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Tash e Tolstói: uma honestidade aterrorilhosa

Ser adolescente nunca é fácil. Todos os seus sentimentos são confusos e explosivos, o motor de tudo é o tédio, o drama e, claro, os hormônios, que caminham de mãos dadas prontos para uma destruição. A adolescência funciona como um grande amplificador das nossas experiências nessa época, fazendo com que vejamos e sintamos tudo com uma magnitude muito maior do que em qualquer outro momento de nossas vidas. Não é fácil ser adolescente, mas talvez seja ainda pior na era digital. Como se não bastasse todos os sentimentos e hormônios, a internet bagunça todas as noções de realidade, nos atingindo forte no estômago como uma bala que ora acreditamos ser perdida ora parece direcionada. De qualquer maneira, é impossível se esquivar, pois ser adolescente nos novos anos 10 é, necessariamente, viver o on-line e off-line simultaneamente — e os dois são extremamente reais.

Cada vez mais se torna difícil ignorar a internet ao se pensar adolescência, e isso faz com que escrever livros sobre o assunto seja um grande desafio. A internet — assim como o nosso relacionamento com ela — muda muito rápido, todos os dias, e se manifesta de forma diferente para cada pessoa ou grupo. Além disso, entender a internet como um aspecto onipresente na vida das pessoas, como é o caso de muitos adolescentes, é entender que ela muda a forma como nos comunicamos e nos relacionamos com o mundo, com nós mesmos e com os outros. A realidade da internet certamente limita muitas histórias — Eleanor e Park, de Eleanor & Park, de Rainbow Rowell, provavelmente não teriam começado a conversar no ônibus da escola se Eleanor pudesse simplesmente pesquisar no Google quem eram os Beatles —, mas, ao mesmo tempo, abre espaço para muitas possibilidades, como é o caso de Tash e Tolstói, de Kathryn Ormsbee, novo lançamento da Editora Seguinte.

Tash Zelenka tem algumas coisas a nos dizer sobre sentimentos complicados e internet. Aos 17 anos, ela está em seu último ano no ensino médio, começando a caminhar em direção à pessoa que pretende ser: uma estudante de cinema da Vanderbilt, faculdade que fica a uma distância desejável da cidade onde ela mora, Lexington, no Kentucky. Mas, aproveitando que não é uma adolescente do século XIX, Tash não precisou chegar na faculdade para começar a realizar seus projetos como jovem cineasta: ela e sua melhor amiga, Jack, estão por trás de uma adaptação moderna de Anna Kariênina, a websérie Famílias Infelizes, cujo roteiro as duas escreveram juntas. É uma produção de baixo orçamento que tinha um público modesto, porém fiel, no YouTube, mas tudo isso muda quando uma das estrelas do universo das webséries indica o trabalho delas em seu canal, fazendo com que Famílias Infelizes viralize rapidamente e tudo mude em uma velocidade impressionante.

O número de visualizações de seus vídeos aumenta de maneira constante e vertiginosa, o canal no YouTube ganha milhares de novos assinantes e vira assunto nas redes sociais; o romance entre Lievin e Kitty, personagens da websérie, ganha um ship oficial, #kevin, porque todos sabemos que qualquer casal fictício (ou até mesmo da vida real) só existe de verdade quando a internet cunha seu shipname oficial. Gifs, fanarts, tuítes, retuítes, e-mails de fãs, pedidos de entrevista e indicações a prêmios: de repente, o que parecia ser apenas um projeto de um grupo de adolescentes ganha uma nova dimensão — a dimensão das coisas sérias da internet que transforma pequenos projetos pessoais em carreiras inteiras. É isso que todos os dias vemos acontecer com os blogueiros e youtubers que vimos crescer. Tavi Gevinson, Bruna Vieira, Jout Jout — com todas elas aconteceu a mesma coisa. A própria autora do livro, Kathryn Ormsbee, fala a partir desse lugar conhecido — ela também fez parte da produção de uma websérie de baixo orçamento, Shakes, um mash-up moderno de algumas obras de Shakespeare, o que lhe confere um conhecimento de causa ao falar sobre as diferentes nuances de uma vida on-line. É esse também é o mundo de Tash no livro, a vida que ela quer viver e o caminho que ela deseja seguir, mas nem todos enxergam a experiência da mesma forma.

Jack, por exemplo, acha que ela está levando essa repercussão a sério demais, principalmente no que diz respeito à reação dos haters que inevitavelmente surgem. Sua irmã, Klaudie, decide abandonar a produção antes do fim das filmagens para aproveitar melhor as férias antes de ir para a universidade. E seus pais, por mais que sempre tenham apoiado o projeto, acham que é irresponsabilidade da parte de Tash usar o dinheiro que ela estava juntando para pagar a faculdade numa viagem para participar do evento de youtubers em que Famílias Infelizes foi indicada ao prêmio Tuba Dourada de Melhor Série Estreante. Sem ter ninguém em sua vida que encare a viralização da websérie da mesma maneira, Tash sente a fundo o que, de alguma maneira, todo mundo que gosta muito do mundo virtual aprende: ter uma vida na internet implica em ter que lidar com essas diferentes dimensões, on-line e off-line, que existem de maneira simultânea e são percebidas pelas pessoas de forma distinta.

Ao contrário do que dizia o senso comum do início dos anos 2000, a vida on-line não é uma dimensão falsa da realidade. Tampouco podemos acreditar que vida virtual e vida real seja uma dualidade oposta e excludente. Para os pais de Tash, e adultos de modo geral — sendo os adultos pessoas de uma geração anterior à nossa, que chegou na vida adulta antes da internet e das redes sociais serem o que são hoje —, é difícil enxergar a fusão entre as duas de maneira tão natural, e tudo bem, não é o mundo deles, não é a realidade na qual eles construíram suas referências. No entanto, para Tash, seus amigos, e toda a geração millennial, jovens que cresceram com a internet e foram educados através dela, que essas duas realidades estejam conectadas é natural. Para muitos de nós, um mundo mediado por telas e notificações é o único mundo que lembramos, ou mesmo, conhecemos.

Quando o russo Leon Tolstói (Leo para Tash e demais leitores íntimos) escreveu Anna Kariênina, ainda no século XIX, a internet ainda estava longe de existir, mas em seu longo romance o autor retrata muito bem outra dimensão paralela da realidade, que é a vida em sociedade, retratada no livro (e muito bem representada na adaptação para o cinema feita em 2012 por Joe Wright) como uma construção ou, melhor ainda, performance. Os personagens de Anna Kariênina vivem uma vida dupla: aquela que é pública, aos olhos de todos, com casamentos admiráveis, maridos perfeitos, crianças educadas e, no geral, famílias felizes; e aquela vivida na privacidade dos seus sentimentos, em que a personagem título, dama da sociedade e admirada por todos, é, na verdade, profundamente infeliz e frustrada, uma heroína trágica que abandona a segurança de um lar e de um nome para viver um romance extraconjugal e termina morta nos trilhos de um trem.

Esse caráter duplo da história e dos personagens não implica na validade absoluta de um para o detrimento automático de outro. Viver, e principalmente viver em sociedade, significa administrar essas identidades e realidades, e entender que aquilo que somos é um produto desses meios nos quais circulamos. Com a internet funciona da mesma forma. A performance social descrita por Tolstói pode ser comparada com a maneira cuidadosa com a qual construímos nossos perfis e fazemos a curadoria de nossas fotos e interesses; fragmentos da nossa personalidade que, sozinhos, não dizem tudo a respeito de quem somos, mas que nem por isso deixam de ser parte indissociável de nossa identidade. Parece complicado porque é mesmo muito complicado, e enfrentar tudo isso na adolescência, quando tudo é amplificado e mais confuso, quando ainda não sabemos quem somos, deixa as coisas ainda mais enevoadas. Isso não significa, de forma alguma, que aquilo que sentimos, dentro ou fora da internet, com ou sem a mediação de hormônios adolescentes, seja menos real.

Entretanto, Tolstói escreveu Anna Kariênina com o intuito de fazer uma crítica social e de costumes, destacando o quanto aqueles personagens estavam mentindo para si mesmos e para os outros. A genialidade do romance está na maneira como ele lança luz sobre a intensa vida interior dos personagens, uma dimensão que não acessamos quando apenas observamos suas vidas do lado de fora. Não é à toa que a frase mais famosa do livro diz que todas as famílias felizes são iguais; mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Cansado dessa vida, o próprio autor largou tudo e foi morar no campo, recusando a autoridade de governos e religiões organizadas, e também a ideia de propriedade privada e exploração pelo trabalho. Ele resolveu viver, enfim, a sua verdade, ainda que isso significasse deixar pra lá sua esposa e sua família — e, no século XIX, quando um homem decide deixar a esposa pra lá, era lá mesmo, sem dinheiro e à sua completa revelia.

Em Tash e Tolstói, a intenção de Kathryn Ormsbee não é fazer um juízo de valor da famigerada vida real sobre a internet, menos ainda colocar nos ombros de sua protagonista adolescente a responsabilidade de resolver sozinha o conflito entre o que queremos, o que fazemos, o que de nós mostramos para os outros e o que deixamos escondido, o abismo entre o que pensamos e como agimos. Seu trabalho é mostrar como isso tudo é complicado e Tash é só uma garota de 17 anos tentando se encontrar como artista, que quer ser uma boa filha, uma boa amiga, uma boa irmã e também uma boa pessoa para ela mesma. Sua jornada na história é rumo à honestidade com seus sentimentos e toda a bagunça que é vivê-los quando dividimos o mundo com outras pessoas, dentro e fora da tela do computador. É sua abertura para esses sentimentos que permite que ela entenda um pouco melhor como tudo isso funciona, como os outros funcionam e como eles, assim como ela, carregam todo um mundo dentro de si que orienta a forma como cada um age, mas que nem sempre fica claro apenas através de suas ações. É sua disposição para essa honestidade que a salva de terminar a história como Anna Kariênina — isso e, claro, o fato de que ela não é uma mulher adúltera na Rússia do século XIX. É porque Tash assume seus próprios problemas, sua própria infelicidade, sem desculpas para si mesma, que ela enfim consegue se conectar com aqueles que estão à sua volta.

“Não tenho argumentos contra isso. Abro minha Coca e tomo um gole grande.

— Então, respondendo sua pergunta — George continua. — É melhor ser honesto que feliz. Porque, mesmo que a princípio você seja feliz, uma hora ou outra vai ter que ser honesto consigo mesmo.”

Há quem diga que a dificuldade atual de se conectar com os outros, com o mundo e consigo mesmo é culpa da internet, mas o que Tash e Tolstói nos mostra é que não é bem assim que funciona. É claro que a internet ajuda a dar uma dimensão desproporcional a certos aspectos da vida: com a viralização da websérie, por exemplo, Tash vê um amor e um ódio gigantesco surgir por parte do público, algo que é muito difícil de não se tomar para o pessoal, e que acontece em grande parte porque a internet facilita ignorar que, por trás de um username, existe uma pessoa de carne e osso, tridimensional e cheia de sentimentos complexos. Por outro lado, é também a internet que proporciona a formação de comunidades que nos abraçam e nos lembram nossos sentimentos são reais e válidos quando não temos pessoas parecidas conosco em nossas vidas off-line. É, por exemplo, a comunidade do YouTube que certifica Tash de que ela não está errada de levar a websérie a sério, mesmo que sua família e seus amigos não entendam o peso que ela dá ao projeto.

É também na internet que Tash se descobre assexual heterorromântica. Aquilo que nunca ensinaram em sua vida off-line, ela aprendeu on-line depois de muito tempo se sentindo estranha: é possível não desenvolver atração física pelas pessoas, e tudo bem. Isso não significa que você está quebrado ou errado, só significa que você é assexual (e não assexuado). Assim como é possível se atrair por diversos gêneros e isso ser fluido ou não, o mesmo acontece em relação à frequência com que alguém sente atração sexual. É como se a capacidade de sentir atração fosse uma paleta que vai do branco ao preto: na ponta branca, temos as pessoas que conseguem desenvolver atração sexual por qualquer pessoa, sem nenhum tipo de pré-requisito, os alossexuais. São aquelas pessoas que conseguem olhar para alguém, achar bonito e sentir atração a um nível sexual. Na outra ponta, a preta, temos as pessoas que simplesmente não conseguem desenvolver atração sexual por ninguém. Elas podem até apreciar a beleza de alguém, mas isso não faz com que tenham vontade de se relacionar sexualmente com a pessoa. Entre esses dois extremos, existe toda uma área cinza, onde encontramos as pessoas que conseguem desenvolver atração sexual por outras, mas nem sempre. São pessoas que não conseguem sentir atração por alguém logo de cara, mas que tampouco nunca a desenvolvem. O exemplo mais difundido é o caso de pessoas demissexuais, que só conseguem desenvolver atração sexual se têm um laço emocional estabelecido com a outra pessoa. Não é uma questão de preferência ou escolha, não é algo que a pessoa tem que testar para saber, é apenas como a atração sexual se manifesta na pessoa. Da mesma maneira que uma pessoa sabe se é gay, hétero, bi ou pan, uma pessoa simplesmente sabe se é alo, demi, assexual ou pertencente ao espectro da área cinza, mesmo que não necessariamente demissexual.

No caso de Tash, ela não desenvolve atração sexual por ninguém. Ao mesmo tempo, ela consegue se apaixonar por pessoas (em seu caso, homens). Ela não quer transar com eles, mas sente aquelas borboletas no estômago que tanto se fala na literatura. Para muitas pessoas — inclusive os amigos de Tash — é difícil de entender isso, porque o padrão da nossa sociedade é a alossexualidade romântica, ou seja, o que nos ensinam é que todos nós conseguimos desenvolver atração sexual e romântica. Então, nessa lógica, se você ama alguém, você vai querer demonstrar isso beijando e transando com a pessoa, porque vai se sentir atraída por ela. Mas isso não vale para todo mundo. Pode ter quem não se apaixone por ninguém (arromântico) ou quem não se sinta atraído por ninguém (assexual). Mas isso não é divulgado por aí. O máximo que nos contam é da existência de bissexuais, e mesmo assim já é uma sexualidade super difícil de ser aceita — imagina como é para quem não sente atração nenhuma por ninguém.

É assim que a internet se torna tão importante e confortável; nela encontramos pessoas também fora do padrão que nos ajudam a nos entender melhor, nos apresentam mundos que nem sabíamos que também eram os nossos, ou dos nossos amigos. Cria-se uma comunidade on-line, e ela é real exatamente porque é ali que descobrimos que nós somos reais e nossos sentimentos são válidos. Aprendemos sobre nossas identidades e as consequências disso para nós mesmos ali, e é isso que vemos Tash ter que lidar ao longo do livro de Kathryn Ormsbee. Não é um livro sobre se descobrir assexual ou sair do armário de tal maneira. A história começa com Tash já sabendo de sua identidade e já tendo contado sobre o assunto para os melhores amigos, mesmo que não tenha sido da melhor maneira possível. No fim das contas, sua trajetória é muito mais sobre aprender a lidar com as consequências de sua identidade e seus sentimentos do que qualquer outra coisa.

Tash e Tolstói é um livro sobre honestidade — com as pessoas, com o mundo, consigo mesma. On-line e off-line, não importa: tudo é real, os sentimentos são reais. E, assim, somos lembrados que, no fim das contas, é essa abertura tão aterrorizante e maravilhosa que nos faz seguir adiante em nossas vidas, nos conectando verdadeiramente.

Prova antecipada do livro cedida pela editora para resenha e divulgação por meio de parceria com a Companhia das Letras.

Texto escrito em conjunto por Anna Vitória Rocha e Clara Browne


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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