“Às vezes era sombria como um navio esquecido em águas profundas e, às vezes, iluminada, como areia de praia limpa”. Assim Rita é descrita pelo seu próprio monstro, que irá acompanhá-la pelas breves, porém misteriosas páginas de Mulher com Brânquias, suspense que sempre guarda uma surpresa quando o leitor pensa que começou a descamá-lo. Uma narrativa que está sempre se metamorfoseando, assim como sua personagem principal.
Patrícia Baikal, escritora brasileira independente que já vem marcando presença no suspense com livros como Mariposa e Onde se Morre Todos os Dias, constrói em Mulher com Brânquias um mistério que atravessa gerações de mulheres de uma mesma família. A metamorfose e a dúvida entre o limite do “real” e do que apenas se passa na mente da narradora lembra em muito a construção de histórias como A Vegetariana, de Han Kang, O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Gilman, e A Menina Submersa, de Caitlín R. Kiernan. Para os leitores que adoram se sentir enganados e presos até a última página, enlouquecendo junto com os narradores (como eu me senti!), este livro é um prato cheio e, com certeza, uma inspiradora história para o sombrio mês de outubro.
A vida de Rita seguia de forma aparentemente normal e perfeita até uma perturbadora visão abalar a sua sanidade. Durante sua primeira aula como professora de administração em uma universidade, ela percebe um “aluno” muito diferente: um enorme peixe flutuante que a observa na sala, enquanto todos os outros estudantes seguem normalmente assistindo à aula, sem nenhuma impressão de perceberem o que ela presencia naquele momento. A partir daquela aparição, a figura do enorme peixe começa a persegui-la nas ruas, na sua loja de porcelanas e em eventos familiares, como uma estranha infiltração que ganha vida, fazendo com que Rita se veja sozinha e com medo de estar se entregando à insanidade, enquanto tenta manter sua vida seguindo de maneira normal.
“Quando a sombra desceu para o centro da sala e se transformou em dois olhos negros esfumaçados, larguei a caneta e sentei. Ao redor dos olhos sem pálpebras que tinham o tamanho das minhas mãos, foram aparecendo, aos poucos, escamas acinzentadas brilhantes sobre um corpo de três ou quatro metros de extensão, um crânio articulado com uma mandíbula comprida e barbatanas longas e bifurcadas. Era uma criatura fantasmagórica em forma de um grande peixe que flutuava em plena sala de aula, atravessando os alunos e as carteiras.”
Como se não bastassem as aparições e o diálogo do grande peixe que aparece apenas para ela, Rita começa a perceber escamas que surgem em sua pele, aumentando à medida que se sente mais machucada ou vulnerável. Mesmo sem a certeza de que realmente está passando por uma metamorfose, ela tenta esconder a nova pele de peixe, ao mesmo tempo em que se questiona sobre a realidade e a loucura. Entre pesquisas e uma constante busca por outras pessoas que tenham passado pela mesma coisa, ela ainda se vê sozinha, mas descobre, por fim, a curiosa função das escamas: proteção.
“Lá no fundo, no meio de tudo, não sei se havia ossos ou apenas a vontade de ser mais resistente. Nos próximos dias, a vida mostraria que minha pele era como um escudo tentando me proteger das dores mais fortes. Um escudo com defeitos e buracos tapados com escamas de peixe. Quanto mais buracos aparecessem, mais escamas surgiriam.”
Contudo, Rita não está sozinha. Ao longo da trama, vamos encontrando as respostas para o mistério e o medo que ela vivencia em seu passado, em sua família. Prestes a completar trinta e três anos, a “idade amaldiçoada das Odas” com a qual muitas mulheres de sua família morreram, uma perda a leva de volta para o interior de Minas Gerais, para o velório de sua tia favorita. Em paralelo aos elementos sobrenaturais da história, o sentimento de luto, perda, medo e ansiedade ganham destaque na narrativa de Patrícia, e, embora sejam emoções pesadas e sombrias, são tratadas com muito carinho e cuidado pela escritora, despertando a empatia e a recordação daqueles que sabem como é voltar para “casa” depois de estar tanto tempo fora.
O reencontro com algumas pessoas da sua família vai trazer à tona diversas lembranças que parecem ter ficado esquecidas na velocidade da vida adulta, longe do lugar de infância. Percebemos que o luto foi sempre presente na vida de Rita, que perdeu a mãe ainda criança e conviveu com histórias de tias e avós que enlouqueceram e morreram cedo, com a idade que ela agora tem. O que parece ser uma maldição, no entanto, é um laço forte de sangue que une todas essas mulheres. É quase como se as suas ancestrais, as Odas, tivessem preparado as respostas para os seus medos, e essa ligação é o que deixa o leitor dividido entre os limites do real e do que se passa na mente da narradora.
Por esses elementos de uma narrativa bastante íntima, Mulher com Brânquias se aproxima muito mais de A Vegetariana do que de A Metamorfose, de Franz Kafka. Embora todos esses livros retratem transformações físicas que flertam com o sobrenatural, vemos que na história de Rita e em A Vegetariana, as metamorfoses são estratégias de sobrevivência e em muito dialogam com os dilemas e as dores dessas mulheres. Também a atmosfera misteriosa, a relação entre real e loucura e os elementos de uma vida “aquática”, como o surgimento de brânquias, relembram a fantasmagórica A Menina Submersa. Sem dúvidas, Patrícia Baikal mostra que a literatura brasileira também tem ótimas obras de fantasia sombria, o que é muito inspirador para leitores e escritores que desejam mergulhar nesse gênero.
“O medo da morte se parece tanto com a própria morte que pode inclusive matar.”
Rita é uma personagem madura, que atribui muito mais profundidade à narrativa de suspense sobrenatural com as ansiedades comuns às mulheres de sua idade: casamento, cobranças sobre a maternidade, futuro profissional etc. Como se respondesse à angústia, entendendo-a como organismo invasor, o seu corpo se adapta para sobreviver, principalmente em situações em que a morte se torna cada vez mais próxima.
Com uma narrativa cativante, enriquecida por uma série de ilustrações em preto e branco que acompanham a metamorfose e os sentimentos de Rita, Mulher com Brânquias é mais um exemplo do poder que as histórias de terror e suspense têm de representar e expurgar emoções fortes e humanas, como o medo e a ansiedade. Isso sem se apegar ao gore e a outros elementos clichê de terror, sendo uma história extremamente original e enriquecedora para o cenário literário nacional do realismo mágico.
** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!
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