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Missa da Meia-Noite, igualmente aterrorizante e devastadora

Vendo e lendo terror durante a maior parte da minha vida, aprendi algumas coisas sobre o gênero: nem sempre você precisa ter medo de uma obra para fazer ela valer a pena; e se você sente esse mesmo medo, na maioria das vezes, ele vem de um lugar que é completamente pessoal e baseado em experiências. É por isso que o clássico O Exorcista (1973), que eu adoro, não deixou uma marca em mim que pode ser considerada “medo”, mas outros aspectos que chamaram a atenção. Seja pela minha criação distante de aspectos religiosos ou até mesmo porque sou de uma geração completamente diferente do contexto em que a produção nasceu, a imagem de Regan se contorcendo na cama, possuída, é impressionante, com certeza, mas não me fez perder o sono durante a noite. Ainda assim, conheço muitas pessoas com uma criação católica e religiosa que cresceram com o sentimento aterrorizante causado pela  performance de Linda Blair.

Que o terror é em parte pessoal Mike Flanagan, também criador das aclamadas The Haunting of Hill House e The Haunting of Bly Manor, entende muito bem. Por causa deste aspecto, o diretor e roteirista considera a minissérie Midnight Mass, ou Missa da Meia-Noite, sua obra mais pessoal até então. O resultado é algo que não apenas faz uma crítica aberta a forma que algumas religiões (em certas situações) se alimentam do medo das pessoas para prosperar, como também tem um clímax que é igualmente aterrorizante e devastador.

Assim como a maioria das produções de Flanagan, temos uma mistura orgânica de ambientação, personagem e plot, com um grande investimento em cada uma das tramas e subtramas o que, naturalmente, garantem pay offs emocionais envoltos em assuntos como trauma familiar, vício, culpa, medo e rejeição.

Atenção: este texto contém spoilers!

Logo no começo da história o público é apresentado a Riley Flynn (Zach Gilford, o Matt Saracen de Friday Night Lights). Bêbado no volante, Riley se envolve em um péssimo acidente de carro e acaba matando uma mulher inocente. Como resultado, o protagonista passa quatro anos na cadeia. O ponto inicial da história é justamente o fato de que Riley está sendo reintegrado à sociedade e voltando para sua cidade natal (uma ilha chamada Crockett) como um homem mudado e marcado pelas suas decisões. Se antes ele era o coroinha da igreja da ilha, agora é ateu. Ao invés de encontrar o Deus na prisão, como acontece com a maioria das pessoas, ele acabou se afastando do mesmo.

Quando Riley vai dormir, vê o fantasma da mulher que matou tantos anos atrás, tomado pela culpa. Uma aparição que se baseia muito no estilo como Dani (Victoria Pedretti), de The Haunting of Bly Manor, vê o fantasma do seu ex-noivo. Um lembrete da sua culpa.

De certa forma, Riley é um espelho para o próprio Flanagan, que também era coroinha da sua igreja (mas essa, por sua vez, em Nova York), teve um crescimento católico forte e, em certo momento da vida, acabou se afastando da religião. Com um planejamento que durou mais ou uma década, Missa da Meia-Noite é o projeto “paixão” do diretor e, segundo ele mesmo, sua favorita até agora. Antes de finalmente conseguir emplacar uma encomenda de temporada pela Netflix, Flanagan apresentou o projeto para diversas emissoras e streamings, mas ninguém parecia querer enfrentar aquele roteiro, que era longo demais até mesmo para uma série de TV.

As semelhanças entre o diretor e Riley também não se resumem apenas ao passado religioso. Segundo o site Entertainment Weekly, Flanagan também mandou uma carta para os críticos falando que, assim como o protagonista, ele também estava sóbrio (no seu caso, há três anos). Então, é possível dizer que os fantasmas da série, tão alegóricos e assustadores, são mais reais e palpáveis aqui, e ao mesmo tempo que são mais tristes e melancólicos. Para citar outra história do roteirista, é possível traçar um paralelo direto com a morte de Nell (também vivida por Victoria Pedretti) em The Haunting of Hill House: assim que o público descobre que o fantasma da Mulher do Pescoço Torto, que assombrou-a durante toda sua vida, é, na verdade, ela mesma, a história ganha uma profundidade maior, assim como uma conexão emocional com o público. Essa mesma forte conexão aparece em Missa da Meia-Noite pela forma como Flanagan constrói um diálogo com ele mesmo, por meio de Riley.

Como o projeto da minissérie vem em construção há tantos anos, a mudança de Flanagan sobre assuntos determinantes mudaram e evoluíram. Seu maior desafio foi, portanto, se desafiar a escrever os roteiros com esse novo olhar. É óbvio que tamanho cuidado e reflexão pessoal é exposto dentro da própria narrativa, que contém discussões profundas sobre assuntos que vão de ciência, passam por religião e chegam até mesmo na morte (mais especificamente, o que acontece quando morremos). Sobre isso, ele diz:

“Aqui está uma longa cena onde falo sobre ateísmo. Olhei para essa cena anos depois, e tentei desafiar minha própria visão. Aqui está outra longa cena, mas desta vez sobre alcoolismo. Me deixe ver se consigo falar agora sobre recuperação. Estar em conversação com várias versões dos meus últimos 11 anos, e ter isso explorado na história, é o que faz com que ela seja tão pessoal para mim.”  

Crockett é, na sua essência, um lugar religioso. Antes uma ilha próspera e saudável, um acidente com petróleo manchou o mar antes tão frutífero e acabou com a carreira da maioria dos pescadores — a principal fonte de renda de 99% dos que vivem ali. Pessoas que antes tinham casa própria, passam a pagar aluguel. Fome, desespero e desesperança se tornam algo comum e uma das únicas fontes de consolo é, justamente, a presença forte da igreja local. John Pruitt, inclusive, o padre da comunidade, é um pilar dentro da sociedade e as pessoas buscam inspiração e conforto nas suas palavras. No momento em que Riley chega na cidade outra vez, John (que já é um senhor de idade no final da vida), está em uma viagem de peregrinação para Jerusalém, bancada pelos próprios moradores da ilha — que fizeram uma vaquinha para conseguir mandá-lo até o que eles se referiram como a terra sagrada. Quando o padre Paul Hill (Hamish Linklater) é mandado para substituir Pruitt, no entanto, as coisas começam a tomar um rumo inesperado.

A ilha de Crockett e sua história são elementos fundamentais para a narrativa, mas são as figuras interessantes que existem dentro do escopo da cidade que prendem a atenção do público. Além de Riley, conhecemos Erin Greene (Kate Siegel), que fugiu da cidade e voltou grávida; o xerife Hassan (Rahul Kohli), que é muçulmano; a médica cética e lésbica, Sarah Gunning (Annabeth Gish), que passa grande parte do seu tempo cuidando da mãe doente (Mildred, vivida por Alex Essoe); Leeza (Annarah Cymone), que perdeu o movimento das pernas após tomar um tiro de outro residente da cidade; e, por fim, Bev Keane (Samantha Sloyan), a seguidora mais fiel da igreja de St. Patrick. Cada um deles tem personalidades ricas e bem construídas, que complementam a trama de forma rica e bem pensada.

Ao mesmo tempo que conhecemos um pouco mais sobre cada um deles, os primeiros episódios estabelecem o mistério principal: quem afinal é Paul Hill, e o que ele quer em Crockett?

Missa da Meia-Noite

Uma alegoria nada sútil 

Falar sobre a narrativa de Missa da Meia-Noite em si é um território complicado, mas uma coisa é explícita do começo ao fim: o fato de que a história é uma crítica à forma como, durante séculos e mais séculos, o ser humano adapta a Bíblia para se aplicar a sua agenda, independente de quem for machucar no caminho, além de manipular o medo e a culpa das pessoas ao seu favor. E isso não é algo que necessariamente está aberto para discussão.

Podemos discutir a forma como Flanagan abordou essas críticas e o que ele tem a dizer a respeito, mas o que está claro é que a intenção era, do início ao fim, fazer uma crítica.

No texto “Why I Felt Betrayed by Netflix’s Midnight Mass”, a autora Aja Romano defende que a série é tão religiosa que é quase insultante. Ou seja, ela diz que acontece uma espécie de glorificação da religião e o que ela oferece — salvação, fé, esperança. O que, certamente, é a opinião de uma pessoa que se sentiu acuada. Afinal, as pessoas são diferentes e absorvem as coisas de maneiras diferentes. Mas entre os monólogos longos e as cenas marcantes dentro da igreja, as nuances do seriado levantam uma discussão que não está nem um pouco coberta de sutilezas. Tudo ali é claro, e até mesmo um pouco óbvio.

Na medida em que o padre Paul vai se estabelecendo na cidade, ele começa a realizar missas que são longas e mais incisivas. As poucas pessoas que apareciam para os eventos da igreja logo adquirem certa lealdade à sua figura e ao que ela representa, principalmente quando Paul realiza o que é considerado um “milagre” e “cura” as pernas de Leeza, fazendo com que a menina possa andar outra vez. Isso tão pouco é o único “milagre”: a mãe de Sarah, por exemplo, começa a melhorar da sua doença e rejuvenescer; enquanto isso, algumas pessoas passam a perceber que pequenos problemas aparecem com a idade, desaparecem sem deixar nenhum vestígio (como precisar de óculos de grau ou uma dor insistente nas costas).

Com isso, a meia dúzia de rostos familiares que apareciam na igreja todos os domingos praticamente se multiplica, assim como os pedidos milagrosos para o padre Paul — que conta com Bev como sua maior e mais assídua fã. Se Paul é rosto e a voz da operação, ela é a organização por trás, sempre incentivando e mexendo os pauzinhos para conseguir mais pessoas para a causa de Deus. Mesmo que isso, no processo, acabe prejudicando pessoas que não necessariamente seguem a mesma fé que a sua. Em uma cena particularmente interessante, Bev discute com o Xerife Hassan sobre a sua religião: ele tenta explicar no que acredita e que, em alguns aspectos, suas religiões têm um denominador em comum. Mas Bev, cegada por uma lealdade torta, não consegue enxergar seu pedido por respeito e incentiva mais uma visão deturpada do que é fé em si. O que faz toda a sequência ser tão eficaz é não apenas a forma como ela retrata o preconceito e exclusão de religiões diferentes, mas também porque a entrega de Kohli é uma mistura perfeita de tristeza e cansaço. Com o passar dos episódios, e na medida em que vamos descobrindo mais sobre o seu passado como policial, fica ainda mais claro porque ele tem essa reação ao que Bev prega — algo que vai além da revolta inicial de ver uma pessoa falando besteira sobre a sua religião. No centro do arco de Hassan, está uma trama que é sobre aceitação e família, com um dos resultado que vai muito de acordo com o que Missa da Meia-Noite é.

Vale mencionar também que, mais de uma vez, os personagens citam o fato de que Bev, tecnicamente um exemplo moral de fé e integridade, usou o dinheiro que foi arrecadado para a igreja ao seu favor, mostrando (sempre de forma óbvia) a hipocrisia da personagem e do que ela considera a sua fé. Riley e Hassan, um assassino e um muçulmano, duas figuras moralmente “corruptas” perante a visão de Bev, têm muito mais empatia do que a mesma. Algo que fica absolutamente claro na forma como a série concluí a história dos três.

Entre Paul e Riley, a série cria um contraponto interessante: a pessoa que acredita na mensagem de Deus e aquela que virou as costas para qualquer tipo de religião. Bev poderia facilmente ser este contraponto, mas sua opinião é levada como um extremo ainda maior e, portanto, está em um espectro diferente. Essa apresentação de dois pontos de vista, no entanto, se interpõem frequentemente, principalmente nas cenas em que Paul fala com Riley sobre seu vício e o que aconteceu com ele anos atrás, quando matou uma mulher em um acidente de carro. Durante quatro episódios, o terreno entre essa relação é preparado com cuidado e diálogos interessantes, que expõem muito bem a forma como cada um deles lida com as coisas. O conceito de moralidade de Paul e Riley, bem como suas respectivas opiniões em assuntos como redenção, perdão, fé e até mesmo a morte, não poderiam ser mais diferentes. E isso é fundamental para entender o final da minissérie, e como as coisas se desenrolam.

Ao mesmo tempo que conhecemos um pouco mais sobre Crockett e seu conjunto de pessoas peculiares, uma trama paralela se desenvolve como pano de fundo. Ainda que eles não usem essa palavra especificamente, Paul trouxe um vampiro até a ilha e ele passa a se alimentar dos seus residentes. Em troca, a criatura oferece seu sangue (como o corpo e o sangue de Cristo, que garante a possibilidade da vida “eterna”).

Missa da Meia-Noite

O mito do vampiro versus a religião

A relação e a história da cultura pop com os vampiros é longa e, com o passar dos anos, foi mudando e explorando novas camadas e nuances. De Carmilla, escrito em 1872 por Sheridan Le Fanu, passando por Nosferatu, de 1922, até Crepúsculo, 2008, e The Vampire Diaries, 2011, eles evoluíram de criaturas grotescas e que queimam no sol, para seres sensuais com dietas vegetarianas. Com movimentos culturais mudando constantemente, é normal que um dos mitos mais famosos de todos os tempos se modifiquem com o tempo também, tanto para se encaixar no contexto atual — assim como fazem os próprios vampiros — quanto para conseguir alcançar um novo público.

Em linhas gerais, uma boa narrativa sobre vampiro fala sobre os aspectos que, geralmente, os seres humanos são mais receosos em mostrar para o resto do mundo. A figura do vampiro em si representa desejo, violência, dor, prazer, amor, ódio e todos os sentimentos complexos e contraditórios que geralmente estão enterrados nas profundezas da psique humana. Ao mesmo tempo, a figura do vampiro em si também representa vida e beleza eterna. E quem, afinal, não gostaria disso? Mas para além da cultura pop, o mito do vampiro e suas particularidades nasceram como lendas folclóricas europeias, e sua existência está diretamente ligada à da Igreja Católica Romana (apesar da figura do vampiro existir também em sociedades não católicas).

No estudo “The Vampire Myth and Christianity” o autor diz que “beber sangue sempre foi uma fonte de vida” para a religião católica:

“Beber sangue de um inimigo é uma forma antiga de digerir a essência desta pessoa. Esse é o jeito, de acordo com a Bíblia, que Cristo pede para que seus seguidores lembrem dele, ao beber seu sangue em uma encenação na missa toda semana. De acordo com o evangelho de João, ‘aquele que comer minha pele, e beber o meu sangue, terá vida eterna; e vou ressuscitá-lo no último dia. Pois minha pele é carne e meu sangue é bebida. Aquele que come minha pele e bebe meu sangue habita em mim, e eu habito nele.”

Ou seja, no contexto da série, o sangue do vampiro, oferecido pelo monstro e pelo próprio Paul, que acredita na vida eterna que ele vende, se torna o sangue de Cristo. Não é por acaso que o padre encontra o monstro — que ele chama de Anjo —, durante sua peregrinação até Jerusalém. Paul é, na verdade, John Pruitt. Esse “Anjo”, que suga seu sangue e restabelece sua juventude, oferece redenção para um homem que perdeu grande parte da sua vida para os arrependimentos. E quando a um é apresentado a oportunidade de ter uma segunda chance, ele abraça isso com todas as suas forças.

Veja bem, John teve um caso com Mildred Gunning, o que resultou em Sarah. Mas com medo de deixar a igreja e viver a vida que queria viver, os dois acabaram envelhecendo separados, sempre com o peso do que poderia ter sido. Em certo nível, Pruitt acredita realmente que ele encontrou o sangue do “Anjo” — que promete vida eterna, por um propósito. Mas apenas porque o seu arrependimento é tão forte, que ele não consegue resistir a uma oportunidade de refazer as coisas. O medo com certeza é outro fator determinante na sua jornada: um homem que tinha prometido sua mente e seu corpo à igreja, acabou traindo seu juramento e se envolvendo com uma mulher durante grande parte da sua vida. Mais do que isso, ele cogitou deixar sua função para ficar com ela. Quais serão as consequências disso agora, na sua morte?

Em contraste com a transformação dolorosa de John Pruitt, Bev usa de passagens da Bíblia ao seu favor, fazendo paralelos com as situações em que eles estão inseridos e implementando o medo da morte e a promessa da vida eterna em cada uma das pessoas que estão dispostas a ouvir. Quando percebem o que está acontecendo, no entanto, já é tarde demais.

No quinto episódio, o ponto determinante para a história, quando Riley acaba sendo vítima do monstro e é transformado em vampiro, assim como padre Paul, as coisas começam a se desenrolar como um efeito dominó, sendo tudo o que acontece uma consequência direta das escolhas de Paul, Riley, e Erin, respectivamente. Os três personagens que, de certa forma, estão no centro da narrativa de Flanagan.

Missa da Meia-Noite

Erin Greene, a alma e o coração de Missa da Meia-Noite 

Para uma obra que contém momentos tão estarrecedores e um clímax violento, o resultado final é surpreendente comovente, assim como nas outras séries do diretor em parceria com a Netflix. Nos momentos finais, Erin retoma sua conversa com Riley sobre a morte e oferece um pouco de conforto e até mesmo esperança sobre o passo seguinte de todos os seres humanos. “É como a volta para casa”, ela descreve sobre aceitar o destino fatal de todos os seres humanos.

Assim que Riley percebe que é agora um “vampiro”, ele leva Erin para o meio do mar em um barco e espera o amanhecer. Para provar a história que ele conta sobre John, o monstro e todas as maquinações da igreja, Riley se sacrifica porque, primeiro, ele não está disposto a viver daquele jeito, entendendo perfeitamente as implicações morais daquilo; segundo, entende que precisa, de alguma forma, contribuir para aquilo acabar. Confiando em Erin e no relacionamento de cumplicidade que eles criaram ao longo da vida, Riley aconselha ela a fugir e correr por sua vida, mas sabe que ela não vai fazê-lo. Os momentos finais da sua existência são agridoces: apesar de doer ter que se despedir do personagem daquela forma tão brutal (tanto para nós quanto para Erin), ele finalmente encontra paz e redenção por todos os seus erros.

Riley é um protagonista interessante pois suas motivações e dilemas sempre foram tratados de forma ambígua. Ele era um assassino, com certeza, que em um nenhum momento fugiu da sua culpa e da dor pelo o que fez. Aceitou sua punição, se afastou daquilo que o absolvia dos seus crimes (como a figura de Deus, por exemplo). Quando John diz que matou pela primeira vez e não se sentiu culpado, Riley, relutantemente, diz que sente inveja. Porque o que ele fez, tantos anos atrás, ainda o esmaga com culpa. Viver consumindo o sangue de outros não é uma possibilidade para ele, e se sacrificar para que outros tenham uma chance parece ser um preço pequeno a se pagar por um pouco de paz. O que, nos últimos momentos, ele parece encontrar. “Eu fiz o meu melhor”, Riley diz.

A conclusão da história de Riley acontece no quinto episódio de Missa da Meia-Noite, um capítulo que parece ser sempre importante para as obras de Flanagan no geral. Apesar de serem histórias tão diferentes entre si, três personagens do autor são focos em suas respectivas séries: Nell, Hannah (T’Nia Miller) e Riley. A primeira, em The Haunting of Hill House, já citada no texto, encontra seu destino após tentar fugir dos fantasmas (literais) da sua vida. Sem esperanças, Nell entra na casa da Colina, revisita todas as pessoas mortas da sua existência e acaba morrendo, se tornando o fantasma da Moça do Pescoço Torto, que a assombrou sua vida inteira. Já Hannah, de The Haunting of Bly Manor, morre em um lugar onde os fantasmas esquecem quem eles foram em vida. Mas, como ela se recusa a processar sua morte, parece presa na mansão, vivendo entre os vivos e absorvendo o tema de forma não linear. E, por fim, Riley. Um homem doente que apesar de todos os seus problemas, ainda estava tentando dar o seu melhor.

Como disse anteriormente, estes três personagens não têm muita coisa em comum, tirando o fato de que todos foram escritos por Flanagan. Mesmo assim, suas histórias são pontos de mudanças importantes dentro do escopo de suas próprias séries e causam transformações profundas naqueles que estão ao seu redor. Com Nell, Hannah e Riley, Flanagan exemplifica que tipo de assuntos vai abordar, e como vai abordá-los, ditando o que virá nos episódios a seguir. E ele faz tudo isso por meio de figuras que são reais, complexas e falhas, que causam empatia profunda no público e, consequentemente, aumentam o nível de investimento que as pessoas colocam na história.

Assim como Riley previu, Erin volta a cidade e junto com Hassan e Sarah, passa a fazer o seu melhor para impedir o desastre final. O que se prova ser tarde demais. Com o sangue do “Anjo” nos seus sistemas, as pessoas morrem e voltam em seguida, cedendo a fome absurda que sentem e se alimentando das pessoas que um dia foram seus amigos, amantes ou apenas vizinhos. O terror é instalado e o desespero também, sendo que as cenas em que tudo isso ocorre são realmente chocantes e bizarras.

Com a possibilidade de fazer tudo acabar na própria ilha e não alcançar a sociedade lá fora, Ali queima todas as residências, forçando todas as “criaturas” a enfrentarem o sol da manhã. Já Erin, se sacrifica chamando atenção do “Anjo” e cortando suas asas, também fazendo com que ele tenha que enfrentar o sol — e morrer, deixando com que Crockett seja uma última passagem na Terra.

Se Riley se distanciou de Deus, Erin teve uma jornada contrária e passou a achar conforto na comunidade da igreja de Crockett. Abusada por sua mãe na infância, depois por seu marido, grávida e praticamente sozinha no mundo, Erin teve uma vida complicada e violenta, mas é uma presença forte e calma na ilha. Ela é vulnerável, forte, empática e inteligente. Não prega intolerância como Bev, e aceita Riley por inteiro, com suas limitações, assim como aceita Ali e sua religião, sem questionamentos. De certa forma, parece justo que ela seja a responsável por cortar as asas do monstro e botar um fim a tudo aquilo.

Assim como Riley e Hassan nos momentos finais, Erin se entrega à morte sem medo, como o passo natural que ela é na jornada do ser humano. Enquanto isso, Bev luta para se enterrar em qualquer lugar onde ela não precise encontrar o sol e, consequentemente, seu destino.

O medo da morte e do que vem a seguir sempre foi um grande catalisador das religiões, oferecendo explicações e alternativas que trazem conforto e significado para as pessoas. É por isso que, em grande parte, o mito dos vampiros parece ser tão convidativo: vida eterna e nunca ter que enfrentar esse próximo passo. No seu último monólogo, no entanto, Erin fala sobre a morte como uma forma de pertencimento e isso parece ser um jeito otimista e esperançoso de acabar uma história que é tão violenta e devastadora.

“(…) os elétrons do meu corpo se misturam com os elétrons do solo embaixo de mim e no ar que não estou mais respirando (…) eu lembro que sou energia, não memória ou eu mesma. Meu nome, minha personalidade, minhas escolhas, tudo isso veio depois de mim (…) apenas de lembrar, estou voltando para casa e sinto como se fosse uma gota de água de volta para o oceano. Tudo é uma parte. Todos nós… uma parte. Você, eu, todo mundo que já existiu, toda planta, animal, átomo, estrela e galáxia. Tudo.”

Também nos momentos finais da série, Leeza, uma das duas pessoas que conseguiram deixar a ilha, diz que ela voltou a não sentir suas pernas. Mas em nenhum momento na cena isso é tratado como algo ruim. Afinal, isso quer dizer que o “Anjo” ou “A Criatura” morreu e o que afligia aquelas pessoas, já não era mais um problema. Assim como as últimas palavras de Erin, esse fato oferece conforto. E apesar de saber que muitas pessoas não necessariamente gostam de finais tão esperançosos (ainda mais comparado com o contexto brutal do resto da minissérie), não consigo deixar de apreciar a essência da mensagem de Flanagan: “não existe tempo, não existe morte. A vida é um sonho, um desejo. Um desejo feito de novo, de novo e de novo e por toda a eternidade.” Missa da Meia-Noite não é afinal sobre Deus em si, mas sobre o bem, o mal e todas as nuances cinzas que existem entre esses dois componentes. É sobre a vida, e o que fazemos com ela, mas também sobre a morte e o que vem a seguir.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!