Categorias: LITERATURA, TV

Clarice, Dr. Lecter e Buffalo Bill: 30 anos de O Silêncio dos Inocentes

Já que estamos na Semana do Terror me pareceu um  bom momento para revisitar clássicos do gênero como O Silêncio dos Inocentes, adaptação do livro de Thomas Harris. A questão é que, no meu caso, o que fiz foi uma primeira visita. Explico: amo terror, personagens femininas complexas e psicopatas (como entretenimento), mas algumas coisas às vezes te escapam. Foi assim com Clarice, Dr. Hannibal Lecter e Buffalo Bill.

Tenho memórias vivas de minha infância/adolescência em locadoras nos finais de semana e de passar pelo VHS de O Silêncio dos Inocentes, a foto de Jodie Foster com uma mariposa gigante na boca estampada na capa. Mas, por algum motivo, sempre escolhia alugar O Chamado. Desculpas à parte, a verdade é que passei 28 anos sem conhecer essa história e sem saber da repercussão que o filme teve em seu tempo, mas nunca é tarde para aprender.

Atenção: este texto contém spoilers!

Lançado em 1991, O Silêncio dos Inocentes foi o maior ganhador do Oscar de 1992, emplacando as categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor (Jonathan Demme), Melhor Atriz (Jodie Foster), Melhor Ator (Anthony Hopkins) e Melhor Roteiro Adaptado (Ted Tally). Até hoje o filme permeia o imaginário popular e não é difícil encontrar referências atuais sobre a história, sejam spin-offs, como a série Hannibal (2013-2015), paródias, como em Family Guy ou The Office, ou inspiração, como no videoclipe “Ding Dong” da drag queen Katya, lançado no ano passado.

Clarice: uma protagonista complexa

Um dos motivos para o sucesso do filme é a protagonista. Clarice Starling (Foster) é uma jovem agente do FBI tem que interrogar o famoso Dr. Hannibal Lecter (Hopkins) — mais conhecido como Hannibal, para encontrar a identidade do assassino em série Buffalo Bill (Ted Levine). Buffalo Bill é um psicopata que assassina e retira a pele de mulheres para fazer seu próprio corpo feminino.

O Silêncio dos Inocentes ilustra um cenário de sexismo e misoginia que mesmo depois de trinta anos ainda parece atual. Starling é uma personagem complexa nos livros de Thomas Harris e também na adaptação para o cinema. Jodie Foster, que interpreta Clarice, ficou conhecida em Hollywood por seus trabalhos feministas.

A personagem  retrata a vida e os problemas que uma mulher que escolhe ter uma carreira enfrenta ao navegar em um mundo dominado por homens. Mesmo sendo uma excelente agente que foi escolhida para a difícil missão de interrogar Dr. Lecter, Clarice ainda se encontra no meio misógino do FBI e precisa constantemente provar que merece estar ali.

Clarice influenciou uma geração de detetives mulheres e personagens femininas complexas. Sem Clarice, provavelmente não teríamos Scully de Arquivo X ou a destemida Olivia Benson de Law and Order: SVU. Assistindo o filme quase 30 anos depois de seu lançamento, a primeira coisa que eu notei no filme foi o protagonismo de Clarice — ainda não é comum vermos mulheres à frente de uma caça a um psicopata, por exemplo. Jodie Foster interpreta Clarice de maneira singular. Clarice não é um bloco monolítico de poder nem uma donzela que precisa ser salva. Ela tem defeitos e qualidades, momentos de fraqueza e de força. Clarice Starling é uma personagem completa. Ela não se desfaz de suas características “femininas” mesmo estando dentro de um Clube do Bolinha. Pelo contrário, Clarice as utiliza de forma inteligente na sua investigação, fazendo o que seus companheiros não conseguiram. Seu poder e influência é tão grande que em fevereiro desse ano uma nova série baseada na personagem foi criada pela emissora CBS.

Clarice (2021) se passa em 1993, um ano após os eventos de O Silêncio dos Inocentes. Embora a agente júnior do FBI permaneça assombrada pelo caso Buffalo Bill, bem como pelos segredos de sua própria família, ela continua sendo uma excelente agente, agora com mais prestígio do que nunca. Mesmo assim, Clarice ainda tem que lidar colegas que se não a deixam esquecer de que ela é uma jovem mulher que trabalha em um mundo ainda quase todo formado por homens. Ela pode ser corajosa e brilhante, mas também é vulnerável, e isso a torna uma desvantagem aos olhos do FBI.

A série tinha tudo para ser um sucesso. Uma personagem querida e admirada  tendo mais espaço para contar a sua versão da história, sem tanto foco em sua relação com Dr. Lecter parecia ser uma ótima ideia. Infelizmente, a série não deslanchou. Formatada mais como uma série policial, Clarice, a série, é lenta e não empolga, mesmo com a ótima atuação de Rebecca Breeds no papel principal.

Buffalo Bill e a transfobia em Hollywood

Além de Clarice, um grande debate que permeou as últimas três décadas em torno de O Silêncio dos Inocentes foi o seu problema com a transfobia. Desde o momento de seu lançamento, o filme atraiu críticas constantes do movimento LGBTQIA+ por sua representação do assassino em série Buffalo Bill, incluindo um protesto na noite do Oscar que resultou na prisão de 10 pessoas.

Jame Gumb, conhecido como Buffalo Bill, é um assassino que está aterrorizando os Estados Unidos e deixando o FBI em maus lençóis. Quando Buffalo Bill sequestra mais uma mulher, sendo essa a filha de um político importante, a caça a Buffalo Bill se torna ainda mais intensa. Enquanto aplaudimos a protagonista Clarice Starling como uma representação de empoderamento feminista o mesmo não se pode dizer quanto a representação LGBTQIA+ em Jame Gumb. Gumb é retratado como um monstro e sua sexualidade e gênero são partes essenciais dessa monstruosidade. É desconfortável assistir.

Apesar da insistência de que Gumb não é trans de verdade, o filme ainda se utiliza de imagens queer para transformar Gumb em um monstro que mata mulheres para fazer seu próprio corpo feminino. Dr. Lecter diz a Clarice que Jame é um indivíduo que “odeia sua própria identidade, sempre a odiou e ele acha que isso o faz um transsexual. Mas sua patologia é ainda muito mais primitiva.” De acordo com Effie Ophelders em sua tese sobre a representação de pessoas transgênero no cinema, essa fala de Dr. Lecter implica que ser trans também é uma patologia, embora menos selvagem e aterrorizante.

A verdade é que, mesmo que não tenha sido a intenção do filme, a representação de Buffalo Bill ficou no imaginário popular como a representação de pessoas trans generalizada: violenta, errada e monstruosa. Uma das cenas mais famosas do filme mostra Jame Gumb dançando sozinho, vestindo apenas um kimono e uma peruca feita com o couro cabeludo de uma de suas vítimas. A mensagem é clara: a transição de um gênero para o outro é um ato de violência e de depravação. É a mesma ideologia das feministas trans-excludentes. É sem sombra de dúvidas, uma representação transfóbica que machucou muitas pessoas durante esses trinta anos.

Em 2021, a série Clarice procurou encarar esse problema de frente e tentou reparar os danos feitos pelo filme. Embora a série não tenha sido um sucesso de crítica, ela foi aplaudida por muitos por essa atitude. Jen Richards, uma atriz e defensora dos direitos trans, foi contratada como consultora e escalada para representar um papel importante na série.

Jen interpreta Julie, uma informante que ajuda Clarice em um de seus casos um ano depois do caso de Buffalo Bill. Antes disso porém, Julie confronta Clarice sobre o jeito com que o famoso caso foi tratado: “De um dia para o outro, a notícia que todos estão comentando é sobre como os transsexuais são monstros (…). Eu posso perder meu emprego, minha vida. Eu tenho que esconder quem eu sou por conta de histórias como a de Buffalo Bill. E o centro de todas essas histórias é você. Você fez minha vida mais difícil.”

Essa fala de Julie, uma mulher trans afetada pela errônea caracterização de Buffalo Bill, não é somente importante para o enredo. Ela é o sentimento de muitas pessoas que se sentiram como Julie depois do lançamento de O Silêncio dos Inocentes. É um passo em direção a um futuro menos transfóbico

No fim das contas, O Silêncio dos Inocentes é uma obra cheia de acertos e de erros, que mesmo depois de trinta anos continua no imaginário popular, para o bem ou para o mal.


REFERÊNCIAS:

OPHELDERS, Effie. The transvestite, the Transsexual and the Trans Woman The Transmisogynist Representation of Transgender Killers in Psycho, The Silence of the Lambs and The Mantis.

GRIFFIN, Annaliese. Before We Knew Better: Silence of the Lambs is a Win for Women—But Fails LGBTQ Culture.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!