse feliz e completo, ela também se sentia da mesma forma.

Entretanto, com a vida adulta chegando, Sam começa a ter outras necessidades: mais independência, uma vida sexual, um destino para chamar de seu. São processos normais de jovens adultos e, mais que isso, são processos importantes para uma pessoa neuroatípica que está tentando levar uma vida que se aproxime do que é considerado comum. Para Elsa, porém, essa independência indica que ela não é mais capaz de ser tudo o que o seu filho precisa, e que, de fato, está se tornando um empecilho para que ele alcance seus desejos mais maduros.

Assim começa um processo de distanciamento entre os dois personagens. Embora fique claro que Sam ainda é apegado à Elsa, e confia nela com todo o seu coração, ele exige que ela lhe dê a independência e o espaço de que nunca antes precisou. Ela, por sua vez, precisa elaborar de outras formas a sua existência na vida do filho, perdendo medos enraizados na sua personalidade e entendendo que ele é capaz de crescer sem que ela o puxe pela mão, mas que isso não faz com que ela seja uma figura absolutamente dispensável.

Com Casey, o enredo é absolutamente diferente. Mãe e filha nunca foram próximas e a jovem não deixa de expressar o quanto discorda ou desaprova as atitudes da mãe, tentando ao máximo afastar-se dela e dos seus comportamentos. Contudo, embora não perceba, a adolescente tende a cometer erros muito similares aos de sua mãe durante o difícil caminho que é se tornar uma pessoa, aproximando-se de Elsa enquanto cresce.

Elsa Gardner

O exemplo mais claro dessa aproximação é o da traição. Se Elsa é culpada pela filha por trair Doug com Nick (Raul Castillo) e, consequentemente, “destruir” a vida de toda a família, também Casey trai seu namorado, Evan (Graham Rogers), com a sua melhor amiga, Izzie (Fivel Stewart), e cria um inferno particular na vida das pessoas mais próximas a ela. Elsa o faz porque se sente abandonada, porque busca construir uma vida que não tenha nada a ver com a Mãe que é em casa, porque precisa ser lembrada de que ainda é capaz de sentir e fazer coisas que gosta e que a divertem — efeitos do processo de desconstrução, de voltar a ser uma Pessoa. Casey o faz porque está confusa sobre os seus sentimentos, porque não entende a própria sexualidade e porque essa é a forma que ela encontra de lidar com esse caos — efeitos do processo de construção, de começar a ser uma Pessoa. Se é verdade que mãe e filha estão andando em direções opostas, também é verdade que elas se encontram no meio do caminho. Talvez por isso seja doloroso olhar uma para a outra, ouvir as acusações, sentir na pele o peso que é conviver com as próprias decisões.

A relação da Elsa com seus filhos é apenas um dos grandes exemplos de onde Atypical acerta na hora de construir uma personagem que também é mãe. Sua complexidade vai além disso, é claro, passando pelos conflitos com Doug, pelas descobertas que começa a fazer ao longo das segunda e terceira temporadas, pelos sacrifícios a que se propõe passar e pelos que determina não ser capaz de atravessar mais uma vez. Ao longo dos episódios, somos apresentados ao seu lento e difícil processo de descoberta de si mesma, e, embora seja fácil apontá-la como a grande vilã das histórias, a traidora do lar e dos princípios, a mãe insuportável etc., é mais justo enxergá-la como ela se apresenta: em camadas, nem sempre certa, mas sempre disposta a corrigir seus erros.

Como mãe, como pessoa e como personagem, Elsa é um retrato de uma batalha comum às mães contemporâneas, que carregam sobre os ombros a responsabilidade de transformar seus filhos em indivíduos completos sem se perder no caminho. Espero ansiosamente que a quarta temporada dê a ela o final merecido, mas, independentemente do que acontecerá no futuro, até agora ela é uma razão importantíssima para que Atypical não passe despercebido pela lista de títulos disponíveis na Netflix.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

3 comentários

  1. Seu texto me deixou com vontade de retomar a série.
    É ótimo esbarrar com personagens-mães que sejam bem construídas, complexas, que fujam do clichê deusas/santas.
    Obrigada por notá-las e dividir suas impressões! <3

      1. Essa série é muito boa mesmo. Não tenho muita paciência para maratonar, mas Atypical eu devorei! Acabei agora pouco.
        Fico bastante incomodada com a forma que Elsa é tratada na série. Seria maravilhoso se ela pudesse ter um momento de desabafo e de chacoalhar a Casey e o Doug.

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