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In The Heights: o que quer dizer pequeno sonho?

Com que idade nós aprendemos a sonhar? Não aquele sonho inconsciente, de olhos fechados durante o sono profundo. Falo daquele que acontece durante o dia, quando o sonho é quase uma fantasia daquilo que a vida poderia ser, mas não é. Confesso que não lembro quando foi que comecei a sonhar de olhos abertos, mas In The Heights me fez lembrar de vidas que não vivi e sonhos que não realizei.

O filme é baseado na peça de mesmo nome, sucesso da Broadway e vencedora do Tony Awards, que foi escrita e protagonizada por Lin-Manuel Miranda, o queridinho da indústria musical. Planos de adaptar a obra já existiam em 2008, mas foi apenas em 2019 que as filmagens realmente começaram com Jon M. Chu, diretor de Asiáticos Podres de Rico, por trás das câmeras.

Depois de ter sido adiado devido à pandemia, In The Heights (2021) chegou aos cinemas com adaptações que Miranda não poderia ter previsto 13 anos atrás. Enquanto na peça as questões sociais estavam presentes como pano de fundo para os personagens, no filme questões como gentrificação, racismo e imigração são escancaradas e ativamente abordadas ao longo de todo o musical. Afinal, estamos falando de uma Nova York sob o governo Trump em que as políticas públicas e discursos contra os latinos foram bem mais agressivos do que quando a peça original foi criada. Inclusive, na versão original da música “96,000” o ex-presidente dos Estados Unidos é até mesmo mencionado, mas apenas como uma simbologia de riqueza e popularidade — na nova trilha sonora, essa menção foi substituída.

“When I wrote it, he was an avatar for the Monopoly man. He was just, like, a famous rich person. Then when time moves on and he becomes the stain on American democracy, you change the lyric. Time made a fool of that lyric, and so we changed it.” [Quando eu escrevi a música, ele era um avatar do homem do Banco Imobiliário. Ele era apenas um rico famoso. Então, quando o tempo passa e ele se torna a mancha na democracia americana, você muda a letra. O tempo fez esse verso bobo, então nós mudamos.] — Lin-Manuel Miranda

A história se passa em Washington Heights, bairro em Nova York onde Lin-Manuel Miranda cresceu e que ficou famoso por ter sido referência da imigração latina no início do século XX. Através de músicas vibrantes, bem diferentes dos ritmos apresentados em Hamilton, conhecemos um pouquinho mais sobre as pessoas que vivem ali. Como já é clássico de Miranda, a história é muito mais focada nos personagens e as possibilidades de identificação com a audiência e, em In the Heights, o ponto chave é o sonho de cada um.

Usnavi, interpretado por Anthony Ramos, sonha em um dia voltar para a República Dominicana, país de origem dos seus pais. Usnavi foi criado pela Abuela Claudia (Olga Merediz), a “mãezona” de todos que vivem ali no bairro, e trabalha com o primo Sonny (Gregory Diaz IV) em uma feirinha que fica ao lado da automobilística “Rosario’s”. A loja pertence a Kevin Rosario (Jimmy Smits), pai de Nina (Leslie Grace), que tenta de tudo para conseguir pagar a faculdade da filha. É lá que Benny (Corey Hawkins) trabalha e sonha em um dia ganhar notoriedade para abrir sua própria empresa. Na mesma esquina, está o salão de beleza do bairro que está ruindo aos poucos por não conseguir pagar os preços altíssimos devido a gentrificação. Carla (Stephanie Beatriz), Daniela (Daphne Rubin-Vega) e Cuca (Dascha Polanco) sabem tudo sobre todos, já que é no salão onde as fofocas correm livremente. Vanessa (Melissa Barrera) também trabalha ali. É nesse quarteirão que In The Heights é ambientalizado, onde a narrativa de cada um está entrelaçada.

Nos minutos iniciais, Usnavi explica para algumas crianças o que significa “El Sueñito” e, depois de ser questionado se existia uma explicação por trás da palavra, ele conta a história do bairro que estava desaparecendo, mas que era formado por sonhadores. Todo dia, Usnavi vende um ticket da loteria para os moradores do bairro até que ele recebe a notícia de que o bilhete premiado veio da sua loja — mas ninguém sabe quem foi o ganhador. Apesar disso, é essa esperança de que a vida pode mudar rapidamente que alimenta os sueñitos dos moradores de Washington Heights.

Como sempre, Jon M. Chu não consegue ser menos do que extravagante e em In The Heights, os atos musicais fogem da obviedade Hollywoodiana, com momentos que extrapolam a realidade. Segundo Chu, as cenas são fruto da imaginação dos personagens e, por isso, compõem uma narrativa individual. Partindo desta ideia, o filme usa alguns efeitos especiais para criar uma atmosfera fantasiosa para as canções que conversam com a irrealidade dos sonhos individuais de cada um. No filme, os sonhos são utópicos, uma válvula de escape, uma idealização daquilo que a realidade poderia ser, mas não é. Os personagens endeusam o futuro constantemente em uma ideia errônea de que o presente nunca será bom o suficiente. Existe algo mais humano do que isso?

Confesso que as duas personagens femininas principais, Vanessa e Nina, são as que mais me intrigam. Vanessa trabalha no salão, mas sonha em ser estilista bem longe de Washington Heights, enquanto Nina é referida como “the one who made it out”, a primeira a sair do bairro para fazer faculdade em Stanford, do outro lado do país, mas que, ao voltar para Nova York, percebe que a realidade do sonho não é tão boa assim. Sonhos tão opostos, mas tão parecidos.

Vez ou outra eu me pego pensando como a Vanessa, mas aí percebo que, na verdade, eu sou a Nina — já saí de casa, mas mesmo assim vivo sonhando de olhos abertos com outra vida, outra cidade, outros planos. Me identifico até mesmo com Usnavi, que acredita que só será feliz quando estiver em um certo lugar, com certas pessoas, sem perceber que ele já é feliz onde está. Quão longe da nossa casa nós precisamos ir para nos sentirmos em casa?

Para além dos sonhos, existe um debate muito profundo sobre pertencimento. Afinal, estamos falando sobre uma comunidade latina em um país estrangeiro com uma cultura completamente diferente. Como chamar de lar um lugar que não te pertence? Mais que isso, se você chama de lar um lugar que não te pertence, está traindo suas origens?

Entretanto, ainda que o filme tenha sido um novo passo para uma representação que fuja do estereótipo latino enraizado em Hollywood, o debate sobre colorismo veio à tona depois que a jornalista Felice Léon pontuou a falta de atores afro-latinos como personagens principais. Não é a primeira vez que Jon M. Chu está no centro destas contradições — Asiáticos Podre de Ricos também foi alvo de críticas pela representação de Asiáticos-Americanos e a controvérsia da birracialidade do ator principal, Henry Golding.

Ainda que seja irreal esperar que um único filme preencha o vazio cultural deixado por décadas de exclusão de Hollywood, é fundamental que os pontos fracos sejam pontuados especialmente quando diversidade é a grande questão em In The Heights. Sobre o assunto, Lin-Manuel Miranda disse que escreveu a peça porque sentia que as pessoas não o viam e, vinte anos depois, esse ainda é o desejo: que todos sejam representados.

Apesar do debate racial, o filme é uma grande celebração dos nossos sonhos enquanto explora o que significa estar em casa e o infindável questionamento do que é felicidade. In The Heights relembra o telespectador constantemente que “casa” não é um lugar físico, mas, na verdade, um acumulado de experiências com aqueles que amamos que faz cada lugar especial. Como o próprio Usnavi diz quando, finalmente, entende que não precisa ir para a República Dominicana para ser feliz: “encontrei minha ilha, eu estive nela o tempo todo: estou em casa”.